terça-feira, 10 de março de 2015

A Candeia


De Fátima Belling este lindíssimo conto a deixar margem para muito sonhar. Extremamente bem escrito, pede mais, ou melhor, suscita-nos a nós, leitores, muitas perguntas. É uma narrativa breve, intensa e misteriosamente comovedora. Apetece tanto vê-la crescer até ao romance. Será? MG



A Candeia

A ponte inspira-lhe medo.

Na verdade, a ponte inspirava medo a toda a gente, e dizia-se até que era assombrada.  O poderoso penhasco que a envolvia, muitas vezes fendido, projectava na sua superfície espinhos de sombra que a madeira velha arrebatava, oscilante, a cada passo. A água estagnada não produzia qualquer murmúrio tranquilizador, antes reverberava em advertência.

Os pés descalços seguindo pegadas e rastos na terra húmida, ela pousa mais uma vez o carrego. Não é o negrume, o ar gélido, que a assustam. Nem as lendas de espíritos malditos. Nem a sombra imutável do penhasco, qualquer que seja a hora do dia. É, sim, a revelação de uma dor que atravessa os séculos e que paira no ar como um lamento.

Perturbada, ajoelha sobre uma laje triangular, reza, e só então prossegue. A laje abriga, desde há muitos anos, um ninho de escorpiões.

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Ele percorre mais uma vez o caminho.

A Lua, cúmplice, esconde-se para encobrir a sua silhueta na orla da floresta, tão antiga e cerrada que, dizia-se, nem homem nem animal  lá conseguiam entrar.

Um longo manto esconde os compridos cabelos grisalhos e os últimos  vestígios daquilo que é durante o dia:  Senhor de terras e de gados, respeitado por padres e malfeitores, padrinho desejado de todas as crianças pobres.

Passo a passo, ele só conta com o reflexo das estrelas no orvalho nascente para o alumiar. Mas os arbustos esquivam-se para que não tropece, as pedras afastam-se dos seus pés, o zimbro afiado desvia-se do seu rosto. E os pinheiros rugosos, os únicos que sabem as feridas que tem nas mãos, alisam os troncos por compaixão.

O caminho finda no pequeno vale, onde o riacho o saúda e se aquieta  num sussurro. A casa de pedra cinzenta surge no meio da encosta, entre o céu e a terra, de um lado a fraga altiva, do outro os azevinhos perenes. E a cerejeira-brava. Em tempos, uma cascata jovem beijara o rochedo, unindo-se ao riacho. Mas há muito que secara.

É nesse vale que, atravessando as urzes, os escorpiões interrompem a caçada para lhe trazer notícias. Notícias dela, por cuja luz ele espera, o peito dorido e doente de remorso.

Enfim a janela abre-se, surge a candeia e o ar torna-se resplandecente. A luz flui da casa de pedra, dispersa-se em miríades de partículas que o envolvem e por um momento, um único momento, ele recorda ... recorda um tempo em que ela cheirava a musgos e madrugadas, em que acordavam entre risos e campânulas de prata.  Um tempo em que os corpos de ambos haviam desenhado sóis poentes de desejo nas águas do rio.

A candeia não se apaga, mas a lua espreita, o riacho saltita ansioso. Ao longe, o pio da coruja ecoa, urgente. O manto regressa ao buraco no tojo, e ele afasta-se, mais uma vez, da floresta inexpugnável.

Para logo regressar.

E tantas vezes percorre o caminho, que o riacho altera o curso para o acompanhar. Tantas vezes percorre o caminho, que o lobo de olhos mansos o espera nas encruzilhadas, e a cobra d’água se enrola confiante nas suas pernas. Tantas vezes percorre o caminho, que a escuridão entra na sua vontade, mistura-se com seu sangue, para não mais se distinguir o homem e a noite, sombra de sombras, cinzento o homem, negra a noite.

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Na casa de pedra cinzenta no meio da encosta, entre o céu e a terra, com a fraga fendida de um lado, e do outro os azevinhos perenes e a cerejeira brava, ela abre a janela. Escuta, serena. Não há nenhum som da cascata outrora jovem, e ela enche então a candeia de azeite, e acende-a. Acende-a para ele, todas as noites. Imagina-o na aldeia, os compridos cabelos negros, os olhos azuis como um céu sem nuvens, a cuidar das terras e dos gados.

Acende a candeia, para que Deus o proteja.

Fátima Belling

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2015

 

sábado, 7 de março de 2015

Pior que inimigos

Da nossa oficina de Encontros Inesperados ou Blind Date, sai mais um fabuloso texto. É um conto que nos coloca no palco de uma pequena tragédia rural, mas que, mais ainda, nos remete para o arquétipo dos irmãos que se odeiam, um tema que semeia as páginas do Velho Testamento, e toda a mitologia clássica. De Ana Moita dos Santos, uma narrativa poderosa, que se lê de um folego e nos, me enche de orgulho. MG


Eduardo Carrillo (1937-1997), 'Two Brothers Fighting,' 1986, óleo sobre tela
 
PIOR QUE INIMIGOS

Como era possível dois irmãos odiarem-se tanto? Lutavam um com o outro desde pequenos e, agora, ali estavam eles, homens feitos, prestes a matarem-se.

