segunda-feira, 21 de abril de 2014

O incandescente mantra

Texto arrebatador, de um erotismo poético, assinado por Eugénia Sales que insiste em escrever «não consigo!». Mas nós, que a lemos, percebemos perfeitamente que consegue. MG.

Gustav Klimt (1862-1918), Le Baiser
 
Não consigo! Não consigo escrever! Dizes para “sentir” que “as coisas acabam por fluir”. E o pensamento voa de imediato para o sentir. Só que é para o sentir dos teus beijos na minha cara, nos meus ombros, no meu pescoço, nos meus lábios, nas voltas das nossas línguas.
Tento, juro que tento. Mas por mais que o faça, é para lá que volto sempre. Para o teu olhar. O teu olhar em mim. Esse olhar que me percorre o corpo todo e que me penetra a alma. Esse olhar, presente e inabalável, que espelha, seguro, este amor antigo, que te enraíza e te eleva. E volto para os teus lábios que sussurram, naquele murmúrio cantado que nos embala nesta nossa viagem. As mãos entrelaçam-se e os corpos estremecem.
Não consigo escrever. Só lembrar!

E as imagens sucedem-se e a perplexidade e o maravilhamento vão tomando conta de mim... Como é que o fogo pode ser brando e refrescante; como é que a candura pode ser tão pujante e viril; como é que a intensidade pode ser leve e o mantra incandescente? Como pode um peito tão cheio e arrebatado, deixar um sorriso indizível escapar dos teus lábios e fixar-se no teu olhar? Como podem as tuas mãos, tão ágeis e vorazes, tecerem este manto de seda que me envolve a pele e de que os teus dedos são hábeis artesãos? Como pode o ferro ser veludo? Como pode o Céu estar na Terra e a Terra toda em mim?
Meu amor! Serena essa alma ávida e aflita. Porque o meu corpo reclama a tua boca e a minha alma aspira ao nó que nos une e se vai entrelaçando nesta valsa lenta mas eterna.

E não consigo, não consigo escrever.

Eugénia Sales, Lisboa, Fevereiro 2014

domingo, 20 de abril de 2014

Uma menina chamada Alda

Extracto de um dos textos de Alda Rosa, que se junta às outras narrativas que compõem o 2º livro das nossas Oficinas de Escrita. Delicioso! MG



[...]
 
Sete anos. Vamos fazer uma luta de índios e cowboys. Dividimo-nos em dois grupos. Cada um de nós tem vários bonecos de plástico que escondemos nos canteiros e vasos dos quintais das redondezas, para grande fúria das porteiras, pois deixamos sempre algumas flores destruídas. Ganha o grupo que encontrar mais bonecos do inimigo. É sempre muito divertido.

Oito anos. Encontrámos um novo divertimento. Subir um candeeiro de electricidade junto a um muro que tem cerca de três metros de altura, depois fazemos uma corrida ao longo do muro, que tem um rebordo com alguns centímetros e depois descemos pelo candeeiro que se encontra na outra ponta. É uma brincadeira um pouco arriscada, mas nós divertimo-nos imenso. Eu sou a única menina, mas fico sempre entre os primeiros.
[...]
 
Alda Rosa, Lisboa, Março, 2014

terça-feira, 15 de abril de 2014

Lembras-te, Pai?

Da coletânea de textos de Alda Rosa, ficção e autobiografia, que vão figurar no próximo livro das nossas oficinas, destacamos este testemunho pungente. Uma muito bela e muito tocante homenagem ao seu pai. MG
 

Lembras-te paizinho, do triciclo que me compraste quando eu tinha dois anos e que eu parti naquela aventura de querer andar de marcha atrás? Tu, habilmente, reconstruíste a minha máquina e eu pude continuar a brincar com ela. E recordas-te de quando íamos de férias para a aldeia e corrias comigo pelo campo, ensinando-me a conhecer, pelo nome, todas as árvores e arbustos? Transmitias-me tanta confiança, que aprendi contigo a não ter medo de alguns animais, como cobras, ratos e lagartos... Depois, quando dei as primeiras braçadas na água gélida das piscinas naturais do Agroal, tão pequenina que perdia facilmente o pé, não sentia receio, porque estavas sempre ao meu lado.
 
À noite, chegavas a casa com o Diário de Notícias e eu pegava nele, acocorava-me a um canto da cozinha, e colocava-o no chão para o ler de trás para diante. Este é um hábito que mantenho até aos dias de hoje, com jornais e revistas.
 
