domingo, 15 de fevereiro de 2015

Retratos de família

Se mergulharmos no baú das memórias, procurando entre aquelas histórias de família que sempre ouvimos contar, fotografias, cartas esquecidas, objectos pessoais, e outros retalhos de quotidianos passados que lhe componham o desenho, emergem histórias fabulosas com heróis e heroínas ou anti-heróis e anti heroínas  a caminho do esquecimento total.
 
Maude Fealy, USA, (1897-1971), uma das mais belas actrizes do cinema mudo
Vintage Photography
 
O desafio desta oficina é por aí. Vamos ressuscitar aquela bisavó muito louca, que fugiu de casa para seguir o seu sonho, provavelmente personificado por um aventureiro qualquer, desses capazes de tudo; mães-coragem e pais-heróis; o tio que se alistou na Legião Francesa para fugir de uma legião de amantes enfurecidas e de um sem fim de dívidas de jogo. Vamos procurar saber da tia que acabou na miséria com uma fortuna cifrada em papéis de doação de propriedades que não se sabe onde ficam. E da outra que, no desgosto da morte do marido, se sentou numa cadeira, muda, inerte e em lágrimas duramente meses, até os pais aparecerem ameaçando que lhe levavam os filhos pequenos - que cresciam â solta pela casa, entregues a uma velha empregada -, se ela persistisse em ignorar que a vida continuava.
 
 
 
 
 
Pessoas cujo sangue nos corre nas veias, ou gente que fez parte da vida de gente que está na nossa vida. Crescemos a ouvir as suas histórias, muitas vezes por meias palavras. Sem lhes darmos o devido valor, pois  só os anos e as grandes ausências permitem que, nalguns casos, justiça lhes seja feita. Prazerosamente, é bom de ver. Porque contar histórias, nossas ou dos outros, inventadas ou recontadas à nossa maneira de quem conta um conto acrescenta todos os pontos que lhe apetecer, é uma actividade mágica. Uma adição sem contra-indicações. Um voar sem limites. Uma paixão.
 
Como:
Ao longo de quatro aulas semanais, de hora e meia cada, vamos desenterrar lendas, intrigas, pequenas grandes tragédias, glórias, amores escondidos, mortes a destempo, ódios e paixões e saudades cujo prazo de validade já terminou.
Quando:
25 de Fevereiro; 4 de Março; 11 de Março; 18 de Março - com início às 18.30.
Onde:
Livraria Alêtheia, Rua do Século, nº13 - 1200-433 Lisboa (Estacionamento no silo da Calçada do Combro); Telefone (+ 351) 210939748 * Email: aletheia@aletheia.PT
 
Mais informações: Manuela Gonzaga, manuelagonzaga@gmail.com





 





quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Tão macias e delicadas, as mãos dela


O «Efeito Borboleta» suscitou tanto a imaginação dos participantes, que ficará como um marco. O ponto de partida foi um velho álbum de fotografias de casamento, que remontará aos anos 80, pelos detalhes do vestuário e decoração de interiores que emolduram os intervenientes desta narrativa. Ignoramos tudo sobre eles, daí a preservação das suas imagens de que daremos detalhes. Uma preciosidade que, há poucos anos, resgatei do chão, numa esquina do Bairro Alto, a que Alda Rosa faz toda a justiça. Ora leiam esta delícia de história que ela inventou. MG

«Fiquei com esta fotografia da Isabel. Como ela era linda.»

10 de Maio de 2014

Faz hoje trinta e quatro anos que me casei. Procuro na gaveta da velha cómoda as fotografias que a Isabel arrancou do álbum e me entregou, após a nossa separação. Aqui estão elas, já um pouco encardidas pela falta de cuidados que lhes prestei.

Sinto-me tão amargurado nestas águas furtadas da Rua Morais Soares, onde moro há quase seis anos. Um pequeno quarto com uma cama velha, um banco, a cómoda e uma mesa de madeira carunchosa com duas gavetas com os puxadores enferrujados. À frente, a janela de onde se vêem as águas furtadas dos prédios do outro lado da rua. Atrás, uma cozinha minúscula com um fogão que nem sempre uso, porque, por vezes, não tenho dinheiro para comprar a bilha do gás. O frigorífico está quase sempre vazio. Ao lado um pequeno espaço com um alguidar e um chuveiro, onde lavo a loiça e também tomo banho.

