segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Mas sei que tenho uma mãe

Assinado por Slaimen, e com data de 2015 este conto apocalíptico e futurista, ultrapassa, pela beleza da própria narrativa, e pelo seu ritmo quase poético, os limites do que se convencionou chamar «ficção científica», que, de resto, tanta obra maior nos tem dado. É mais um contributo das nossas oficinas de escrita, desta vez sob o lema Liberdade Incondicional.
Manuela Gonzaga.






Mas sei que tenho uma mãe

Três anos? Quatro anos? Mais? Não sei. Por mais que tente não consigo recordar-me há quanto tempo estou neste sítio. Às vezes até tenho dificuldade em perceber onde realmente estou. O José diz que este sítio é uma prisão, mas eu questiono-me todos os dias sobre qual o significado dessa palavra e qual o sentido deste sítio. Ultimamente, não tenho certezas de nada. Nem do espaço, nem do tempo, nem de mim. Como se na realidade estivesse suspenso nesta sala sem nunca conseguir tocar o chão.

Não sei se algum dia afirmei algo com toda a certeza e o abracei com todas as minhas forças. Não sei se algum dia já soube qual a minha cor favorita. Não sei se algum dia soube outra língua para além desta que falo. Não sei se algum dia gostei genuinamente de pintar, fotografar, cozinhar ou até mesmo falar em público. Não sei se algum dia tive alguém por quem daria a minha própria vida, ou tão pouco se tinha vida para dar, porque neste momento não tenho nada para oferecer.

José traz-me livros às vezes. Gosto de ler, acho. Se calhar só penso que gosto. Porque ou vejo o meu reflexo no espelho ou leio. E entre olhar para o meu reflexo, que desdenho e olhar para o reflexo de uma pessoa que não conheço através das suas palavras, a segunda opção ganha sempre. Mas depois não me desdenho.

Acho.

Se calhar desdenho só aquela imagem presa na circunferência dos reflexos. Os cabelos pretos misturados com os brancos, que se vão apoderando, dia após dia, de toda a minha cabeça e barba. Os olhos castanhos, que não sei se em alguma altura mudariam de cor com a luz do sol, porque os raios de sol que entram por esta janela com grade em cruz nunca são suficientes. Mas não desdenho as minhas superficialidades. Desdenho a postura curvada, tristonha e o olhar cheio de um vazio que me atormenta todas as horas dos dias. Desdenho o que fizeram de mim. Ou então desdenho aquilo que fiz com o que fizeram de mim. Ou só desdenho aquilo que me faço todos os dias.

O José traz-me música também. Mas nem sempre me deixavam ouvir música. Antes só podia ler e nessa altura lia três livros por semana. Agora só leio um, porque todos os fins-de-semana ele me traz música nova e confesso que gosto mais do que me contam os álbuns de música do que as páginas dos livros. O último foi A Insustentável leveza do ser. Digo o último porque o José não me visita faz agora um mês. Já o li quatro vezes e esta última muito devagar, para não ter de repetir ainda mais. Decidi também não ouvir mais o meu álbum favorito I am a bird now dos Anthony and the Johnsons, para preservar o meu amor por esta peça. O meu amor. Acredito que esta é a única forma de amor que me consigo sentir.

A Teresa. A Teresa não é amor. A Teresa é diferente. A Teresa é vida. É a única forma de vida que conheço neste mundo. É leveza e peso, é calor e frio e é mais tristeza que alegria. Mas é a única forma de vida que me imagino respirar com prazer todos os dias da minha vida. Se algum dia tivesse uma de verdade. Faria meus os olhos dela e habitaria a mente dela em todo e qualquer momento, porque é a única coisa que me faz sentido. A Teresa já não vem visitar-me há uma semana e para não morrer de desespero, não espero que o faça. Nunca espero por ela. O vigilante noturno disse que estávamos em guerra e que parte da população já tinha fugido para outras partes do mundo á espera de encontrar paz.

Se calhar o José foi embora também, e se calhar a Teresa foi obrigada a ir junto. Um dia ela jurou-me com o olhar que nunca fugiria e que era ali que ficaria para o seu sempre, mas poderiam obrigá-la. A verdade é que ultimamente tem chegado cada vez menos comida e a água tem agora um sabor estranho. Se calhar está próximo o fim que todos falam, que o vigilante o anunciou enquanto falava ao telefone com a família.

O fim do planeta tal como o conhecemos.

Só espero, se o fim for agora, que deixem a Teresa ficar onde quer, o José fugir e o vigilante noturno juntar-se à família. Eu vou ficar aqui. Porque nunca fiquei em outro lugar que não aqui. Não posso afirmar querer estar em outro lugar que não aqui. Não posso, tão pouco, querer voltar atrás no tempo ou avançar para um futuro, porque não tenho nenhum dos dois. Não sei se sou culpado ou se haveria de culpar alguém. Mas sei que tenho uma mãe. E este rasgo de consciência em forma de palavras é para ti, ser que me trouxe aqui.


Slaimen, 2025. 

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Bom dia Vida… Bom dia Amor

É um texto de Fátima Gabriel, fruto da Oficina de Escrita que realizámos no Porto. É um conto muito denso, muito forte, que resulta numa viagem interior de alguém que, na sua perplexidade e solidão, procura e encontra a resposta que tanto buscava. Orientei esta Oficina sob o lema  da minha campanha: «Liberdade Incondicional. Manuela Gonzaga.


Estou presa, confinada a quatro paredes, Este espaço deixa-me em pânico. Sou claustrofóbica. Parece que acordei de um sonho. Sinto-me abafar. Sinto que vou morrer, e não quero. Amo a vida e vou lutar por ela. Porque estou aqui?! Há quanto tempo e quanto mais estarei? Nem me sinto só, tal é o turbilhão de sentimentos e pensamentos. Penso: «E agora?» Olho pela janela pequena, acima da cama estreita e vejo o sol. Paro, admirando esta liberdade que ele tem e me transmite. Percebendi que a vida está fora, à minha espera. Vou reencontrá-la.

No pequeno espaço da cela há um espelho. Desvio o olhar, porque não quero confundir o que sou fora, com o que sou no meu interior. Percebo que tenho dois livros à mão, mas não me apetece ler. Deixo-os para depois, para momentos de solidão. Vou buscar papel e uma caneta e escrevo as frases que me vêm à cabeça. A minha roupa é malcheirosa e fria, quase húmida. Não gosto do cheiro do espaço, e cheiro o meu corpo que ainda tem o aroma da liberdade.

