domingo, 30 de setembro de 2012

Memórias de infância

Com Jó, Tia Lena e Faruk
Regresso aos lugares de início. Encontro sempre retalhos de memórias rasgadas como nos sonhos, em fractais de uma indizível e comovedora nitidez. Trago comigo um cão. Ainda me lembro do nome dele. E de como, a partir de certa altura, só nos viamos ao domingo. Recupero a sensação das minhas mãos tão pequenas a passear no pêlo dele, forte e macio, a alegria que me transmitia quando, sentada ao seu lado, lhe embrulhava o pescoço com os meus braços. Taruk, meu primeiro amor cão.



Amanhã... há mais na Guilherme Cossoul. Pensem em imagens para ilustrar as vossas recordações.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A pequena luz branca




Por: Carlota da Luz

Era eu uma luzinha no todo branco. Eu era tudo e tudo era eu, como uma célula auto-consciente num imenso corpo, quando uma força me puxou, nada de agressivo, mas intensa e bem direcionada. Como um avião quando descola, só que lá dentro ia só eu. Tão depressa avancei como me detive, numa nuvem de confusão a vislumbrar ao fundo um sim, uma afirmação, uma escolha.

Tinha eu uns seis anos de idade, quando dou por mim no meu quarto, a olhar para o interruptor da luz, que ficava tão lá em cima, bem fora do meu alcance, e a interrogar-me: o que estou a fazer aqui!? Sendo que aqui era no planeta Terra, naquela ilha, naquela casa, naquela família. A sentir o incómodo de quem escolheu e se arrependeu.
Alguns anos mais seriam precisos para ouvir o princípio da história da minha vida. Era a minha mãe uma enfermeira obstetra, casada e com dois filhos, uma rapaz e uma rapariga. Gémeos. A vida corria-lhe bem. Estava apaixonada pelas crianças, pelo trabalho, pelo marido e tudo acontecia como quem anda de bicicleta e não pensa em dar aos pedais.

Certo dia acontece o impensado e o mundo parece parar: «Estou grávida!». A minha mãe estava grávida de mim, sem me desejar. Rapidamente liga ao marido. Conta-lhe de mim, e nesta história há um choro escondido, que ele depressa acalma. «Quem cria dois cria três!» Fomos ao médico, saber se eu estava bem e se a minha mãe bem estava, se tudo tinha voltado a correr mais uma vez como quem anda de bicicleta, quando um buraco se abre no chão sem aviso. Trava! Trava! A minha mãe tinha uma infeção no útero. Na altura, sem acesso aos medicamentos e sem os testes que existem hoje. Consciente das consequências, o médico propõe o inaudito: «Maria, talvez seja melhor abortares…»

O silêncio e o medo instalaram-se como que ocupando todo os espaços: o espaço do ar, o espaço da vida. Nesses minutos, toda uma vida decorreu em imagens e emoções. Via-se a levar os filhos à escola, viu-os a correrem na rua, a brincarem, a chorarem, a rirem, a crescerem, namorarem, casarem e a terem filhos. Viu-se a ser avó. Daí saiu a resposta: «Não! Não vou abortar, sei que vai correr tudo bem!»

Estou eu no universo desconhecido, às escuras, quando oiço a escolha, e tal como o avião descolou, ali aterrei eu, e passou a existir a minha vida.

Nasci numa Sexta-feira santa, ironicamente no dia em que Jesus Cristo morreu. A caminho do hospital, a minha mãe repetia: «vai correr tudo bem, Deus vai querer que tudo corra bem!» E correu, e eu nasci bem, sem nenhuma deficiência (pelo menos aparente) e durante os anos que se seguiram tudo foi normal, ou pelo menos mais ou menos normal, para os dias de hoje.

Lembro-me de ir para as Babás, o nome que dávamos as senhoras que tomavam conta de nós. Nós, eu e os meus irmãos, tínhamos os berços lá em cima. O meu ficava à direita de quem entrava no quarto. O teto era inclinado quase como se fosse o telhado da casa, talvez até fosse. Havia um quintal, onde só podíamos andar no corredor, ladeado de canteiros. Lembro-me de coisas verdes. Às vezes estavam penduradas no meio do caminho e atrapalhavam os nossos passos. Cheirava a terra e a roupa lavada. Contudo, o que nunca me vou esquecer de toda aquela casa, é de um baralho de cartas brancas com caricaturas azuis. Tinha uns três anos quando as vi e pedi à Bábá para me explicar o que eram, e para me ensinar a jogar. Ela disse que sim, que noutro dia me iria ensinar, e guardou o baralho das cartas brancas com caricaturas azuis no fundo do armário do bar da sala de estar. No lado esquerdo do fundo do armário, para ser mais precisa. Ainda hoje as vejo. Infelizmente esse dia nunca chegou e ainda hoje, parte de mim continua à espera.