Estou nesta situação miserável, desde que fiquei desempregado. Até era um bom pintor da construção civil, mas os copos estragaram-me a vida. Além de destruírem o meu casamento, também me levaram ao despedimento. E, como se isso não bastasse, soube esta semana que tenho um cancro da laringe. O médico disse que era devido ao álcool e ao tabaco. Não sei como vou conseguir sobreviver.

Olho a primeira fotografia e lá estou eu a acender o cigarro. Que raiva, apetece-me rasgá-la. A Isabel detestava que eu fumasse. Estava sempre a dizer que parecia que eu andava a limpar cinzeiros com a minha roupa. E eu zangava-me com ela, gritava e, às vezes, até lhe batia. Mas afinal ela tinha razão. Eu sei que ela me amava. Foi a Isabel que quis casar, não só por estar grávida, mas pelo amor que sentia por mim. A família dela não desejava este casamento, mas ela opôs-se a todos, criando grandes conflitos. Eu, pelo contrário, não me apetecia nada dar aquele passo. Até gostava dela, mas não queria ter filhos, tão novo. E, logo por azar, isso aconteceu. A minha mãe dizia-me que ajudaria a cuidar do bebé, mas, um ano depois, teve um cancro do útero e morreu em seis meses. Teve pouco tempo para estar com o Bruno.

No início, ainda me esforçava para ajudar a Isabel, mas depois fui-me aborrecendo com os pedidos dela, para que parasse de fumar e de beber. O choro do Bruno, durante a noite, deixava-me fora de mim. Entrava em casa pelas dez da noite, comia qualquer coisa, pois já tinha petiscado com os amigos na taberna, e ia deitar-me. Daí a pouco, o garoto desatava numa gritaria e eu ficava furioso. Gritava com ele e com a minha mulher. Os vizinhos, às vezes, chamavam a polícia.

Claro que tudo isto só poderia ter acabado em divórcio. Concordei que a Isabel ficasse a morar na casa que os padrinhos lhe tinham oferecido. Era justo. Assumi a minha responsabilidade na situação. Aluguei uma casa nos Anjos. Era pequena, mas confortável. Sempre que me era permitido, cuidava do Bruno aos fins-de-semana e durante as minhas férias. Depois ele cresceu, e começou a ter problemas de comportamento na escola e a andar com más companhias. Aos 16 anos, já fumava charros e heroína. Eu tentava dar-lhe conselhos, mas ele culpou-me por ser assim, o que me deixou de rastos. Nunca mais voltou à minha casa. A mãe dava-lhe dinheiro para os consumos, porque ele a ameaçava. Sei que está numa comunidade terapêutica há cerca de seis meses, foi a Isabel que me disse ao telefone. Continuámos sempre a falar até há pouco tempo. Mas depois, deixei de atender as chamadas, porque tenho vergonha que ela saiba o estado a que cheguei.

Coloco todas as fotografias sobre a mesa. Até o estado delas demonstra o meu desleixo. Tenho de arranjar uma caixa para as colocar. O ideal seria um álbum, mas não tenho dinheiro nem jeito para as ordenar. Fui eu que coloquei as fotos do nosso casamento naquele álbum castanho com cisnes. A Isabel não gostou nada dele, dizia que era piroso e que eu tinha colado tudo de qualquer maneira. Deveria ter sido mais atento aos pormenores. Aqui está o Luís, o meu querido irmão, que veio de França para o casamento. Ele todo sorridente e eu com este ar de indiferença. E o Joãozinho, o meu sobrinho, que me adorava e que dizia, que quando fosse crescido, queria pintar todas as paredes do mundo, como o tio. Espero que tenha concretizado os seus sonhos, e que esteja bem. Há tantos anos que não falamos. Afastei-me de todos.
Fiquei com esta fotografia da Isabel. Como ela era linda. Aqueles cabelos pretos, os olhos castanhos e muito expressivos, o ar sereno. Apesar de cansada pelo mal-estar da gravidez e todos os conflitos familiares que lhe causei, aqui está ela sorridente, a brindar comigo a um futuro que ela desejava feliz. E eu estraguei tudo. Como me arrependo do que fiz. Não a vejo há tanto tempo, como estará? Que saudades.