Como eu gostava do escritório onde trabalhavas, na rua da Glória! Desde os dez anos, sempre que não tinha aulas, levavas-me para lá, contigo. Recordo aquela casa enorme, com uma sala que era o centro da minha fantasia. Nesse espaço, colocavas as colecções de roupa feminina que recebias da fábrica do Porto e separavas as peças que posteriormente eram distribuídas pelas boutiques de Lisboa. Em cada mudança de estação, lá estava eu a experimentar vestidos, saias, blusas. Tu até deixavas que eu usasse alfinetes para os ajustar ao meu corpo. Depois, fazia um desfile. Eras o único espectador, e eu a única modelo, mas divertíamo-nos muito. Um dia, ensinaste-me a dactilografar, e eu sentia-me tão orgulhosa por escrever as minhas redacções naquela máquina preta, que produzia música de cada vez que se teclava numa letra.
 
Continuas tão presente na minha vida… Recordas-te das nossas idas à Ervanária Rosil, na rua da Madalena, plena de uma enorme variedade de perfumes que vinham de todas as ervas medicinais lá existentes, que serviam para as mais variadas mezinhas? Eras um grande apologista da utilização de infusões ou pomadas para tratar algumas das nossas maleitas. Só me faziam impressão as sanguessugas, (que também tínhamos em casa), porque receava que um pedaço do meu corpo fosse sugado para dentro daqueles frascos.
 
Sabes?, as nossas conversas ainda hoje me alimentam. Apesar de só teres concluído o curso comercial, sempre foste um homem ávido pelo conhecimento. Quanto tempo passámos a falar de livros! Foi contigo que conheci autores como Miguel Torga, Soeiro Pereira Gomes, Eça de Queiroz, Júlio Verne, Vítor Hugo e tantos outros. Então, foi aquela noite de 29 de Novembro de 1978, em que eu estava muito feliz, pois tinha acabado de saber que tinha vaga no curso de Medicina. Mostraste-te satisfeito, mas também preocupado, referindo que não sabias se ias ter força para me ajudar a alcançar este meu desejo. Fiquei desapontada e incrédula. Porque não havias de ter força? Tu eras o meu super-homem, nada de mal te poderia acontecer! Como poderias estar a adivinhar a catástrofe que caiu sobre nós, três dias depois?
 
Lembras-te, Pai?

 
Alda Rosa, Lisboa, 30 de Março de 2014

 
 

quarta-feira, 9 de abril de 2014

O Homem sem nome e a Mulher sem rosto

É com a maior alegria que publicamos um extracto do texto soberbo de Ricardo Estevens, cuja evolução em dois seminários de escrita foi surpreendente, confirmando o enorme talento do jovem escritor. É um, entre vários excelentes contos que integra a próxima antologia das Oficinas de Escrita. Daí, e por opção dos autores, ainda não os publicarmos aqui integralmente. MG.

Ilustração de Bernardo Pacheco


«Podia ter acontecido a qualquer ser em qualquer altura sem razão alguma, ou a ser algum e em nenhuma altura. Mas foi àquele corvo, empoleirado naquele sobreiro, que aconteceu. Aquando de se banhar e matar a sede na água fonte da vida, que a sua não cessou mas perto, salva só pela lei de Lavoisier, isto é certo. Cai a pena das asas de voar, as articulações começam a partir e a formar ângulos opostos aos de antes, mais ossos nas “antes-asas”, agora ligamentos, músculos e por cima nova carne em retalhos – mãos. Lentamente o bico entra em decomposição até ficarem só dois pedaços de carne – lábios. A boca prenha de dentes torna-se pequena para a língua inchada e em sangue, consequência da luta por espaço com os novos inquilinos. Os ossos começam a pesar. Vê com os novos olhos o velho chão distanciar-se, estranhamente agora que não voa. O negro das patas clareia até ser o moreno das pernas, excepto na esquerda onde, como se fosse tinta, o escarlate escorre na mesma direcção e forma um grosso aro abraçando o gémeo e a canela. O seu reflexo no lago é estranho, não se reconhece. É um estranho e na sua agora estranha mente tudo é branco. Branco de quem nasce novamente e deixa de lhe ser estranho, porque se tudo é novo é de esperar que também seja nova a mente. O branco imaculado começa então a ganhar outras cores que o preenchem. Cor-de-conhecimento e tons de razão garridos. Começa a absorver as cores em seu redor, e pinta numa tela igual à tela que deveria ser a de Adão antes da Eva, antes até do Criador; à de um recém-nascido antes de cometer o crime de perder a inocência; à de um homem. Depois das cores, palavras. De alguma forma, o seu pensamento é encriptado agora com símbolos que reconhece, como se tivessem sido seus desde sempre: a palavra ler; escrever; raciocínio.»
[...]

Ricardo Miguel Mota Estevens
Lisboa, 04/04/2014