Na praça defronte da igreja, depois da missa de domingo a que assistiram com a mãe, uma troca áspera de palavras entre os dois dera início àquela dança mortal.

De navalhas em riste, olhos fixos um no outro, os dois homens movimentavam-se, ondulando os corpos como serpentes prestes a atacar, dissimuladas mas totalmente concentradas, a medirem a presa, aguardando uma oportunidade para investir, com toda a força e energia de que eram capazes.

Podiam morrer nos dez minutos seguintes, mas pareciam não se importar. De olhos presos nos olhos do outro, não desviavam a atenção, nem mesmo quando a velha gritava:

Parem! Não quero que lutem! Parem!

Nada, mesmo nada, podia interromper aquela dança. Estavam dispostos a morrer na luta que haviam iniciado há décadas atrás, desde que se conheciam como gente.

Pior que inimigos, eram irmãos.

 

IRMÃOS

O mais novo, José, sempre fora o preferido da mãe. Manuel nunca deixara de sofrer com isso. Tinham apenas ano e meio de diferença e, desde que José nascera, Manuel nunca mais se sentira querido.

A mãe, aquela velha mal penteada e enrugada, tinha sido uma bela mulher e Manuel idolatrava-a com todas as suas forças, apesar de saber que ela não o amava. Só queria que ela lhe desse um pouco de atenção, que gostasse dele um bocadinho… mas a mãe só tinha olhos para o irmão mais pequeno. Estava sempre a rebaixá-lo, comparando-o com o irmão. Este sim, era o seu mais que tudo! Lembrava-lhe o marido adorado, Vasco, que tinha falecido pouco tempo depois do nascimento de José, deixando-a sozinha com os dois para criar e uma ferida de saudade lívida, no peito inconsolável.

Manuel só o conhecia pelas fotografias nas molduras de latão amarelo da sala de estar: alto, bonito, rosto esguio, louro, de olhos azuis, pele branca e sorriso matreiro no canto dos lábios finos. José parecia-se muito com o pai.

Manuel, pelo contrário, baixo e moreno, de cabelo castanhos e olhos pretos, saía ao lado da mãe. Não era bonito, mas atraente, à sua maneira. Rosto quadrado, feições bem marcadas, quase rudes. Estava sempre de semblante carregado. Nunca sorria, a não ser quando achava graça a alguma maldade.

Isto irritava a mãe, que tentava corrigi-lo, para que se parecesse mais com o irmão, bem-humorado e divertido. Em vão, diga-se, pois Manuel não seguia os seus conselhos. Pelo contrário, no mais íntimo de si, foram crescendo sentimentos tão destrutivos como facas de gume afiado, idêntico ao das navalhas que agora ele e o irmão empunhavam. Mágoa, ciúme e rancor, foram-se exponenciando, até se transformarem num ódio profundo e visceral contra José, que Manuel não conseguia evitar nem dominar.

Raios partam o meu irmão e o dia em que nasceu para me infernizar a vida! Por que razão a minha mãe não gosta de mim como sou?

A mãe ria-se de tudo o que José dizia, aceitava todas as suas ideias e estava a sempre a dizer-lhe:

Ainda bem que não dei ouvidos ao teu pai. Ele dizia que a vida não estava para ter mais do que um filho. Mas eu insisti em ter pelo menos mais um. Ser filho único não é bom.

Manuel ouvia isto vezes sem conta e logo arranjava um pretexto para bater no irmão. Batia-lhe e gritava:

Ser filho único é que eu gostava, malandro! Só nasceste para me prejudicar.

Como era mais forte e robusto, abusava. José encolhia-se e, sem responder, esperava que a raiva do irmão passasse. Desde os seis anos que se lembrava de apanhar dele. Ficava com o corpo cheio de nódoas negras, mas nunca fazia queixa à mãe. No fundo, achava que merecia porque o irmão só lhe batia por a mãe gostar mais dele. Por outro lado, sabia que se fizesse queixa, a mãe zangava-se com o Manuel e punha-o de castigo. Depois, apanhava mais, mal ela se fosse embora trabalhar.

José sofria com o facto de o irmão não gostar dele e dava voltas à cabeça para encontrar uma forma de serem amigos. À noite, na cama, estava muito tempo sem dormir, a pensar no que poderia fazer para que isso se tornasse realidade. Por vezes tentava falar com o irmão, mas este começava logo a bater-lhe, e José calava-se.

Não havia nada que pudesse fazer. O problema não estava em si, mas na mãe.

A MÃE

A mãe olhava desesperada para os dois filhos, prestes a matarem-se à navalhada. Há muitos anos que intuíra que uma luta fatal poderia vir a acontecer, mas nada fizera para o evitar.

Sentia-se culpada. Nunca tinha sido capaz de controlar aquela guerra surda entre os dois e agora, pela segunda vez, arriscava-se a perder a pessoa que mais amava na vida.