Esta é uma foto na escadaria da Igreja de Santo António, onde nos casámos. Estão aqui pessoas que já não reconheço. Mais a tia Judite, que criou a Isabel desde os dois anos, após a morte dos pais dela num acidente de mota. Foi a sua madrinha de casamento. Era uma senhora elegante e respeitável. Não gostava de mim, porque a enfrentei e roubei a sua menina. Se tivesse sido mais cuidadoso, talvez tivesse conseguido o seu apreço. E o tio Adelino, que foi o padrinho e veio de Alcácer do Sal para apadrinhar a sobrinha. Um homem trabalhador, dedicado à agricultura. As mãos dele, tisnadas pelo sol, ilustravam o seu trabalho árduo no campo. Avisou-me para não dar mais desgostos à família. Mas eu estava ali, quase por obrigação.

Já não me lembrava na minha figura, sentado nas ameias do Castelo de São Jorge. Enquanto a Isabel olhava para mim com um ar embevecido, eu já pensava nas noitadas com os meus amigos dos copos. Sou um inútil. Nem sequer consigo matar-me, tenho medo de falhar. O que vou fazer deste pouco tempo que me resta?

Vou escrever à Isabel. Quero pedir-lhe desculpa por lhe ter destruído parte da sua vida. Sei que sempre lutou, que é uma óptima enfermeira, mas só lhe provoquei preocupações e medos e nem a ajudei a cuidar do nosso filho como um verdadeiro pai deve fazer. Agora é tarde.

Sinto-me como um tornado que devastou tudo à sua volta.

§

 13 de Maio de 2014

Estou a chegar a casa, depois de uma noite extenuante no hospital. Cada vez tenho mais trabalho. O serviço está muito pesado, cheio de idosos, muito doentes e solitários, alguns abandonados pelas famílias. É o resultado desta crise em que o país se encontra. O que vale, é que de São José à Mouraria é um pulo. Só penso em chegar a casa para tomar um banho relaxante e deitar-me um pouco.

Entro no prédio onde moro desde o casamento. Foi o tio Joaquim e a tia Judite que me ofereceram o apartamento. Sempre gostei muito deste local. É um bairro simpático, onde todos nos conhecemos e falamos. Nem parece que vivo numa grande cidade. Após o divórcio decidi fazer algumas remodelações na casa. Pintei-a com cores alegres, comprei mobiliário moderno e enchi as paredes com serigrafias dos pintores que mais aprecio. Dei uma nova alma ao espaço.

Tenho uma carta na caixa do correio. Não acredito! O Vítor escreveu-me. Tão estranho, ele que não tem respondido às minhas chamadas, o que me deixa furiosa. Aquele cretino, a quem sempre tentei proteger, lutando contra toda a minha família! Só nos separámos quando cheguei ao limite. Não conseguia suportar o seu feitio, o seu hálito constante a álcool e a tabaco e as suas agressões, que, a certa altura, passaram a ser diárias. Felizmente, que ele não levantou problemas com o divórcio e até colaborou na educação do Bruno.

O meu filho, outra preocupação. Desde o início da adolescência que se tornou agressivo. Depois começaram os consumos de drogas, com comportamentos delinquentes e nunca aceitando qualquer ajuda para se tratar, atribuindo ao pai a culpa de ser assim. Felizmente que há seis meses procurou uma comunidade terapêutica (depois das infinitas por onde passou ao longo dos anos), onde se mantém e com projectos de futuro. Penso que os trinta e três anos e a mais recente namorada, a Joana, terão constituído a principal motivação para procurar tratamento.

Entro em casa. Pouso a mala e vou até à sala. Abro a janela e sento-me na varanda. Está um lindo dia de Primavera. Um tempo igual ao do dia do nosso casamento. Abro a carta do Vítor e começo a lê-la.

Querida Isabel:
Desculpa estar a escrever-te, mas hoje sinto-me muito amargurado. Faz hoje 34 anos que nos casámos. Deves achar estranho eu recordar esta data, mas apesar de tudo o que te fiz continuo a gostar de ti. Fui à procura das fotografias que me entregaste quando nos separámos. Senti-me quase um criminoso ao revê-las. Aquele que devia ter sido um dia tão bonito para nós, foi o princípio do nosso inferno. Percebi que mereço o castigo que tenho. Provavelmente, estarás zangada comigo por não atender os teus telefonemas há algum tempo. Mas não queria que te apercebesses da situação miserável em que me encontro: desempregado, a viver numas águas furtadas e desde há uma semana com mais uma chatice: andava rouco há uns meses, fui ao médico, fiz uns exames e ele disse que tenho um cancro na laringe. Talvez seja operado e não sei se terei de fazer mais tratamentos. Não queria estar a incomodar-te com os meus problemas, mas não aguentei e decidi escrever-te.

