terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

E isso é que é sedutor

Na última aula, pedi: «apresentem-se de uma forma sedutora», no arranque da escrita de uma pequena história de vida para «a minha vida dá um livro». A M. Eugénia manifestou a sua perplexidade e fundamentou-a. Estava cheia, coberta de razão.


Charles Dickens, Oliver Twist (1837)

Mas em escrita, quando falo de 'sedução' invoco outros patamares. Não são os nossos pseudo-triunfos, as nossas medalhas de bom comportamento social, ou forma mais ou menos adequada como nos inserimos, desde muito pequenos, no espaço emocional e afectivo que nos coube em destino: nada disso, se for só isso,suscitará empatias, mas sim as nossas perplexidades, falhas, medos, anseios e sonhos, e quedas. Tudo, o que nos torna realmente humanos e que é tudo o que todos temos em comum.

Isso é que é sedutor.

Não se trata de fazer o apelo à «desgraça», hoje em dia tão banalizada ao serviço da comunicação de entretenimento fácil. É o modo com enfrentamos o caminho, as pedras em que tropeçamos e os montes que subimos, e o que vamos fazendo até conseguir ir ver o Mar. É o caminho e a forma como caminhamos, corremos, caímos, levantando-nos uma vez e outra, voando por vezes, que importa. E o caminho é sempre irregular e assombroso, no segredo das nossas vivências. Conseguirmos partilhá-lo, em primeiro lugar, é arranjarmos muita iluminação extra para nós próprios. Inevitavelmente, a luz espalha-se.

E isso é que é sedutor. 

 

sábado, 8 de fevereiro de 2014

A Princesa Ariana

De Alda Rosa, a segunda parte da sua viagem pelos Universos Paralelos. É um conto escrito à boa e antiga maneira das histórias de fadas, muito sedutor e intrigante.


A Princesa Ariana

 
Havia um, na torre, que me fascinava. Chamavam-lhe o quarto da Rainha Eleanora e era proibido entrar ali

 
Tanto ruído, mas que gritaria. Há um grande entusiasmo no ar. O bebé da Rainha Azara está prestes a nascer! E eu, minúscula, no meio de todo aquele alarido, a sair das entranhas da minha mãe para os braços firmes da velha e sábia mulher que me ajudou a vir ao Mundo, e que me acolheu, limpou e embrulhou em lindas cambraias e rendas, estendendo-me depois à rainha:

- Majestade, eis a vossa linda princesinha.

Oiço a minha mãe a dizer:

- É tão linda!

E depois, uma voz masculina, muito meiga:

- A minha princesinha Ariana parece uma laranjinha! Amem-na muito, pois virá a ser a vossa rainha.

- Sim, Majestade, responderam as aias, que a seguir me levaram para o berço cheio de rendas e debruado a ouro, onde adormeci.

E por todo o reino tocaram sinos em honra do meu nascimento, e foram decretadas festas, e organizados banquetes e bailes para onde todos, sem distinção de nascimento ou de fortuna eram convidados, para que o povo partilhasse da alegria dos seus monarcas.

E eu fui crescendo, entre afagos, mimos, alegrias, correndo pelos enormes corredores do palácio, cobertos de tapeçarias e de retratos dos meus antepassados, alguns com aspecto tenebroso. Eu não conhecia o palácio todo. Havia salas, salões, câmaras, recâmaras, pequenos aposentos, caves, aonde acedia com maior ou menor facilidade. Mas também havia outros aposentos misteriosos sempre fechados com grossos ferrolhos. Havia um, na torre, que me fascinava particularmente. Chamavam-lhe o quarto da Rainha Eleanora e era proibido entrar ali, por causa de um espelho que pertencera a essa minha avó. A minha mãe, dizia que, quando o mirávamos, deparávamos com a cara horrenda de uma bruxa. Assim, esse espelho estava guardado numa gaveta e o quarto mantinha-se sempre fechado.

Sempre que podia fugir ao controle das minhas aias, e conseguia subtrair a chave que a Rainha guardava numa pequena arca na sua câmara real, subia à torre, abria o quarto da minha avó, pegava no espelho, olhava-me, fazia caretas, imaginava-me já crescida a fazer penteados com o meu cabelo negro e comprido, que entrançava e prendia no cimo da cabeça. Este espelho, que nunca me devolveu a imagem de uma bruxa horrenda, mas era para mim algo de mágico. Como poderia a minha mãe não gostar dele?

 Enquanto era muito pequena, uma boa parte da minha vida era passada nos jardins do palácio, onde, por vezes, as minhas aias me deixavam brincar com os filhos das numerosas servas e açafatas, algumas das quais eram casadas com oficiais e mesteres ao serviço da corte, e viviam em instalações anexas, junto das hortas ou dos pomares ou das oficinas. Também adorava percorrer as cozinhas, onde eram confeccionados pratos deliciosos que emanavam aromas maravilhosos e tentava distrair as criadas para  ir até aos salões, onde o meu pai se reunia com, ministros, conselheiros, dava audiências a embaixadores de outros países ou acolhia as petições do seu povo. Escondia-me atrás dos reposteiros e ouvia as conversas. Não percebia muito do que diziam, mas entendia que o meu pai era apreciado no Reino e amada por todos.