De repente, entram na cela duas pessoas que desconheço. Apresentam-se como guardas prisionais. Não gosto do seu aspecto. Mantenho-me em silêncio e respondo apenas ao essencial. Um deles parece-me transparente, o outro rude e falso. Entretanto, juntam-se-nos mais duas pessoas. São os novos companheiros de cela. Mal-humorados, vociferam e rogam pragas. Eu, sempre em silêncio, aguardo que a minha mente me abençoe com augúrios de luz e serenidade para saber como continuar sem me machucar mais. A alma sofre. O corpo sente esse sofrimento.

Depois, um dos guardas fez uma série de ameaças. Percebi que se destinavam a quem acabara de entrar. Senti que estava a proteger-me dos novos companheiros de cela. Um deles abeirou-se e fez-me perguntas. Não me apeteceu responder. Apenas lhe disse que me deixasse em paz. O outro pressionou-o para que não se metesse na vida de cada um. Se estávamos ali, por algum motivo seria, e certamente nenhum era bom.

Mas, e por mais que me esforçasse, não entendia o porquê de estar ali. Enfim, um dia saberia as razões. Um dia havia de sair. O importante era manter a lucidez como aliada da minha sobrevivência. Tranquilizei-me.

De novo o espelho. Agora já pude ver-me e observar a minha postura, rectilínea e firme. Respirei melhor. Precisava encontrar quem me pudesse dizer porque me encontrava naquele lugar. Anoitecera. Deitei-me, e de cansaço, adormeci. Sonhei que tinha lutado e que, nessa luta, feri alguém. Portanto, era culpada. Afinal a minha prisão estava dentro de mim própria. Era prisioneira das emoções, que aprisionavam o meu livre arbítrio e acorrentavam o meu ego.

Ao acordar, agradeci ao companheiro de cela. Ele sorriu. O guarda prisional veio buscar-me. Conduziu-me junto de alguém que me aguardava numa sala. Sorriu também. Eu respondi-lhe do mesmo modo. Esperei. O visitante entrou. Abraçámo-nos. Era a minha consciência, iluminada pelo sol, que entrava pela janela da prisão que eu, naquele momento, abandonava. Afinal, tinha sido vítima de um engano. Fui liberta. Acordei a minha sensação de estar no interior do meu ser onde posso sempre voltar, acompanhada pelos amigos da minha vida: o coração e a razão.

Ninguém me condenou. Então, não vou condenar-me também. Bom dia Vida… Bom dia Amor, na companhia de todos os seres. Afinal não foi preciso ler os livros. Hoje, li na própria vida e voltei a apreciar o cheiro do meu corpo, que afinal é um templo onde a não matéria vem orar. O motivo da minha auto-prisão encontrava-se na minha mente.

Fátima Gabriel
14-11-2015 (Espaço PAN Porto)




segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A luz da liberdade

O primeiro texto que me foi entregue - na sequência de uma nova Oficina de Escrita, justamente intitulada Liberdade Incondicional (lema da minha candidatura às Presidenciais 2016), é assinado por Frederico Cotta. É um conto muito belo, que vos convido a ler com muita atenção. Merece
Manuela Gonzaga

Anã branca, reconstituição gráfica
crédito: Casey Reed/NASA

Acordo e não sei onde estou. Olho à minha volta e nada reconheço. Que faço aqui? 

Numa das paredes há um espelho. Levanto-me, e lentamente aproximo-me. Mas não me conheço a imagem  refletida. Afinal, quem sou? Há quanto tempo estou aqui?

Escrevo. Passo o tempo entre papel e caneta. E a espreitar o céu por um minúsculo quadrado gradeado que me permite ver o mundo lá fora e me faz sonhar com a liberdade dos pássaros, que passam diante de mim, a voar. O meu melhor amigo é a solidão, sendo ao mesmo tempo o meu maior inimigo. A solidão enche o meu espírito de liberdade, pois estando só, aqui, nada desejo, de nada preciso. Mas ao mesmo tempo, e reconheço a minha contradição!, a falta de contato com a natureza, os animais e outros humanos como eu, deixa-me vazio e desoladamente só. Tão só que temo por perder o que me resta, a minha sanidade, a minha humanidade.

A imaginação, porém, é a minha grande aliada. Leva-me aos confins do universo. Permite-me observar estrelas nascerem e morrerem. Contemplo a explosão de energia e matéria, os seus elementos a espalharem-se pelo tecido do espaço e do tempo. Pelo universo.

A mesma matéria de que são feitas as estrelas, é a que compõe o meu corpo. Os mesmos elementos que me permitem existir e pensar, estão presentes nestas quatro paredes que me confinam. São os tijolos do próprio universo. A matéria-prima de astros e galáxias. Sinto-me minúsculo, igual em composição a todos os seres com quem partilho esta existência. E se sou igual, não posso ser superior, a humanos ou não humanos. Porém, esta mesma imaginação é minha inimiga, reduzindo-me, aliciando-me, dando-me vontades e, pior ainda, anseios e desejos.

É neste momento que o meu espírito se deixa, novamente, prender! O desejo torna-se a minha prisão, aprisionando-me a esta realidade, com correntes tão pesadas que até conseguem amarrar o meu espírito.

Olho de novo ao espelho. Uma vez mais, não reconheço a imagem que vejo, mas agora, deixo que o papel e a caneta me definam e desenhem de modo a que me possa reconhecer. E, por fim, consigo ver refletido na superfície espelhada um brilho que reconheço.

Aquele brilho nos olhos, eu conheço. É a luz da liberdade.

Frederico Cotta
Porto, 14 Novembro, 2014

terça-feira, 10 de março de 2015

A Candeia


De Fátima Belling este lindíssimo conto a deixar margem para muito sonhar. Extremamente bem escrito, pede mais, ou melhor, suscita-nos a nós, leitores, muitas perguntas. É uma narrativa breve, intensa e misteriosamente comovedora. Apetece tanto vê-la crescer até ao romance. Será? MG



A Candeia

A ponte inspira-lhe medo.

Na verdade, a ponte inspirava medo a toda a gente, e dizia-se até que era assombrada.  O poderoso penhasco que a envolvia, muitas vezes fendido, projectava na sua superfície espinhos de sombra que a madeira velha arrebatava, oscilante, a cada passo. A água estagnada não produzia qualquer murmúrio tranquilizador, antes reverberava em advertência.

Os pés descalços seguindo pegadas e rastos na terra húmida, ela pousa mais uma vez o carrego. Não é o negrume, o ar gélido, que a assustam. Nem as lendas de espíritos malditos. Nem a sombra imutável do penhasco, qualquer que seja a hora do dia. É, sim, a revelação de uma dor que atravessa os séculos e que paira no ar como um lamento.

