Por Clara F.
Entrei com quatro anos para “O
Mundo Infantil”. Era um colégio até à 4ª classe. Ficava numa moradia na avenida
Gago Coutinho, muito perto de casa dos meus pais.
O meu irmão mais velho – já era tão grande! – andava ali na 4ª classe;
o meu outro irmão entrou ao mesmo tempo que eu, mas foi para a infantil dos cinco
anos, a dos crescidos.... E eu sentia-me razoavelmente segura pois os meus dois
irmãos andavam no mesmo colégio. No entanto fomos logo separados por turmas e
salas, e assim sendo, não tinha grande contacto com eles. Nas aulas não nos
víamos e como o recreio era relativamente pequeno, os horários dos intervalos eram
escalonados por classes.
Foi logo algo que não me
agradou.... Qual era o problema de estar com os meus irmãos? Como é que algo
que me parecia tão natural, se tornava proibido? Infelizmente, do alto dos meus
quatro aninhos anos, nada pude fazer...
Por outro lado, achei desde logo
que as minhas colegas me eram impostas e como tal olhava-as como umas estranhas
e não lhes dava grande confiança, preferindo manter o meu ar de “orgulhosamente
só”. Não havia o direito de me impedirem de estar com o meu irmão, só porque
era mais velho. Como tinha de mostrar o meu descontentamento e já que não podia
fazer mais nada, pelo menos não colaborava.
Então, as minhas pequenas condiscípulas
começaram a fazer grupos entre si, enquanto eu ia sendo posta de parte, e
pondo-me de parte também, aferrada à minha teimosia. Um dia, porém, resolvi ir
brincar com elas, pois estavam a saltar à corda e também me apeteceu muito
brincar. Mas como sempre me exclui do seu convívio, responderam-me prontamente
que não. Zangada, agarrei na corda com as duas mãos e não as deixei saltar. Se
eu não saltava, elas também não! Depois, sentei-me triunfante no muro do
recreio com a corda nas mãos em ar de desafio.
Espantadas, nem estavam a acreditar
no que se passara, e visto que não havia forma de me demoverem sem briga, foram
chamar a autoridade. Neste caso, a vigilante. Mas a vigilante não teve mais
sucesso do que as minhas pequenas companheiras porque eu continuei a insistir que
não largava a corda pois achava que elas teriam de ser penalizadas por não me
terem deixado brincar com elas. Desesperada, a vigilante foi chamar uma
autoridade superior, a tia Lurdes que era a minha professora. Com esta tive de
ceder. Até porque ela se aproximou de mim e amarrou-me as mãos com a mesma corda
que tanta agitação estava a provocar. E assim fiquei de mãos amarradas durante o
recreio inteiro.
Para as outras meninas o meu
castigo foi o delírio, mas no meu íntimo sentia que, apesar delas estarem tão
vitoriosas, a vencedora tinha sido eu. Afinal, elas também não tinham podido brincar!
Cheguei a casa e remeti-me ao
silêncio, consciente de que se os meus pais soubessem o que se passara, seria alvo
de novo castigo e para mim já chegava de castigos para um dia só. E como das
outras vezes, fui para o meu quarto onde mergulhei num mundo só meu, onde me
sentia protegida, compreendida e amada. Nunca questionei a atitude da
professora. Acreditava que, sendo ela mais velha agia correctamente, de acordo
com os padrões do mundo em que eu vivia e no qual me sentia profundamente desajustada.
Cerca de um ano mais tarde, no
decorrer de uma feia briga com o meu irmão do meio, ele foi contar o que
acontecera aos pais, na esperança de estar a revelar algo de muito grave que me
custaria o castigo da vida afectando também gravemente a minha reputação
perante os nossos progenitores. Dessa forma, julgava ele, seria exemplarmente
vingado. Fiquei muito sentida, pois tínhamos feito um pacto de silêncio sobre
esse triste episódio que ele tinha quebrado. Eu nunca ousaria contar o segredo
dele. Foi um golpe muito baixo!!!
Mas então, surpresa das
surpresas!!!!, a minha mãe, quando ouviu a história, reagiu de uma forma completamente
surpreendente. Profundamente indignada com o que se tinha passado, foi ao
colégio e exigiu falar com a professora. Que coisa mais estranha, pensei.
Afinal não estava sozinha no meu mundo. Afinal, tinha uma aliada na minha mãe,
que até aí nunca a tinha sentido como tal! E assim, pela mão dela entrei na
escola, sentindo-me segura e invencível.
Ia finalmente poder explicar as minhas razões. Nesta altura, já tinha feito
algumas amizades, mesmo entre as minhas colegas a quem eu tinha tirado a corda,
por isso o meu confronto direcionava-se quase em exclusivo à professora que me
castigara de forma tão cruel. Tudo o que queria era enfrentá-la. Aflita, ela
tentou desculpar-se, procurando desvalorizar o sucedido, mas quando sentiu a minha
força passou a tratar-me com mais respeito, não fosse eu voltar a queixar-me
aos meus pais ... amigos da directora do colégio.
A minha entrada para a escola não
representa, portanto, um marco feliz. Passar um dia inteiro fechada numa sala, sujeita
a horários rígidos para entrar e para sair, era para mim um verdadeiro suplício.
Para reforçar estes sentimentos, os muros e as grades apresentavam-se como
outras tantas barreiras a condicionar enormemente a minha liberdade provocando-me
um sentimentos de asfixia. Não foram poucas as vezes em que atirei os sapatos
para fora dos muros, alegando com o ar mais inocente, que me tinham caído, apenas
para poder sair do colégio sozinha e acenar, do lado de fora, às minhas condiscípulas
que me olhavam com um olhar de admiração que eu simplesmente adorava. Era o
êxtase!
Sentindo-me diferente pois OUSAVA,
comecei a ser admirada pelos meus colegas, rapazes e raparigas, já que fazia
coisas que, para eles, eram impensáveis. Comecei assim a ter muitos amigos
rapazes, que alinhavam comigo nas brincadeiras mais radicais, como trepar às
árvores, dar cambalhotas nos baloiços –
andar simplesmente de baloiço não tinha graça nenhuma – e muitas outras diabruras.
Se havia alguma cena de pancadaria, lá estava eu a demarcar a minha posição.
Chegava a bater em rapazes, (embora escolhesse sempre os mais fraquinhos) o que
me dava um estatuto de durona e fazia com que os meus pequenos companheiros me
olhassem como uma deles.
Isto dava-me uma extasiante
sensação de poder...
Créditos de imagem: "MENINAS PULANDO CORDA", Óleo sobre tela
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