26 de Setembro, 2012



quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O meu ‘Bilhete de Identidade’ fui eu que o criei


Por Carlos Scarllaty

É único. Intransmissível. Ou não será? Poderemos ter mais do que um ‘bilhete de identidade’? Assumo a provocação: é "proibido", mas podemos. Aquele que nos é atribuído, e aquele ‘outro’ que construímos. E um pode não ter nada a ver com o outro. Poderemos ter duas identidades? Podemos. E sem sermos loucos. A oficial, atribuída pela lei. E a real, fruto da aprendizagem e vivência de cada um de nós.

O meu BI, em papel plastificado, não tem nada a ver com o meu BI, formato genético e expressão da minha singularidade. Tenho um nome que não foi escolhido por mim; uma altura enorme nada a condizer com a realidade; uma cor de olhos que entretanto desbotou; e uma idade errada que não reflete a minha realidade emocional e mental. O meu BI de papel, no seu laconismo redutor, só está certo juridicamente. Pessoalmente acho que é um “bluf”! Não é eu.

Do latim identĭtas, a identidade é o conjunto de características e traços próprios de um indivíduo (ou de uma comunidade). Esses traços caracterizam o sujeito ou a coletividade perante os outros. Por exemplo: “a Francesinha faz parte da identidade portuense”; “os carapaus alimados têm a ver com a cultura gastronómica algarvia”; “os figos secos com a Costa Mediterrânica”. E por aí fora. Identidades genuínas, gastronómicas, culturais, verídicas.

Uma pessoa tem de primeiro conhecer o seu passado para defender a sua identidade. Que criou e aperfeiçoou. Com que se realizou. Embora muitos dos traços que constituem a “nossa” identidade possam ser hereditários ou inatos, esta é também a consciência que cada um tem de si próprio, e que nos torna diferentes uns dos outros. Porém, o meio envolvente exerce sempre influência sobre a especificidade de cada indivíduo. Por isso, se costuma dizer que uma tal pessoa “anda em busca da sua identidade”, ou expressões semelhantes.

Neste sentido, a ideia de identidade está associada a uma realidade interior que pode ficar oculta atrás de atitudes ou comportamentos que não são próprios da “nossa” pessoa: “Coloquei de parte a minha identidade, e comecei a aceitar trabalhos que não me agradavam, e que não têm nada a ver comigo”. Em suma: luto pela sobrevivência trabalhando, e prostituo-me psicologicamente. E finalmente temos o conceito de identidade de género, que se prende com o autoconceito sobre a sua sexualidade, e o género para que deseje desenvolver a sua vida social. A noção vincula a dimensão biológica do ser humano, tal como o aspeto cultural e a liberdade de escolha. 

O meu BI oficial atribui-me um nome. Mas devia ser eu próprio a escolher o meu nome. Por exemplo, Joachim Bonaparte de Mediccis! Sentia-me muito melhor. A minha altura é acima da média, mas grandes, grandes foram Mandela, Gandhi, Martin Luther King, Bob Marley, Brechet, Pessoa, Confúcio, Galileu, Camões... e tantos, tantos outros. Enormes. Comparados com estes, não passo de um pigmeu. E na idade? Bem, nisso então é melhor nem referir o que penso. Tenho somente 30 anos. No papel plastificado estão 30 anos a mais que o meu cérebro recusa. Uma injustiça este 'Bilhete de Identidade' que me foi atribuído! 

E os meus sonhos e fantasias, onde estão eles no BI oficial? E a minha história de vida? E a consciência de mim próprio que me torna, que nos torna únicos? 

Partindo do pressuposto que a obra de arte se consagra graças ao princípio da nossa identidade, o meu ‘Bilhete de Identidade’ fui eu que o criei. O ‘outro’, esse só serve para pagar multas!
 
Guida Scarllaty em grande plano, 2012
Lisboa, 2012, 25/Set.