Perturbada, ajoelha sobre uma laje triangular, reza, e só então prossegue. A laje abriga, desde há muitos anos, um ninho de escorpiões.

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Ele percorre mais uma vez o caminho.

A Lua, cúmplice, esconde-se para encobrir a sua silhueta na orla da floresta, tão antiga e cerrada que, dizia-se, nem homem nem animal  lá conseguiam entrar.

Um longo manto esconde os compridos cabelos grisalhos e os últimos  vestígios daquilo que é durante o dia:  Senhor de terras e de gados, respeitado por padres e malfeitores, padrinho desejado de todas as crianças pobres.

Passo a passo, ele só conta com o reflexo das estrelas no orvalho nascente para o alumiar. Mas os arbustos esquivam-se para que não tropece, as pedras afastam-se dos seus pés, o zimbro afiado desvia-se do seu rosto. E os pinheiros rugosos, os únicos que sabem as feridas que tem nas mãos, alisam os troncos por compaixão.

O caminho finda no pequeno vale, onde o riacho o saúda e se aquieta  num sussurro. A casa de pedra cinzenta surge no meio da encosta, entre o céu e a terra, de um lado a fraga altiva, do outro os azevinhos perenes. E a cerejeira-brava. Em tempos, uma cascata jovem beijara o rochedo, unindo-se ao riacho. Mas há muito que secara.

É nesse vale que, atravessando as urzes, os escorpiões interrompem a caçada para lhe trazer notícias. Notícias dela, por cuja luz ele espera, o peito dorido e doente de remorso.

Enfim a janela abre-se, surge a candeia e o ar torna-se resplandecente. A luz flui da casa de pedra, dispersa-se em miríades de partículas que o envolvem e por um momento, um único momento, ele recorda ... recorda um tempo em que ela cheirava a musgos e madrugadas, em que acordavam entre risos e campânulas de prata.  Um tempo em que os corpos de ambos haviam desenhado sóis poentes de desejo nas águas do rio.

A candeia não se apaga, mas a lua espreita, o riacho saltita ansioso. Ao longe, o pio da coruja ecoa, urgente. O manto regressa ao buraco no tojo, e ele afasta-se, mais uma vez, da floresta inexpugnável.

Para logo regressar.

E tantas vezes percorre o caminho, que o riacho altera o curso para o acompanhar. Tantas vezes percorre o caminho, que o lobo de olhos mansos o espera nas encruzilhadas, e a cobra d’água se enrola confiante nas suas pernas. Tantas vezes percorre o caminho, que a escuridão entra na sua vontade, mistura-se com seu sangue, para não mais se distinguir o homem e a noite, sombra de sombras, cinzento o homem, negra a noite.

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Na casa de pedra cinzenta no meio da encosta, entre o céu e a terra, com a fraga fendida de um lado, e do outro os azevinhos perenes e a cerejeira brava, ela abre a janela. Escuta, serena. Não há nenhum som da cascata outrora jovem, e ela enche então a candeia de azeite, e acende-a. Acende-a para ele, todas as noites. Imagina-o na aldeia, os compridos cabelos negros, os olhos azuis como um céu sem nuvens, a cuidar das terras e dos gados.

Acende a candeia, para que Deus o proteja.

Fátima Belling

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2015

 

sábado, 7 de março de 2015

Pior que inimigos

Da nossa oficina de Encontros Inesperados ou Blind Date, sai mais um fabuloso texto. É um conto que nos coloca no palco de uma pequena tragédia rural, mas que, mais ainda, nos remete para o arquétipo dos irmãos que se odeiam, um tema que semeia as páginas do Velho Testamento, e toda a mitologia clássica. De Ana Moita dos Santos, uma narrativa poderosa, que se lê de um folego e nos, me enche de orgulho. MG


Eduardo Carrillo (1937-1997), 'Two Brothers Fighting,' 1986, óleo sobre tela
 
PIOR QUE INIMIGOS

Como era possível dois irmãos odiarem-se tanto? Lutavam um com o outro desde pequenos e, agora, ali estavam eles, homens feitos, prestes a matarem-se.

Na praça defronte da igreja, depois da missa de domingo a que assistiram com a mãe, uma troca áspera de palavras entre os dois dera início àquela dança mortal.

De navalhas em riste, olhos fixos um no outro, os dois homens movimentavam-se, ondulando os corpos como serpentes prestes a atacar, dissimuladas mas totalmente concentradas, a medirem a presa, aguardando uma oportunidade para investir, com toda a força e energia de que eram capazes.

Podiam morrer nos dez minutos seguintes, mas pareciam não se importar. De olhos presos nos olhos do outro, não desviavam a atenção, nem mesmo quando a velha gritava:

Parem! Não quero que lutem! Parem!

Nada, mesmo nada, podia interromper aquela dança. Estavam dispostos a morrer na luta que haviam iniciado há décadas atrás, desde que se conheciam como gente.

Pior que inimigos, eram irmãos.

 

IRMÃOS

O mais novo, José, sempre fora o preferido da mãe. Manuel nunca deixara de sofrer com isso. Tinham apenas ano e meio de diferença e, desde que José nascera, Manuel nunca mais se sentira querido.

A mãe, aquela velha mal penteada e enrugada, tinha sido uma bela mulher e Manuel idolatrava-a com todas as suas forças, apesar de saber que ela não o amava. Só queria que ela lhe desse um pouco de atenção, que gostasse dele um bocadinho… mas a mãe só tinha olhos para o irmão mais pequeno. Estava sempre a rebaixá-lo, comparando-o com o irmão. Este sim, era o seu mais que tudo! Lembrava-lhe o marido adorado, Vasco, que tinha falecido pouco tempo depois do nascimento de José, deixando-a sozinha com os dois para criar e uma ferida de saudade lívida, no peito inconsolável.

Manuel só o conhecia pelas fotografias nas molduras de latão amarelo da sala de estar: alto, bonito, rosto esguio, louro, de olhos azuis, pele branca e sorriso matreiro no canto dos lábios finos. José parecia-se muito com o pai.

Manuel, pelo contrário, baixo e moreno, de cabelo castanhos e olhos pretos, saía ao lado da mãe. Não era bonito, mas atraente, à sua maneira. Rosto quadrado, feições bem marcadas, quase rudes. Estava sempre de semblante carregado. Nunca sorria, a não ser quando achava graça a alguma maldade.

Isto irritava a mãe, que tentava corrigi-lo, para que se parecesse mais com o irmão, bem-humorado e divertido. Em vão, diga-se, pois Manuel não seguia os seus conselhos. Pelo contrário, no mais íntimo de si, foram crescendo sentimentos tão destrutivos como facas de gume afiado, idêntico ao das navalhas que agora ele e o irmão empunhavam. Mágoa, ciúme e rancor, foram-se exponenciando, até se transformarem num ódio profundo e visceral contra José, que Manuel não conseguia evitar nem dominar.

