sábado, 30 de novembro de 2013

Universos paralelos ou viagem ao outro lado do espelho

Universos paralelos: um espelho; imaginação, toda; palavras: vossas. Eis a trilogia que vai ter de estar presente nas próximas Oficinas de escrita que desta vez priveligiam a ficção. Quem quer fazer uma viagem de ida e volta sabe-se lá onde e trazer na bagagen um presente todo feito de palavras vossas? A sirene do navio já soou. No próximo sábado dia 7, a bordo!


 
Universos Paralelos

Viagem ao outro lado do espelho
 
Um rosto ao espelho. Que rosto é este rosto? Do olhar para a descrição, palavra por palavra, do «eu» que me olha do outro lado. Que paisagem me rodeia? Uma parede, um muro, um jardim, uma praia? O espelho é um portal, podemos colocá-lo onde quisermos.
Em seguida, aproveitemos o momento precioso em que, entre as múltiplas dimensões, se abrem os corredores de passagem e avancemos para o outro lado. Ali, onde a aventura nos aguarda.
Quem vem ao meu encontro? Para onde me levam os meus passos? Que mensagem recebo? Que pessoas conheço ou reconheço, nesse mundo paralelo? Que sensações, que emoções, experimento? Que novos lugares se me oferecem aos sentidos? Quero ficar, quero voltar, quero fugir? De onde, de quem, para onde? Finalmente, que história me acompanha quando, de novo deste lado, pouso os olhos na folha de papel ou no ecrã do computador, onde a aventura ficará registada?
Ao longo de três módulos de duas aulas cada, vamos até onde a imaginação nos transportar.
O desenrolar da oficina passo a passo:
– Eu sou eu? Ou «Do outro lado do espelho».
– Para onde vou? Ou «Cruzando os portais do tempo e do espaço».
– Momento fundador da narrativa. Ou «Universos paralelos».

Por módulos:
1)     Eu sou eu…do outro lado do espelho? Onde se irão trabalhar os primeiros momentos de uma narrativa de ficção. Método: Olhando-nos ao espelho, imaginário, colocado onde a nossa imaginação determinar, descreve-se o que vemos, de um e do outro lado da imagem. Registando detalhes, estranhezas, correlações ou discrepâncias entre o que vemos de um e do outro lado.
2)      Para onde vou… cruzando os portais do tempo e do espaço. Onde se irão determinar os fundamentos da narrativa ficcional.  Método: Atravessámos o espelho. E agora, onde estamos? É igual, é diferente, é estranho? Estamos em plena aventura. A viagem é a nossa imaginação que a proporciona. Tal como os sonhos, somos nós quem os fabrica. Voar, é preciso.
3)    Universos paralelos, ou o que me aguarda do outro lado de mim? Onde se irá trabalhar a narrativa ficcional proporcionada por esta viagem. Método: Estruturação da história. Era uma vez. Naquele tempo, naquele espaço, o que me acontece? Que aventura vivi? Quem encontrei, reencontrei, conheci ou reconheci? De certa forma, trata-se de capturar por palavras nossas, uma migração do «eu» em seus devaneios e vivências.

Contactos:
email: manuela_gonzaga@yahoo.com ou https://www.facebook.com/pages/Oficinas-de-escrita/369065366502257
Livraria Alêtheia
Rua do Século, 13, 1200-433 Lisboa
(Estacionamento no silo da Calçada do Combro)
Telefone (+ 351) 210939748 * Email: aletheia@aletheia.pt
http://aletheiaeditores.blogspot.pt

Adicional: Ao longo do tempo em que durar a Oficina, os participantes podem colocar questões à orientadora, por email, ou pessoalmente. As anotações sobre a escrita, não tendo qualquer intuito «crítico» serão conduzidas no sentido de orientar a eficácia do discurso. Tanto quanto possível, essas considerações serão pessoais – de orientadora a orientando/a.