Por vezes, quando ia cavalgar para o bosque com o seu séquito de guardas, escudeiros e pajens, levava-me à garupa do seu cavalo e fazia-me conhecer a natureza, ensinando-me o nome dos pássaros, das árvores, das plantas e de todos os animais que corriam livremente em redor do palácio. Lembro-me do dia em que ele me falou do freixo:

- Sabes Ariana, esta bela árvore que aqui vês chama-se freixo e pertence à mesma família da oliveira. Tem a copa arredondada e cresceu rapidamente, porque se desenvolveu aqui, perto do ribeiro. As folhas também têm uma particularidade, quando chega o frio, caem, ainda verdes, sem alterar a sua cor, como acontece com a maioria das árvores. Isto ajuda a nutrir o solo e a alimentar os animais. Os antigos também diziam que as folhas ajudavam a baixar a febre. E a madeira, por ser flexível e resistente, tem sido usada, desde longa data, na construção de arcos e flechas.

As coisas maravilhosas que o meu pai sabia!

Um dos pajens que nos acompanhava nesses passeios por bosques e florestas era o Alberto, apenas um pouco mais velho do que eu. Os seus pais tinham morrido durante uma trovoada, fulminados por um raio. O meu pai tinha um carinho especial por ele, porque o Alberto cuidava extraordinariamente dos cavalos, parecia que tinha uma relação mágica com eles. Foi ele que, a mando do meu pai me ensinou a cavalgar. Quer a proximidade de idades, quer o cuidado que Alberto tinha comigo, criou em nós uma amizade profunda.

A minha mãe confiava-me às aias e prestava-me pouca atenção, apesar de estar sempre a dar-lhes instruções sobre a minha educação, pois temia que não viesse a tornar-me na boa rainha como o reino precisava. Eu adorava vê-la a receber os joalheiros que expunham aos nossos olhares joias deslumbrantes, anéis, pulseiras, as gargantilhas que ela tanto gostava de usar. Ou os mercadores, que traziam tecidos lindíssimos e preciosos de tão remotas paragens. Sedas, musselinas, cetins, algodões finíssimos, rendas, que me deixavam fascinada a imaginar os belos vestidos executados em tão ricos tecidos.

E chegou a altura em que me começaram a ser ministrados os conhecimentos necessários à posição que eu viria a desempenhar, num futuro remoto... Tive aulas com o professor Luciano, um sábio nas áreas da literatura, filosofia, pintura, a quem a minha mãe tinha incumbido sobretudo a missão de me ensinar música. Mas enquanto o professor tocava cravo ou harpa, eu lia algumas das obras que existiam na biblioteca do palácio, a maioria com histórias fantásticas, que me fascinavam e, por vezes, até sentia semelhanças com algumas das personagens.

Nos dias de festa e por ordem da Rainha minha mãe, eu era obrigada a vestir vestidos pesados e profusamente ornamentados, recebendo ordens severas para me manter imóvel e majestosa como o exigia a minha qualidade de herdeira e futura monarca. Então, e após ter feito 14 anos, o meu pai morreu subitamente, provocando uma enorme consternação em todo o Reino. Uma infindável tristeza abateu-se sobre mim. E, agora, o que iria ser de mim, de nós todos? Nesses momentos de maior solidão e amargura, o Alberto tornou-se uma presença reconfortante e preciosa. Com ele, ia dar longos passeios a cavalo. E um dia, pouco após a morte do meu pai, a minha mãe informou-me que pretendia voltar a casar-se e que desejaria ter um filho varão, situação essa que me iria retirar a possibilidade de algum dia vir a ser rainha, contrariamente ao desejo do meu pai. Disse, também, que caso essa decisão não se realizasse, no dia em que ela morresse, cairia uma maldição sobre o palácio que seria devorado por um enorme fogo o qual também faria desaparecer todo o Reino.
 
 
Senti-me tão angustiada que, e com a ajuda da minha ama-de-leite, que me adorava e temia pela minha vida desde que o rei morrera, reuni algumas roupas, as mais modestas, algumas joias e o espelho da minha avó, dentro de um pequeno baú, e fui ter com o Alberto. Ele estava a par de quase tudo o que se passava, mas as ameaças da minha mãe foram decisivas. Então, nessa mesma noite, decidimos partir, com os nossos haveres, para outro Reino distante, onde iríamos casar, ter filhos e viver felizes para sempre.

Alda Rosa, Lisboa, Janeiro de 2014

Créditos imagens: Ghost Stories: The Tower of London
Aernout van der Neer (1604-1677), Burning castle before a city [detalhe]