Raios partam o meu irmão e o dia em que nasceu para me infernizar a vida! Por que razão a minha mãe não gosta de mim como sou?

A mãe ria-se de tudo o que José dizia, aceitava todas as suas ideias e estava a sempre a dizer-lhe:

Ainda bem que não dei ouvidos ao teu pai. Ele dizia que a vida não estava para ter mais do que um filho. Mas eu insisti em ter pelo menos mais um. Ser filho único não é bom.

Manuel ouvia isto vezes sem conta e logo arranjava um pretexto para bater no irmão. Batia-lhe e gritava:

Ser filho único é que eu gostava, malandro! Só nasceste para me prejudicar.

Como era mais forte e robusto, abusava. José encolhia-se e, sem responder, esperava que a raiva do irmão passasse. Desde os seis anos que se lembrava de apanhar dele. Ficava com o corpo cheio de nódoas negras, mas nunca fazia queixa à mãe. No fundo, achava que merecia porque o irmão só lhe batia por a mãe gostar mais dele. Por outro lado, sabia que se fizesse queixa, a mãe zangava-se com o Manuel e punha-o de castigo. Depois, apanhava mais, mal ela se fosse embora trabalhar.

José sofria com o facto de o irmão não gostar dele e dava voltas à cabeça para encontrar uma forma de serem amigos. À noite, na cama, estava muito tempo sem dormir, a pensar no que poderia fazer para que isso se tornasse realidade. Por vezes tentava falar com o irmão, mas este começava logo a bater-lhe, e José calava-se.

Não havia nada que pudesse fazer. O problema não estava em si, mas na mãe.

A MÃE

A mãe olhava desesperada para os dois filhos, prestes a matarem-se à navalhada. Há muitos anos que intuíra que uma luta fatal poderia vir a acontecer, mas nada fizera para o evitar.

Sentia-se culpada. Nunca tinha sido capaz de controlar aquela guerra surda entre os dois e agora, pela segunda vez, arriscava-se a perder a pessoa que mais amava na vida.

Recuou, duas décadas atrás. Estavam os quatro no quintal da casa, num dia quente e soalheiro de Agosto. Ela, Vasco e os dois filhos. José, com apenas oito dias de vida, dormia no berço e Manuel, de dezoito meses, brincava no jardim com uma forquilha de cabo alto, que o pai utilizava para fazer jardinagem. A mãe pedia-lhe que largasse a forquilha, pois podia magoar-se, mas a criança, traquinas, não lhe obedecia. O pai interveio e o Manuel, quando o viu a correr na sua direcção para lha tirar, largou-a de repente e pôs-se a fugir, soltando gargalhadas altas e sonoras. Estava alegre, pois pensava que o pai queria brincar com ele. O pai, sem reparar, pisou a forquilha, de tal forma, que os dentes desta se espetaram com violência no seu pescoço, apanhando-lhe a glote, não lhe dando hipótese de escapar. Rapidamente se esvaiu em sangue. Quando a ambulância chegou, já estava morto. “Foi o maior desgosto da minha vida”, recordou a mãe, destroçada por aquela memória tão trágica. Lágrimas grossas e ácidas caíram-lhe dos olhos, queimando-lhe o rosto.

E foi nesse momento que percebeu. Culpara sempre o Manuel pela morte do marido. E, só agora, que se confrontava com a possibilidade de o seu filho querido poder morrer às mãos do irmão, tomava consciência disso.

Mais uma vez, só se preocupava em salvar o José.

 

A LUTA FINAL

Haviam passado cinco minutos apenas, desde que a luta se iniciara, mas parecia terem decorrido várias horas. A tensão que se sentia no ar era sufocante. Duas serpentes ondulando na praça da igreja, uma à espera que a outra tomasse a iniciativa de atacar.

Vários populares assistiam à luta, a uma distância segura dos irmãos, não fosse aquilo acabar em sangue. Alguém informava que a Polícia já tinha sido chamada e podia chegar a qualquer instante.

Foi, então, que Manuel avançou de navalha em punho, olhos chispantes, boca aberta, num esgar aterrador. José, atento, desviou-se da navalha mas não contra-atacou. Ficou atónito, a olhar o irmão. Finalmente, dava-se conta de que ele seria mesmo capaz de o matar. Perante a atitude desconcertante de José, Manuel hesitou mas, logo em seguida, deu um salto ágil em frente, impulsionando o braço que empunhava a navalha, na direcção do irmão. Mais uma vez, José conseguiu desviar-se, tendo a navalha embatido na pedra da igreja, partindo-se em dois bocados.

Foi, então, que a mãe, desesperada, se colocou entre os dois, gritando:

Manuel, eu sou a culpada, não mates o teu irmão!.

Mãe, tu não és culpada de nada – retorquiu Manuel com um grito. – A culpa é toda dele. Sempre te quis só para ele.

Não é verdade, Manuel. Eu é que sempre te culpei pelo acidente que acabou com a vida do vosso pai confessou a mãe.

E, agarrando-lhe com força a mão direita, fê-lo largar o bocado de navalha que ele ainda segurava, e continuou:

Pensei que, se me tivesses obedecido quando te ordenei que me desses a forquilha com que brincavas, talvez ele ainda estivesse vivo. Hoje percebi o mal que tais pensamentos nos fizeram aos três. Nunca te dei amor e fiz com que odiasses o teu irmão, que não tem culpa de nada.

Manuel não conseguia deixar de pensar no que a mãe acabara de dizer. E se tivesse sido obediente, o pai ainda estaria vivo? Tudo teria sido diferente com ele cá, disso Manuel não duvidava. Lembrou-se do carinho que o pai lhe dava, de como brincava com ele tantas vezes, do cheiro da sua pele que ainda hoje conseguia sentir, memórias boas de tenra infância... As lágrimas começaram a correr-lhe cara abaixo e, olhando para o irmão, pensou: “Eu devia matá-lo, riscá-lo do mapa! Mas, e se a culpa não é dele, mas minha? Ou da mãe?”.

José, que já tinha largado a arma, ergueu os olhos para o azul límpido do Céu sem nuvens, e rezou:

Meu Deus, como foi possível dois irmãos chegarem ao ponto de quererem tirar a vida um ao outro? Ajuda-nos, que nós já não sabemos o que fazemos!