 

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Querida avó

A bela carta que Alice Maravilhas nos deixa como fecho de abóbada das suas Elegias do amor e do ódio. Tocante. MG
 
 
Querida avó
 
Escrevo esta carta como forma de me chegar a ti, estar perto e de mão dada a lembrar-me quanto foste importante.
Tenho percorrido momentos felizes que me estruturam no dia a dia porque sei que estás a ajudar-me a transmutar as raivas, e de nó na garganta solto-me, e volto a sentir os momentos passados, das minhas vestes de amor e ódio.
Querida avó hoje senti-me longe, alguém me deu a tristeza no coração e ele chorou. Deixei-me levar pela insegurança dos meus sentimentos, esbanjei o amor no medo e rezingona instaurei as palavras do ódio. Culpei-me e culpei as instruções da cabeça
Viro e reviro as pregas do espaço e do tempo e situo-me nos vários pontos cardeais, no amor e no ódio em que me consumo.
Avó apetece-me encostar a minha cabeça no teu peito e soletrar o que sinto, limpar-me ao som de música e vontades e acolho a tua mão na minha face sedenta.
Aperto-me num nó que demora a soltar-se, minha querida avó, corro para o véu que esconde a fragilidade do coração.
Levanto-me e é no amor que me encontro. Avó, explica-me como me encontro e como me posso entregar sem medo, sem o receio de ser, de me expor e despojar dos desencontros da alma, aqueles que me levam a sentir bem, livre do medo da rejeição. Entorno-me em desalinhos de pele desidratada pelo cansaço de ser, pela vida que esculpe o amor e quando dói, porque dói, então agarro a tua mão e o mundo fica cheio e volto a sentir que sou.
 
Avó ainda me sinto perdida no amor, na lentidão de calçar os sapatos sem medo de caminhar.
 
Alice Maravilhas, Lisboa, Novembro de 2013 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Histórias de uma menina que nasceu de pé

Mais um texto de AR, cheio de fogo e, paradoxalmente, de alegria. É sempre reconfortante confirmarmos como a infância é tão mágica e poderosa que sobrevive às bruxas, aos ogres, e a tantos monstros que se ocultam nos quartos escuros da memória. A ilustração, colagem sobre papel, é da autora. MG
 
Nunca conseguimos falar sobre o meu nascimento e o início da minha infância. Soube apenas que o nascimento de um filho já não era esperado, nem desejado. Soube também que a gravidez foi problemática e que, para agravar a situação, eu decidi vir ao mundo aos oito meses de gestação, situação que, para a época, era tida como de grande risco. Para além desta “precocidade”, nasci de pé e com uma incompatibilidade sanguínea, que implicou risco de vida, vários dias de internamento hospitalar, uma transfusão de sangue e a decisão da mãe de ter alta contra parecer médico.

Todos estes acontecimentos foram-me sempre relatados como algo de catastrófico, que impediram a minha mãe de ter uma vida livre. Para mim, porém, tamanha amargura era ininteligível.

Constantemente ouvia frases que me magoavam demais. A pior de todas era a de que eu tinha «sangue do Diabo», porque me fazia sentir como um ser impuro, desprezível, diferente das outras crianças. Pior, com esta frase, caía sobre mim a culpa de ter causado tanto sofrimento à minha própria mãe. Na verdade, ao longo da minha infância a nossa relação não melhorou. No plano material as necessidades foram supridas, mas afectivamente ia-se criando um fosso, no qual eu tentava a todo o custo sobreviver. Houve sempre uma incompatibilidade entre nós, muito mais profunda do que a do sangue.

O meu pai trabalhava demasiadamente, mas quando estava presente era tão apaziguador, tão bom ouvinte, que a sua presença iluminava e aquecia todos os momentos que passávamos juntos. Foi com ele que partilhei as questões relativas ao crescimento, à sexualidade, à vida. E mesmo na hora de morrer, as suas últimas palavras foram para me dar força, e para me pedir que cuidasse de mim!

E o que fazia uma criança de cinco anos sozinha em casa durante várias horas por dia? Descobria o seu Mundo, que supostamente estava limitado àquele apartamento, mas que tinha inúmeros lugares para explorar! Não eram os brinquedos que me entusiasmavam, mas sim os objectos dos adultos, com os quais eu construía as minhas histórias de encantar!

E, quando mais tarde pude descobrir o acesso à rua, através da janela que aprendi a abrir, foi o êxtase. Por fim, estava ao meu alcance o vasto e excitante território por explorar nas traseiras dos prédios, com novos amigos e novas brincadeiras, por vezes arriscadas, que me transportavam para um mundo paralelo, onde eu era feliz!


Colagem sobre papel, ilustração da autora

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Todos os sapatos servem

O texto, de uma grande intensidade poética, onde Alice Maravilhas traduz, palavra a palavra, imagens, sons, cheiros, emoções vindas do fundo da memória. MG.