Peço-te desculpa mais uma vez por todo o mal que sempre te fiz. Se quiseres rasga esta carta. Mas aceita um beijo deste homem arrependido.
Vítor Santos
Lisboa, 10 de Maio de 2014

Como é possível o Vítor estar assim e não me ter procurado anteriormente? Não consigo parar de chorar. Ele deve estar um farrapo. Sozinho, sem família, sem amigos. Reconheço que não foi o melhor marido, nem o pai ideal, mas não merecia estar nesta situação. O que poderei fazer para ajudá-lo? Tenho de encontrar alguma solução. Se estou sempre pronta para minimizar o sofrimento dos doentes que cuido, é da minha responsabilidade ajudar o pai do meu filho. Entro na sala, dirijo-me à estante e pego no álbum de fotografias do nosso casamento. Volto à varanda, sento-me e começo a folheá-lo.

Tantas folhas vazias. Delas saíram as fotografias que entreguei ao Vítor, na altura da separação. Aqui está a primeira fotografia: como me recordo da minha alegria a cortar o bolo. Mas, na altura de servir o champanhe, senti uma pequena contracção, que me deixou preocupada. Era o Bruno a querer participar na celebração.

Sempre detestei esta vieira partida com a nossa imagem. Parecia que aquele pedaço a menos predizia algo que faltava entre os dois. E nesta fotografia, a tia Judite a olhar para nós, observando-nos a comer o bolo. Havia um ténue sorriso nos seus lábios, mas o seu semblante era de preocupação, pois o Vítor não lhe inspirava confiança. Como nos conhecíamos bem. Foi ela que cuidou de mim desde os dois anos, quando os meus pais morreram de acidente. Como os meus tios não podiam ter filhos, acolheram-me como a sua menina. E depois ficaram tão desiludidos com a minha decisão.

Mais uma vez a tia Judite, sentada ao meu lado, no carro, a olhar para fora e, ao ver o ar de indiferença do Vítor, ficou com este semblante, mistura de zanga e de preocupação.

Aqui estou com os meus padrinhos: a tia Judite e o tio Adelino. O que será feito dele? Nunca mais voltei a Alcácer do Sal. E esta fotografia demonstra fielmente o meu estado de espírito naquele dia. Por um lado o sorriso, significando a convicção do acto que estava a realizar e, por outro, aquele ar sério, pensativo, como que receosa do futuro que se avizinhava.

Nesta foto, o tio Joaquim que me levou ao altar. Era um homem afectuoso e foi o único que acreditou em mim, que aceitou a minha decisão e me transmitiu confiança. Morreu há dez anos, após um AVC. Nos últimos meses de vida, ajudei a cuidar dele. Ia lá a casa diariamente, antes ou após o trabalho. A tia Judite reconciliou-se comigo e até à sua morte há um ano, por insuficiência cardíaca, fomos novamente como uma mãe e uma filha. Que saudades tenho deles.

Não olhava para este álbum desde o divórcio. Inicialmente apeteceu-me deitá-lo para o lixo, mas alguém podia encontrá-lo e reconhecer-nos. Assim, decidi colocá-lo na estante, num local onde não me incomodasse. No entanto, agora sinto um calafrio ao recordar o Vítor e o nosso casamento. Tenho de fazer alguma coisa. Tenho de telefonar-lhe. O sono já desapareceu. Vou tomar um duche rápido e, de seguida, ligar ao Vítor.

O telefone está a tocar. Olho para o écran. Não acredito, é a Isabel. Fico com as pernas a tremer. Sento-me na cama. Tenho mesmo de atender.

― Isabel, perdoa-me.

As palavras saltaram-me da boca. Nem precisei de pensar no que haveria de dizer.

― Vítor, porque não respondeste às minhas chamadas? Fiquei tão preocupada com a tua carta. O que se passa?

Esta é a Isabel com a sua voz firme, mas também carinhosa, a mostrar a sua preocupação comigo.