Recuou, duas décadas atrás. Estavam os quatro no quintal da casa, num dia quente e soalheiro de Agosto. Ela, Vasco e os dois filhos. José, com apenas oito dias de vida, dormia no berço e Manuel, de dezoito meses, brincava no jardim com uma forquilha de cabo alto, que o pai utilizava para fazer jardinagem. A mãe pedia-lhe que largasse a forquilha, pois podia magoar-se, mas a criança, traquinas, não lhe obedecia. O pai interveio e o Manuel, quando o viu a correr na sua direcção para lha tirar, largou-a de repente e pôs-se a fugir, soltando gargalhadas altas e sonoras. Estava alegre, pois pensava que o pai queria brincar com ele. O pai, sem reparar, pisou a forquilha, de tal forma, que os dentes desta se espetaram com violência no seu pescoço, apanhando-lhe a glote, não lhe dando hipótese de escapar. Rapidamente se esvaiu em sangue. Quando a ambulância chegou, já estava morto. “Foi o maior desgosto da minha vida”, recordou a mãe, destroçada por aquela memória tão trágica. Lágrimas grossas e ácidas caíram-lhe dos olhos, queimando-lhe o rosto.

E foi nesse momento que percebeu. Culpara sempre o Manuel pela morte do marido. E, só agora, que se confrontava com a possibilidade de o seu filho querido poder morrer às mãos do irmão, tomava consciência disso.

Mais uma vez, só se preocupava em salvar o José.

 

A LUTA FINAL

Haviam passado cinco minutos apenas, desde que a luta se iniciara, mas parecia terem decorrido várias horas. A tensão que se sentia no ar era sufocante. Duas serpentes ondulando na praça da igreja, uma à espera que a outra tomasse a iniciativa de atacar.

Vários populares assistiam à luta, a uma distância segura dos irmãos, não fosse aquilo acabar em sangue. Alguém informava que a Polícia já tinha sido chamada e podia chegar a qualquer instante.

Foi, então, que Manuel avançou de navalha em punho, olhos chispantes, boca aberta, num esgar aterrador. José, atento, desviou-se da navalha mas não contra-atacou. Ficou atónito, a olhar o irmão. Finalmente, dava-se conta de que ele seria mesmo capaz de o matar. Perante a atitude desconcertante de José, Manuel hesitou mas, logo em seguida, deu um salto ágil em frente, impulsionando o braço que empunhava a navalha, na direcção do irmão. Mais uma vez, José conseguiu desviar-se, tendo a navalha embatido na pedra da igreja, partindo-se em dois bocados.

Foi, então, que a mãe, desesperada, se colocou entre os dois, gritando:

Manuel, eu sou a culpada, não mates o teu irmão!.

Mãe, tu não és culpada de nada – retorquiu Manuel com um grito. – A culpa é toda dele. Sempre te quis só para ele.

Não é verdade, Manuel. Eu é que sempre te culpei pelo acidente que acabou com a vida do vosso pai confessou a mãe.

E, agarrando-lhe com força a mão direita, fê-lo largar o bocado de navalha que ele ainda segurava, e continuou:

Pensei que, se me tivesses obedecido quando te ordenei que me desses a forquilha com que brincavas, talvez ele ainda estivesse vivo. Hoje percebi o mal que tais pensamentos nos fizeram aos três. Nunca te dei amor e fiz com que odiasses o teu irmão, que não tem culpa de nada.

Manuel não conseguia deixar de pensar no que a mãe acabara de dizer. E se tivesse sido obediente, o pai ainda estaria vivo? Tudo teria sido diferente com ele cá, disso Manuel não duvidava. Lembrou-se do carinho que o pai lhe dava, de como brincava com ele tantas vezes, do cheiro da sua pele que ainda hoje conseguia sentir, memórias boas de tenra infância... As lágrimas começaram a correr-lhe cara abaixo e, olhando para o irmão, pensou: “Eu devia matá-lo, riscá-lo do mapa! Mas, e se a culpa não é dele, mas minha? Ou da mãe?”.

José, que já tinha largado a arma, ergueu os olhos para o azul límpido do Céu sem nuvens, e rezou:

Meu Deus, como foi possível dois irmãos chegarem ao ponto de quererem tirar a vida um ao outro? Ajuda-nos, que nós já não sabemos o que fazemos!

Viu que o irmão se aproximava a passos lentos e cansados, trazendo a mãe pelo braço. Tinha uma expressão dolorosa no rosto e os olhos cintilantes de lágrimas. A mãe, em estado de choque, ainda mais desgrenhada, as faces enrugadas, vermelhas, queimadas de tanto chorar, pedia aos filhos:

Perdoem-me, perdoem-me! Perdoem-se um ao outro. Eu amo os dois.

Os irmãos olharam-se, extenuados de tanto ódio, desejosos de se afastarem da luta infernal que os tinha lançado naquela dança de serpentes enlouquecidas.

Pela primeira vez, Manuel desejou ser amigo de José. Este, por sua vez, relembrou as noites de criança em que não conseguia pregar olho, pensando em como poderia ganhar a amizade do irmão. Porém, nada fizeram.

Ainda não estavam preparados.

Ana Moita dos Santos, 22.02.2015