 
I
Porque ando descalça a sentir o toque
Em toque toques, devagar para sentir o mundo
Pé ante pé, sem o mundo parar, giro em torno do dia-a-dia com canseiras. Descalça.
Todos os sapatos servem para conhecer o desconhecido que espreita nas minhas aventuras, no querer estar com o sentir
Os sapatos são os dias, uns são leves, ou com cor, ou apertam, ou escorregam. São os sapatos
Às vezes calço-me sem saber o que não interessa porque é preciso lá estar e vai-se caminhando com o desleixo do dia.
Às vezes calço-me e sei que o sol está, a luz brilha nos meus sapatos e sou vaidosa.
Também dançam em bicos de pé solto, e sinto-me voar.
Os meus sapatos também voam
 
II
Marcaste sim, desenhaste-me a vida com cheiros e histórias, rasgaste os dias em tons suaves, minha irmã.
Tiraste-me do desassossego dos dias que escureciam e deste-me formas da alegria.
Nos dias de solidão, frios dos maus tratos, tu com conversas desmontavas e resolvias.
Ouvindo as tuas histórias sem nexo construía uma realidade, a minha realidade, com a vida onde o desejo se soltava, onde o mundo era doce, onde todos sorriam e brincavam com liberdade
Depois lá vinham as zangas e os gritos. Ou se a raiva se instalava sem sentido, era mais físico. Então, tu chegavas, e nas tuas histórias e nos segredos se apaziguavam as raivas.
Hoje tudo ficou para trás e sem querer as recordações voltam, com outras formas, outras histórias de já sou mulher, com outras vidas.
 
III
Lembro-me dela na infância, talvez pelos meus quatro anos, na Beira Baixa, terras secas de frio e calor. Assim conheci a minha avó, não doce ou talvez escondesse essa doçura no olhar, mas uma verdadeira mulher que me acolhia com amor
Uma avó gorducha, de faces rosadas, andar lento de dignidade e força, braços abertos para o mundo onde todos se recolhiam. Assim construiu uma casa de emoções, na freguesia do concelho de Idanha-a-Nova numa aldeia de construção de granito e sombria. Uma casa com divisões escondidas por cortinas pesadas que abrigavam na sua textura o inverno e onde facilmente se perdia a solidão aquecida pelas braseiras espalhadas pelos quartos e salas. Uma casa com vida própria, onde as tarefas com prazer apaziguavam a solidão da distância dos meus pais e irmãos.
Imagens soltas: na Páscoa, as visitas do padre de casa em casa levando o cruxifixo que todos a beijavam; e os rebuçados atirados ao ar para que cada um apanhasse e depressa para mais ter.
Da escola primária onde a minha avó ensinava. Todos sentados no quintal da casa a aprender a ler, mesmo com os livros de pernas para o ar, desenhávamos as letras visualmente.
Da matança do porco. Eu, proibida de assistir ao ritual, ouvia os grunhidos e de longe sentia a agonia do animal.
Da Bica de Azeite, um pão achatado típico da Beira Baixa à base de azeite sem fermento. Os biscoitos em S também à base de azeite, elemento fundamental da agricultura da zona
Cresci … sentindo sempre a presença da minha avó em minha defesa, a acolher-me de forma diferente dos meus irmãos
Quando visito a aldeia, passo pela casa que outrora era enorme e num sentimento de rever todas as imagens ligadas à minha avó, vejo uma casa pequena que outrora fora enorme pelo amor .
Hoje percebo esta ligação de amor, avó e neta, numa memória importantíssima que me ajuda em momento menos fáceis. O meu nome, Alice, o mesmo da minha bisavó que faleceu cedo, ainda a minha avó era adolescente.
Recordo com prazer os dias da minha infância passados com a minha avó, quando, e de mão dada cantarolávamos as duas “A Mimi é da vovó e a vovó é da Mimi”, e num sorriso trocávamos beijinhos ainda hoje sinto marcados na minha pele
 
Hoje calço outros sapatos e lembro-me que existem pessoas no nosso lado melhor da vida.
 