― Desculpa, mas sentia tanta vergonha que me visses no estado a que cheguei. Estou um farrapo. Doente, sem amigos, sem dinheiro. Sem qualquer solução. Não quero preocupar-te. Só quero que me perdoes por todo o mal que te fiz.

Será que a Isabel vai acreditar em mim? Ou vai achar que é mais uma das minhas manipulações, uma nova tentativa de reconciliação? Nem tenho tempo de pensar, a voz dela corta-me o raciocínio.

― Posso ir a tua casa? Trabalhei de noite no Hospital e vou estar de folga até amanhã à tarde.

Sinto o corpo todo a tremer. Ouvir esta voz firme e doce, provoca-me medo, mas também uma enorme alegria. Há tanto tempo que não me sentia assim.

― Então Vítor, porque não me respondes? Precisamos de conversar. Vou preparar o nosso almoço.

― Desculpa Isabel, nem sei como agradecer-te. Sinto-me tão nervoso, mas vou arranjar força. Então, até já. Um beijo.

― Beijinhos, até já. Chego por volta da uma hora.

E agora? Tenho de me preparar o melhor possível para receber a Isabel. O que é que ela vai achar de mim? Abro a janela. Está um lindo dia. Faço a cama, arrumo o quarto, limpo o fogão e lavo a loiça do jantar de ontem: o tacho onde aqueci o feijão-frade, os talheres e o prato onde comi a lata de atum com feijão. Não coloquei azeite, porque não tenho. Mas deixou-me o estômago reconfortado. Tenho de ir fazer a barba. A lâmina está gasta, preciso de ter cuidado. Depois do banho de água fria vou vestir as calças e a camisola que o meu senhorio me deu há duas semanas. Ainda só usei esta roupa para ir ao médico. E ela como estará? Lembro-me daqueles olhos castanhos muito expressivos e dos cabelos pretos sempre cuidados. Sinto tanta vergonha que me veja assim. Mas tenho de aceitar a ajuda que ela me quiser dar.

Desligo o telefone. A voz do Vítor é a de alguém que está a sofrer muito e a sentir-se perdido. Não me esqueço da vida infernal que ele me deu, mas fiquei com um aperto no peito ao ouvi-lo. Foi meu marido. É o pai do Bruno.

Abro a porta do congelador. Aqui estão duas postas de bacalhau. O Vítor gostava muito de bacalhau cozido com uma batata e grão. Provavelmente já não come isto há algum tempo. Deve estar a passar grandes dificuldades. Vou preparar almoço para dois. Ponho o bacalhau a cozer lentamente, noutro tacho cozo duas batatas. Quando subir a Avenida Almirante Reis, passo no supermercado e compro grão, azeite, vinagre e alguma fruta. Oxalá que o Vítor não se envergonhe com a minha ajuda.

Ainda é cedo. Vou à varanda e sento-me novamente no sofá de verga. Que dia tão bonito. Oiço o chilrear dos pássaros nas árvores. Penso na minha vida. Escolhi enfermagem, talvez com o desejo de cuidar do sofrimento dos outros. E aqui estou eu, mais uma vez, de braços abertos para ajudar o Vítor. Apesar de ter sido alguém que me fez tanto mal. Nunca imaginei, que algum dia, esta situação pudesse acontecer.

Está na hora de sair. Coloco o bacalhau e as batatas numa caixa térmica, pego na minha mala e fecho a porta. Daqui até à Rua Morais Soares ainda vou demorar um pouco. Aproveito para ver umas montras. Estou a entrar na Almirante Reis. Nunca percebi muito bem porque é que na mesma rua existem dois nomes: Rua da Palma e Avenida Almirante Reis. Passo pelos Anjos e ali está a loja de electrodomésticos onde habitualmente compro os electrodomésticos para casa. Espero que não estejam muitas pessoas no supermercado. Estou desejosa de ver o Vítor. Tenho sorte, as caixas registadoras encontram-se praticamente vazias. Pego na lata de grão, num saco de maçãs, noutro de peras, uns sumos, uma sopa Primavera, uma garrafa de azeite, outra de vinagre e um pacote de chá de camomila. Pago e saio.