Viu que o irmão se aproximava a passos lentos e cansados, trazendo a mãe pelo braço. Tinha uma expressão dolorosa no rosto e os olhos cintilantes de lágrimas. A mãe, em estado de choque, ainda mais desgrenhada, as faces enrugadas, vermelhas, queimadas de tanto chorar, pedia aos filhos:

Perdoem-me, perdoem-me! Perdoem-se um ao outro. Eu amo os dois.

Os irmãos olharam-se, extenuados de tanto ódio, desejosos de se afastarem da luta infernal que os tinha lançado naquela dança de serpentes enlouquecidas.

Pela primeira vez, Manuel desejou ser amigo de José. Este, por sua vez, relembrou as noites de criança em que não conseguia pregar olho, pensando em como poderia ganhar a amizade do irmão. Porém, nada fizeram.

Ainda não estavam preparados.

Ana Moita dos Santos, 22.02.2015

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Retratos de família

Se mergulharmos no baú das memórias, procurando entre aquelas histórias de família que sempre ouvimos contar, fotografias, cartas esquecidas, objectos pessoais, e outros retalhos de quotidianos passados que lhe componham o desenho, emergem histórias fabulosas com heróis e heroínas ou anti-heróis e anti heroínas  a caminho do esquecimento total.
 
Maude Fealy, USA, (1897-1971), uma das mais belas actrizes do cinema mudo
Vintage Photography
 
O desafio desta oficina é por aí. Vamos ressuscitar aquela bisavó muito louca, que fugiu de casa para seguir o seu sonho, provavelmente personificado por um aventureiro qualquer, desses capazes de tudo; mães-coragem e pais-heróis; o tio que se alistou na Legião Francesa para fugir de uma legião de amantes enfurecidas e de um sem fim de dívidas de jogo. Vamos procurar saber da tia que acabou na miséria com uma fortuna cifrada em papéis de doação de propriedades que não se sabe onde ficam. E da outra que, no desgosto da morte do marido, se sentou numa cadeira, muda, inerte e em lágrimas duramente meses, até os pais aparecerem ameaçando que lhe levavam os filhos pequenos - que cresciam â solta pela casa, entregues a uma velha empregada -, se ela persistisse em ignorar que a vida continuava.
 
 
 
 
 
Pessoas cujo sangue nos corre nas veias, ou gente que fez parte da vida de gente que está na nossa vida. Crescemos a ouvir as suas histórias, muitas vezes por meias palavras. Sem lhes darmos o devido valor, pois  só os anos e as grandes ausências permitem que, nalguns casos, justiça lhes seja feita. Prazerosamente, é bom de ver. Porque contar histórias, nossas ou dos outros, inventadas ou recontadas à nossa maneira de quem conta um conto acrescenta todos os pontos que lhe apetecer, é uma actividade mágica. Uma adição sem contra-indicações. Um voar sem limites. Uma paixão.
 
Como:
Ao longo de quatro aulas semanais, de hora e meia cada, vamos desenterrar lendas, intrigas, pequenas grandes tragédias, glórias, amores escondidos, mortes a destempo, ódios e paixões e saudades cujo prazo de validade já terminou.
Quando:
25 de Fevereiro; 4 de Março; 11 de Março; 18 de Março - com início às 18.30.
Onde:
Livraria Alêtheia, Rua do Século, nº13 - 1200-433 Lisboa (Estacionamento no silo da Calçada do Combro); Telefone (+ 351) 210939748 * Email: aletheia@aletheia.PT
 
Mais informações: Manuela Gonzaga, manuelagonzaga@gmail.com





 





quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Tão macias e delicadas, as mãos dela


O «Efeito Borboleta» suscitou tanto a imaginação dos participantes, que ficará como um marco. O ponto de partida foi um velho álbum de fotografias de casamento, que remontará aos anos 80, pelos detalhes do vestuário e decoração de interiores que emolduram os intervenientes desta narrativa. Ignoramos tudo sobre eles, daí a preservação das suas imagens de que daremos detalhes. Uma preciosidade que, há poucos anos, resgatei do chão, numa esquina do Bairro Alto, a que Alda Rosa faz toda a justiça. Ora leiam esta delícia de história que ela inventou. MG

«Fiquei com esta fotografia da Isabel. Como ela era linda.»

10 de Maio de 2014

Faz hoje trinta e quatro anos que me casei. Procuro na gaveta da velha cómoda as fotografias que a Isabel arrancou do álbum e me entregou, após a nossa separação. Aqui estão elas, já um pouco encardidas pela falta de cuidados que lhes prestei.

Sinto-me tão amargurado nestas águas furtadas da Rua Morais Soares, onde moro há quase seis anos. Um pequeno quarto com uma cama velha, um banco, a cómoda e uma mesa de madeira carunchosa com duas gavetas com os puxadores enferrujados. À frente, a janela de onde se vêem as águas furtadas dos prédios do outro lado da rua. Atrás, uma cozinha minúscula com um fogão que nem sempre uso, porque, por vezes, não tenho dinheiro para comprar a bilha do gás. O frigorífico está quase sempre vazio. Ao lado um pequeno espaço com um alguidar e um chuveiro, onde lavo a loiça e também tomo banho.

Estou nesta situação miserável, desde que fiquei desempregado. Até era um bom pintor da construção civil, mas os copos estragaram-me a vida. Além de destruírem o meu casamento, também me levaram ao despedimento. E, como se isso não bastasse, soube esta semana que tenho um cancro da laringe. O médico disse que era devido ao álcool e ao tabaco. Não sei como vou conseguir sobreviver.

Olho a primeira fotografia e lá estou eu a acender o cigarro. Que raiva, apetece-me rasgá-la. A Isabel detestava que eu fumasse. Estava sempre a dizer que parecia que eu andava a limpar cinzeiros com a minha roupa. E eu zangava-me com ela, gritava e, às vezes, até lhe batia. Mas afinal ela tinha razão. Eu sei que ela me amava. Foi a Isabel que quis casar, não só por estar grávida, mas pelo amor que sentia por mim. A família dela não desejava este casamento, mas ela opôs-se a todos, criando grandes conflitos. Eu, pelo contrário, não me apetecia nada dar aquele passo. Até gostava dela, mas não queria ter filhos, tão novo. E, logo por azar, isso aconteceu. A minha mãe dizia-me que ajudaria a cuidar do bebé, mas, um ano depois, teve um cancro do útero e morreu em seis meses. Teve pouco tempo para estar com o Bruno.

No início, ainda me esforçava para ajudar a Isabel, mas depois fui-me aborrecendo com os pedidos dela, para que parasse de fumar e de beber. O choro do Bruno, durante a noite, deixava-me fora de mim. Entrava em casa pelas dez da noite, comia qualquer coisa, pois já tinha petiscado com os amigos na taberna, e ia deitar-me. Daí a pouco, o garoto desatava numa gritaria e eu ficava furioso. Gritava com ele e com a minha mulher. Os vizinhos, às vezes, chamavam a polícia.