 
 
Alice Maravilhas, Lisboa, Outubro, Novembro de 2013

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Menina pisando a linha

O belo texto de AR, que foi escrito ao longo destas Elegias do Amor e do Ódio. Um mergulho de alma e coração no coração de uma menina. Comovente e delicioso. MG


Menina pisando a linha, pintura de autor do texto


Quando nos conhecemos, tinhas trinta e cinco anos. Eras uma mulher bonita, de estatura média, magra, de cabelos pretos, olhos castanhos e uns lábios finos e bem desenhados. Vestias de forma impecável, embora com alguma rigidez, sempre de fato, saia e casaco, de tons escuros e blusas ou camisolas claras. E, quando ias à rua, o cabelo apresentava-se imaculadamente penteado, sem um único fio desalinhado!

Eras uma mulher austera, rígida, criando uma distância abissal entre ti e os outros, fossem os outros os vizinhos, ou a própria família. Não te conheci amigos.

Quando eu era muito pequena, não sabia onde trabalhavas. Só sabia que saías de casa, logo após o pai, regressando à hora do almoço. Por vezes, voltavas a sair à tarde. E eu ficava sozinha. Anos depois, sei que trabalhaste algumas horas com o pai. Eras, ou tornaste-te a pessoa solitária que recordo, que apreciava vangloriar-se de fazer tudo na perfeição, mas a quem, dificilmente, alguém via sorrir?! Raramente concordavas com as opiniões dos outros. E a minha então, não contava de todo. De cada vez que emitia uma opinião, dizias:

– Vais ter de comer muitas colheres de sal para pensares como um adulto.

E claro que eu cumpria na perfeição o conselho, pois, quando estava sozinha, e deixaste-me sozinha desde muito, muito pequena, uma das minhas ocupações era comer sal às colheres, para me poder tornar adulta mais depressa!

O pai, sete anos mais velho do que tu, era um homem alto, de cabelo grisalho, olhos castanho-esverdeados, afável e sempre disponível para ajudar. No entanto, trabalhava excessivamente, era empregado de escritório  numa grande firma de têxteis, pelo que, saía pelas 8h e só chegava à hora de jantar, que era impreterivelmente às 20h.

Vivíamos numa cave num bairro de Lisboa. Era uma casa pequena, com pouca luz. O meu quarto e a sala não tinham janelas. A cozinha era grande, sendo uma das minhas divisões preferidas, quer pela quantidade de utensílios que eu podia explorar, quer pela janela, que se tornou na minha porta para o Mundo exterior, quando aprendi a abri-la!

Havia um quintal em que os muros que o delimitavam continham floreiras, que serviam de esconderijos para os índios e os cowboys, nas brincadeiras com os meus amigos. E un pátio enorme, onde corria, andava de bicicleta ou de carrinho de rolamentos. Também fazia corridas de caricas na berma do passeio, subia e descia candeeiros de iluminação pública, alheia a qualquer perigo que pudesse correr, tornando-me destemida.

Mas esta diversão tinha de ser controlada, pois tinha de terminar antes de regressares a casa. Então, voltava a entrar pela janela, fechava-a e afivelava a minha máscara de menina bem comportada! A menina que, numa docilidade aparente, suportava o tempo infindável que passavas a fazer-me canudos, obrigando-me a ficar sentada num banco, na cozinha!
 
Desde muito cedo que me obrigaste a arrumar o meu quarto, mas o que poderia parecer um castigo, para mim constituiu uma vitória, pois pude dominar naquele pequenino espaço, onde só cabia a cama, uma mesa-de-cabeceira e uma estante. Tudo se passava debaixo da cama; era um óptimo esconderijo para tudo o que era proibido. Os brinquedos estragados, os bichos de seda, o hamster que esteve lá uma semana, emprestado por uma colega e, mais tarde, as caixas de ovos que coleccionei e que depois forrei com papel celofane e colei no tecto do meu quarto, deixando-te furiosa.
 
Era assim.

domingo, 3 de novembro de 2013

Que carta tão difícil de escrever

«Girl reading a Letter at an Open Window» (1657)
do pintor holandês Johannes Vermeer
Que carta tão difícil de escrever. Ou, que carta tão importante para mandar? Palavras de amor? Ou de ódio? Mistura de ambos os sentimentos, conflito de emoções, caleidoscópio de memórias e perplexidades, luzes, sombras, risos e lágrimas?

Foi tudo há tanto tempo, e parece que acabou de acontecer.

Tenho de dizer isto. Tenho de escrever isto. Se não esqueço-me. Ou então, nunca mais me esqueço. Tenho de largar este peso, soltar esta amarra, libertar o meu barco parado no cais do tempo.

Há uma criança à espera de mim. Essa criança sou eu.

Elegias do amor e do ódio em plena floração...