Estou em frente ao prédio onde o Vítor mora. É um edifício degradado. Toco para o 6º andar. Entro. O elevador está avariado. Subo as escadas de madeira com os sacos na mão. Sinto-me cansada. E então, a porta abre-se e aqui está o Vítor. Tão magro, tão envelhecido. Largo os sacos e abraçamo-nos. As lágrimas saltam-me dos olhos. Entramos em casa. Olho à volta e sinto um arrepio. Como é possível viver nestas condições? Um espaço pequeno, escuro, a cheirar a humidade, sem conforto.

― Vítor, há quanto tempo? Porque não falaste comigo antes? Certamente que estás a passar muito mal.

Sentando-se na cama a soluçar, ele indicou-me a cadeira à sua frente. Não conseguia dizer nada. Parecia que as palavras se tinham sumido. No seu olhar leio um sentimento de gratidão e amor.

― Vamos ter muito tempo para falar. Agora, toca a aquecer o grão. Tu, põe a mesa. Ainda te lembras?

Também me apetece chorar. Mas não posso. Olho para a mesa e lembro-me da toalha às flores que já não uso e de uma fruteira de metal. Da próxima vez que cá vier trago-as. Sempre tornarão o espaço um pouco mais acolhedor. Depois almoçamos quase em silêncio. Ambos temos a voz embargada. O almoço está saboroso. Quando terminamos, levantamo-nos e vou lavar a oiça. O Vítor ajuda-me. Como ele envelheceu. Deve estar mesmo muito doente.

― Trouxe chá de camomila. Aquece a água. Vamos conversar.

Saboreamos o chá delicioso e, calmamente, eu inicio a conversa:

― Vítor, quero saber tudo. Onde estás a ser acompanhado? Mostra-me os exames.

Uma leitura rápida permite-me perceber de imediato que as análises ao sangue e à urina não têm alterações. Na radiografia do tórax só existe uma dilatação do coração, obviamente relacionada com a hipertensão arterial e o alcoolismo do Vítor. O TAC torácico e abdominal não apresenta metástases. Aqui está o resultado da biopsia: um carcinoma pavimento-celular, estádio I, glótico. Que alívio! Não é dos mais graves. O Vítor olha-me atentamente, com um ar assustado. Tem um tremor quase imperceptível. Levanto-me e agarro nas suas mãos geladas.

― Este tumor não é tão mau como parece. Tens de ser operado e depois fazer uns tratamentos. Não tenhas medo, não é grave. E como os exames estão bem, podes voltar a fazer uma vida normal. E agora, estarei ao teu lado, para te poder ajudar.

Sinto as mãos do Vítor mais quentes, mas a tremer. Os seus olhos estão rasos de lágrimas. Abraço-o. Também estou comovida.

― O que tu queres é mimo! Vamos tratar de ti. Vamos preparar as coisas para levares para o hospital. Não te preocupes. Quando fores internado, estarei contigo, mesmo que precise de fazer uma troca no serviço.

O dia passou a correr. A casa já não parece a mesma, limpíssima, arrumada, um ar mais agradável.

Curioso! Já estamos com fome novamente. Convido o Vítor para jantarmos num pequeno restaurante de comida tradicional portuguesa, na Avenida Almirante Reis. Interrompemos diversas vezes a refeição. Olhamos um para o outro e sorrimos. Parecemos um casal de namorados. No fim despedimo-nos com um abraço comovente.

§

 3 de Junho de 2014

É meio-dia. Como o tempo voou. Já tenho a mala feita. A operação é já amanhã. Não posso ter medo. Acho que não me esqueci de nada. Vai tudo correr bem. E eu, que há menos de um mês queria desistir da vida. Tocam à porta. É a Isabel que me vem buscar, tal como combinámos. Desço a escada, sentindo a mesma alegria e o tremor do dia em que nos reencontrámos.

Que surpresa! A acompanhar a Isabel está o meu sobrinho João. Não sabia dele há tantos anos. Está um homem. Deve ter perto de quarenta anos. Damos um grande e emotivo abraço.

§
Oiço uma voz enérgica e alegre a dizer “portou-se muito bem”. Está distante, mas vou ouvindo as várias pessoas de forma cada vez mais próxima. Que alívio. Apesar de algumas dores, estou vivo. Sinto um perfume no ar. Só pode ser a Isabel. Abro os olhos e vejo o seu rosto inicialmente desfocado, mas que se vai tornando mais nítido. Ela acaricia-me a face. Diz que correu tudo bem e que só terei de fazer umas sessões de radioterapia. Pego nas mãos dela. Afago-as. Como são macias e delicadas.