Claro que tudo isto só poderia ter acabado em divórcio. Concordei que a Isabel ficasse a morar na casa que os padrinhos lhe tinham oferecido. Era justo. Assumi a minha responsabilidade na situação. Aluguei uma casa nos Anjos. Era pequena, mas confortável. Sempre que me era permitido, cuidava do Bruno aos fins-de-semana e durante as minhas férias. Depois ele cresceu, e começou a ter problemas de comportamento na escola e a andar com más companhias. Aos 16 anos, já fumava charros e heroína. Eu tentava dar-lhe conselhos, mas ele culpou-me por ser assim, o que me deixou de rastos. Nunca mais voltou à minha casa. A mãe dava-lhe dinheiro para os consumos, porque ele a ameaçava. Sei que está numa comunidade terapêutica há cerca de seis meses, foi a Isabel que me disse ao telefone. Continuámos sempre a falar até há pouco tempo. Mas depois, deixei de atender as chamadas, porque tenho vergonha que ela saiba o estado a que cheguei.

Coloco todas as fotografias sobre a mesa. Até o estado delas demonstra o meu desleixo. Tenho de arranjar uma caixa para as colocar. O ideal seria um álbum, mas não tenho dinheiro nem jeito para as ordenar. Fui eu que coloquei as fotos do nosso casamento naquele álbum castanho com cisnes. A Isabel não gostou nada dele, dizia que era piroso e que eu tinha colado tudo de qualquer maneira. Deveria ter sido mais atento aos pormenores. Aqui está o Luís, o meu querido irmão, que veio de França para o casamento. Ele todo sorridente e eu com este ar de indiferença. E o Joãozinho, o meu sobrinho, que me adorava e que dizia, que quando fosse crescido, queria pintar todas as paredes do mundo, como o tio. Espero que tenha concretizado os seus sonhos, e que esteja bem. Há tantos anos que não falamos. Afastei-me de todos.
Fiquei com esta fotografia da Isabel. Como ela era linda. Aqueles cabelos pretos, os olhos castanhos e muito expressivos, o ar sereno. Apesar de cansada pelo mal-estar da gravidez e todos os conflitos familiares que lhe causei, aqui está ela sorridente, a brindar comigo a um futuro que ela desejava feliz. E eu estraguei tudo. Como me arrependo do que fiz. Não a vejo há tanto tempo, como estará? Que saudades.

Esta é uma foto na escadaria da Igreja de Santo António, onde nos casámos. Estão aqui pessoas que já não reconheço. Mais a tia Judite, que criou a Isabel desde os dois anos, após a morte dos pais dela num acidente de mota. Foi a sua madrinha de casamento. Era uma senhora elegante e respeitável. Não gostava de mim, porque a enfrentei e roubei a sua menina. Se tivesse sido mais cuidadoso, talvez tivesse conseguido o seu apreço. E o tio Adelino, que foi o padrinho e veio de Alcácer do Sal para apadrinhar a sobrinha. Um homem trabalhador, dedicado à agricultura. As mãos dele, tisnadas pelo sol, ilustravam o seu trabalho árduo no campo. Avisou-me para não dar mais desgostos à família. Mas eu estava ali, quase por obrigação.

Já não me lembrava na minha figura, sentado nas ameias do Castelo de São Jorge. Enquanto a Isabel olhava para mim com um ar embevecido, eu já pensava nas noitadas com os meus amigos dos copos. Sou um inútil. Nem sequer consigo matar-me, tenho medo de falhar. O que vou fazer deste pouco tempo que me resta?

Vou escrever à Isabel. Quero pedir-lhe desculpa por lhe ter destruído parte da sua vida. Sei que sempre lutou, que é uma óptima enfermeira, mas só lhe provoquei preocupações e medos e nem a ajudei a cuidar do nosso filho como um verdadeiro pai deve fazer. Agora é tarde.

Sinto-me como um tornado que devastou tudo à sua volta.

§

 13 de Maio de 2014

Estou a chegar a casa, depois de uma noite extenuante no hospital. Cada vez tenho mais trabalho. O serviço está muito pesado, cheio de idosos, muito doentes e solitários, alguns abandonados pelas famílias. É o resultado desta crise em que o país se encontra. O que vale, é que de São José à Mouraria é um pulo. Só penso em chegar a casa para tomar um banho relaxante e deitar-me um pouco.

Entro no prédio onde moro desde o casamento. Foi o tio Joaquim e a tia Judite que me ofereceram o apartamento. Sempre gostei muito deste local. É um bairro simpático, onde todos nos conhecemos e falamos. Nem parece que vivo numa grande cidade. Após o divórcio decidi fazer algumas remodelações na casa. Pintei-a com cores alegres, comprei mobiliário moderno e enchi as paredes com serigrafias dos pintores que mais aprecio. Dei uma nova alma ao espaço.

Tenho uma carta na caixa do correio. Não acredito! O Vítor escreveu-me. Tão estranho, ele que não tem respondido às minhas chamadas, o que me deixa furiosa. Aquele cretino, a quem sempre tentei proteger, lutando contra toda a minha família! Só nos separámos quando cheguei ao limite. Não conseguia suportar o seu feitio, o seu hálito constante a álcool e a tabaco e as suas agressões, que, a certa altura, passaram a ser diárias. Felizmente, que ele não levantou problemas com o divórcio e até colaborou na educação do Bruno.

O meu filho, outra preocupação. Desde o início da adolescência que se tornou agressivo. Depois começaram os consumos de drogas, com comportamentos delinquentes e nunca aceitando qualquer ajuda para se tratar, atribuindo ao pai a culpa de ser assim. Felizmente que há seis meses procurou uma comunidade terapêutica (depois das infinitas por onde passou ao longo dos anos), onde se mantém e com projectos de futuro. Penso que os trinta e três anos e a mais recente namorada, a Joana, terão constituído a principal motivação para procurar tratamento.

Entro em casa. Pouso a mala e vou até à sala. Abro a janela e sento-me na varanda. Está um lindo dia de Primavera. Um tempo igual ao do dia do nosso casamento. Abro a carta do Vítor e começo a lê-la.

Querida Isabel:
Desculpa estar a escrever-te, mas hoje sinto-me muito amargurado. Faz hoje 34 anos que nos casámos. Deves achar estranho eu recordar esta data, mas apesar de tudo o que te fiz continuo a gostar de ti. Fui à procura das fotografias que me entregaste quando nos separámos. Senti-me quase um criminoso ao revê-las. Aquele que devia ter sido um dia tão bonito para nós, foi o princípio do nosso inferno. Percebi que mereço o castigo que tenho. Provavelmente, estarás zangada comigo por não atender os teus telefonemas há algum tempo. Mas não queria que te apercebesses da situação miserável em que me encontro: desempregado, a viver numas águas furtadas e desde há uma semana com mais uma chatice: andava rouco há uns meses, fui ao médico, fiz uns exames e ele disse que tenho um cancro na laringe. Talvez seja operado e não sei se terei de fazer mais tratamentos. Não queria estar a incomodar-te com os meus problemas, mas não aguentei e decidi escrever-te.

Peço-te desculpa mais uma vez por todo o mal que sempre te fiz. Se quiseres rasga esta carta. Mas aceita um beijo deste homem arrependido.
Vítor Santos
Lisboa, 10 de Maio de 2014

Como é possível o Vítor estar assim e não me ter procurado anteriormente? Não consigo parar de chorar. Ele deve estar um farrapo. Sozinho, sem família, sem amigos. Reconheço que não foi o melhor marido, nem o pai ideal, mas não merecia estar nesta situação. O que poderei fazer para ajudá-lo? Tenho de encontrar alguma solução. Se estou sempre pronta para minimizar o sofrimento dos doentes que cuido, é da minha responsabilidade ajudar o pai do meu filho. Entro na sala, dirijo-me à estante e pego no álbum de fotografias do nosso casamento. Volto à varanda, sento-me e começo a folheá-lo.

Tantas folhas vazias. Delas saíram as fotografias que entreguei ao Vítor, na altura da separação. Aqui está a primeira fotografia: como me recordo da minha alegria a cortar o bolo. Mas, na altura de servir o champanhe, senti uma pequena contracção, que me deixou preocupada. Era o Bruno a querer participar na celebração.

Sempre detestei esta vieira partida com a nossa imagem. Parecia que aquele pedaço a menos predizia algo que faltava entre os dois. E nesta fotografia, a tia Judite a olhar para nós, observando-nos a comer o bolo. Havia um ténue sorriso nos seus lábios, mas o seu semblante era de preocupação, pois o Vítor não lhe inspirava confiança. Como nos conhecíamos bem. Foi ela que cuidou de mim desde os dois anos, quando os meus pais morreram de acidente. Como os meus tios não podiam ter filhos, acolheram-me como a sua menina. E depois ficaram tão desiludidos com a minha decisão.

Mais uma vez a tia Judite, sentada ao meu lado, no carro, a olhar para fora e, ao ver o ar de indiferença do Vítor, ficou com este semblante, mistura de zanga e de preocupação.

Aqui estou com os meus padrinhos: a tia Judite e o tio Adelino. O que será feito dele? Nunca mais voltei a Alcácer do Sal. E esta fotografia demonstra fielmente o meu estado de espírito naquele dia. Por um lado o sorriso, significando a convicção do acto que estava a realizar e, por outro, aquele ar sério, pensativo, como que receosa do futuro que se avizinhava.

Nesta foto, o tio Joaquim que me levou ao altar. Era um homem afectuoso e foi o único que acreditou em mim, que aceitou a minha decisão e me transmitiu confiança. Morreu há dez anos, após um AVC. Nos últimos meses de vida, ajudei a cuidar dele. Ia lá a casa diariamente, antes ou após o trabalho. A tia Judite reconciliou-se comigo e até à sua morte há um ano, por insuficiência cardíaca, fomos novamente como uma mãe e uma filha. Que saudades tenho deles.

Não olhava para este álbum desde o divórcio. Inicialmente apeteceu-me deitá-lo para o lixo, mas alguém podia encontrá-lo e reconhecer-nos. Assim, decidi colocá-lo na estante, num local onde não me incomodasse. No entanto, agora sinto um calafrio ao recordar o Vítor e o nosso casamento. Tenho de fazer alguma coisa. Tenho de telefonar-lhe. O sono já desapareceu. Vou tomar um duche rápido e, de seguida, ligar ao Vítor.

O telefone está a tocar. Olho para o écran. Não acredito, é a Isabel. Fico com as pernas a tremer. Sento-me na cama. Tenho mesmo de atender.

― Isabel, perdoa-me.

As palavras saltaram-me da boca. Nem precisei de pensar no que haveria de dizer.

― Vítor, porque não respondeste às minhas chamadas? Fiquei tão preocupada com a tua carta. O que se passa?

Esta é a Isabel com a sua voz firme, mas também carinhosa, a mostrar a sua preocupação comigo.

― Desculpa, mas sentia tanta vergonha que me visses no estado a que cheguei. Estou um farrapo. Doente, sem amigos, sem dinheiro. Sem qualquer solução. Não quero preocupar-te. Só quero que me perdoes por todo o mal que te fiz.

Será que a Isabel vai acreditar em mim? Ou vai achar que é mais uma das minhas manipulações, uma nova tentativa de reconciliação? Nem tenho tempo de pensar, a voz dela corta-me o raciocínio.

― Posso ir a tua casa? Trabalhei de noite no Hospital e vou estar de folga até amanhã à tarde.

Sinto o corpo todo a tremer. Ouvir esta voz firme e doce, provoca-me medo, mas também uma enorme alegria. Há tanto tempo que não me sentia assim.

― Então Vítor, porque não me respondes? Precisamos de conversar. Vou preparar o nosso almoço.

― Desculpa Isabel, nem sei como agradecer-te. Sinto-me tão nervoso, mas vou arranjar força. Então, até já. Um beijo.

― Beijinhos, até já. Chego por volta da uma hora.

E agora? Tenho de me preparar o melhor possível para receber a Isabel. O que é que ela vai achar de mim? Abro a janela. Está um lindo dia. Faço a cama, arrumo o quarto, limpo o fogão e lavo a loiça do jantar de ontem: o tacho onde aqueci o feijão-frade, os talheres e o prato onde comi a lata de atum com feijão. Não coloquei azeite, porque não tenho. Mas deixou-me o estômago reconfortado. Tenho de ir fazer a barba. A lâmina está gasta, preciso de ter cuidado. Depois do banho de água fria vou vestir as calças e a camisola que o meu senhorio me deu há duas semanas. Ainda só usei esta roupa para ir ao médico. E ela como estará? Lembro-me daqueles olhos castanhos muito expressivos e dos cabelos pretos sempre cuidados. Sinto tanta vergonha que me veja assim. Mas tenho de aceitar a ajuda que ela me quiser dar.

Desligo o telefone. A voz do Vítor é a de alguém que está a sofrer muito e a sentir-se perdido. Não me esqueço da vida infernal que ele me deu, mas fiquei com um aperto no peito ao ouvi-lo. Foi meu marido. É o pai do Bruno.

Abro a porta do congelador. Aqui estão duas postas de bacalhau. O Vítor gostava muito de bacalhau cozido com uma batata e grão. Provavelmente já não come isto há algum tempo. Deve estar a passar grandes dificuldades. Vou preparar almoço para dois. Ponho o bacalhau a cozer lentamente, noutro tacho cozo duas batatas. Quando subir a Avenida Almirante Reis, passo no supermercado e compro grão, azeite, vinagre e alguma fruta. Oxalá que o Vítor não se envergonhe com a minha ajuda.

Ainda é cedo. Vou à varanda e sento-me novamente no sofá de verga. Que dia tão bonito. Oiço o chilrear dos pássaros nas árvores. Penso na minha vida. Escolhi enfermagem, talvez com o desejo de cuidar do sofrimento dos outros. E aqui estou eu, mais uma vez, de braços abertos para ajudar o Vítor. Apesar de ter sido alguém que me fez tanto mal. Nunca imaginei, que algum dia, esta situação pudesse acontecer.

Está na hora de sair. Coloco o bacalhau e as batatas numa caixa térmica, pego na minha mala e fecho a porta. Daqui até à Rua Morais Soares ainda vou demorar um pouco. Aproveito para ver umas montras. Estou a entrar na Almirante Reis. Nunca percebi muito bem porque é que na mesma rua existem dois nomes: Rua da Palma e Avenida Almirante Reis. Passo pelos Anjos e ali está a loja de electrodomésticos onde habitualmente compro os electrodomésticos para casa. Espero que não estejam muitas pessoas no supermercado. Estou desejosa de ver o Vítor. Tenho sorte, as caixas registadoras encontram-se praticamente vazias. Pego na lata de grão, num saco de maçãs, noutro de peras, uns sumos, uma sopa Primavera, uma garrafa de azeite, outra de vinagre e um pacote de chá de camomila. Pago e saio.

Estou em frente ao prédio onde o Vítor mora. É um edifício degradado. Toco para o 6º andar. Entro. O elevador está avariado. Subo as escadas de madeira com os sacos na mão. Sinto-me cansada. E então, a porta abre-se e aqui está o Vítor. Tão magro, tão envelhecido. Largo os sacos e abraçamo-nos. As lágrimas saltam-me dos olhos. Entramos em casa. Olho à volta e sinto um arrepio. Como é possível viver nestas condições? Um espaço pequeno, escuro, a cheirar a humidade, sem conforto.

― Vítor, há quanto tempo? Porque não falaste comigo antes? Certamente que estás a passar muito mal.

Sentando-se na cama a soluçar, ele indicou-me a cadeira à sua frente. Não conseguia dizer nada. Parecia que as palavras se tinham sumido. No seu olhar leio um sentimento de gratidão e amor.

― Vamos ter muito tempo para falar. Agora, toca a aquecer o grão. Tu, põe a mesa. Ainda te lembras?

Também me apetece chorar. Mas não posso. Olho para a mesa e lembro-me da toalha às flores que já não uso e de uma fruteira de metal. Da próxima vez que cá vier trago-as. Sempre tornarão o espaço um pouco mais acolhedor. Depois almoçamos quase em silêncio. Ambos temos a voz embargada. O almoço está saboroso. Quando terminamos, levantamo-nos e vou lavar a oiça. O Vítor ajuda-me. Como ele envelheceu. Deve estar mesmo muito doente.

― Trouxe chá de camomila. Aquece a água. Vamos conversar.

Saboreamos o chá delicioso e, calmamente, eu inicio a conversa:

― Vítor, quero saber tudo. Onde estás a ser acompanhado? Mostra-me os exames.

Uma leitura rápida permite-me perceber de imediato que as análises ao sangue e à urina não têm alterações. Na radiografia do tórax só existe uma dilatação do coração, obviamente relacionada com a hipertensão arterial e o alcoolismo do Vítor. O TAC torácico e abdominal não apresenta metástases. Aqui está o resultado da biopsia: um carcinoma pavimento-celular, estádio I, glótico. Que alívio! Não é dos mais graves. O Vítor olha-me atentamente, com um ar assustado. Tem um tremor quase imperceptível. Levanto-me e agarro nas suas mãos geladas.

― Este tumor não é tão mau como parece. Tens de ser operado e depois fazer uns tratamentos. Não tenhas medo, não é grave. E como os exames estão bem, podes voltar a fazer uma vida normal. E agora, estarei ao teu lado, para te poder ajudar.

Sinto as mãos do Vítor mais quentes, mas a tremer. Os seus olhos estão rasos de lágrimas. Abraço-o. Também estou comovida.

― O que tu queres é mimo! Vamos tratar de ti. Vamos preparar as coisas para levares para o hospital. Não te preocupes. Quando fores internado, estarei contigo, mesmo que precise de fazer uma troca no serviço.

O dia passou a correr. A casa já não parece a mesma, limpíssima, arrumada, um ar mais agradável.

Curioso! Já estamos com fome novamente. Convido o Vítor para jantarmos num pequeno restaurante de comida tradicional portuguesa, na Avenida Almirante Reis. Interrompemos diversas vezes a refeição. Olhamos um para o outro e sorrimos. Parecemos um casal de namorados. No fim despedimo-nos com um abraço comovente.

§

 3 de Junho de 2014

É meio-dia. Como o tempo voou. Já tenho a mala feita. A operação é já amanhã. Não posso ter medo. Acho que não me esqueci de nada. Vai tudo correr bem. E eu, que há menos de um mês queria desistir da vida. Tocam à porta. É a Isabel que me vem buscar, tal como combinámos. Desço a escada, sentindo a mesma alegria e o tremor do dia em que nos reencontrámos.

Que surpresa! A acompanhar a Isabel está o meu sobrinho João. Não sabia dele há tantos anos. Está um homem. Deve ter perto de quarenta anos. Damos um grande e emotivo abraço.

§
Oiço uma voz enérgica e alegre a dizer “portou-se muito bem”. Está distante, mas vou ouvindo as várias pessoas de forma cada vez mais próxima. Que alívio. Apesar de algumas dores, estou vivo. Sinto um perfume no ar. Só pode ser a Isabel. Abro os olhos e vejo o seu rosto inicialmente desfocado, mas que se vai tornando mais nítido. Ela acaricia-me a face. Diz que correu tudo bem e que só terei de fazer umas sessões de radioterapia. Pego nas mãos dela. Afago-as. Como são macias e delicadas.