terça-feira, 24 de setembro de 2013

O coração de cristal

Por Maria Pinto de Araújo

«Já te viste ao espelho? Gostas do que vês?»
Estas foram as frases que me fizeram olhar para dentro de mim. E na realidade, as duas perguntas feitas com a intenção de magoar e de humilhar foram as melhores que me fizeram na vida porque me levaram a tomar decisões importantíssimas para a minha mudança de rumo.
 «Já te viste ao espelho? Gostas do que vês? Porque não é só a beleza espiritual que conta, a beleza física também!»
 
Esta pergunta e esta afirmação foram proferidas pelo homem a quem eu tinha dado três filhos, o último dos quais há um ano e meio. Aumentei vinte e um quilos, e ainda não tinha recuperado. Faltava-me perder sete.  
Picasso, Mulher que chora, 1937, Londres,Tate Modern
 
Esta pergunta e esta afirmação, estavam a ser-me dirigidas pelo meu marido de há dez anos, os dois sentados numa esplanada, a discutirmos o nosso casamento e a nossa relação.
Esta pergunta e esta afirmação, eram proferidas por alguém que estava fora de casa cerca de treze horas por dia e que chegava sempre muito cansado depois de ter ido trabalhar, jogar golfe e ir ao ginásio. E que entrava a contar que o jantar estivesse feito, as crianças de banho e refeição tomadas, de preferência na cama. Alguém que esperava que tudo girasse à sua volta e que tudo fosse feito para o satisfazer.

Qualquer falha, qualquer contrariedade, qualquer desvio nestes ‘regulamentos’, motivavam críticas mordazes, comentários sádicos, berros a despropósito e sem razão, humilhações, murros… nas coisas. E eu fazia tudo para evitar essas explosões!
 
Eu também trabalhava. Com reuniões em Bruxelas várias vezes por mês, quando estava cá, para além de trabalhar nos dossiers, ia ao supermercado, tratava dos filhos, ajudava a empregada interna que não tinha tempo para tudo, tratava dos seguros, das acções, dos bancos, dos médicos. Cumpria toda a rotina extenuante dos quotidianos de uma família. Sobrava o quê? Cansaço. Tempo e vontade para ir fazer ginásio na realidade não tinha. E assim, ele tinha razão pois na altura preocupava-me muito mais em procurar respostas para a minha infelicidade, sobretudo lendo e lendo, do que em manter-me em boa forma física. Bem sei que deveria levar a minha perfeição até aí, mas as forças faltavam-me para isso e para tanto mais... Sentia-me à beira de uma depressão. Na fronteira de um precipício de onde já não sabia como sair.

Então, ao ouvir esta pergunta tão simples mas feita com o intuito de magoar e de humilhar, senti uma facada no coração e ouvi-o estilhaçar-se em mil bocadinhos de cristal. Tão bonito, luminoso, amoroso, amigo, prestável, este coração de cristal partiu-se. Foi atirado ao chão. E depois, calcado, esmagado, reduzido a pó cintilante. Vivo, mas pó. A dor foi enorme e a tristeza imensa, pois naquele dia fez-se luz na minha alma. Aquele ser que dizia amar-me, jamais iria mudar, jamais deixaria de me ferir deliberadamente, e eu nunca conseguiria deixar de ter medo dele enquanto estivesse ao seu lado, mas luz da luz.... A libertação acompanhou a tomada de consciência. Percebi que já não o amava, apenas o temia. Já nem gostava dele como pessoa, pois o ser enamorado, sedutor, cavalheiro, atento ao meu bem-estar que eu tinha conhecido e pelo qual me tinha apaixonado e casado em cinco meses, nunca tinha existido, senão como engodo para me garantir e agarrar.
 
Decidi não discutir, o que o irritava profundamente, pois era ao conflito que ia buscar energia. Falei-lhe em separação. Pôs-me imediatamente à vontade «para fazer o que quisesse, desde que que não lhe telefonasse daí a um mês a dizer que não sabia o que fazer». Bom conselho! Fui a uma psicóloga para me preparar para o embate do divórcio, que pedi quatro meses depois, muito calmamente e  sem dúvidas nenhumas. Sabia que o prolongamento daquele casamento me ia atirar para o precipício da depressão, do consequente aumento de peso, da infindável tristeza e da escalada de violência psicológica e física que o meu marido exercia sobre mim.
 
Consegui e tenho orgulho nisso. Paguei a factura desta independência com dez processos em tribunal para diminuir a pensão de alimentos ou pelo seu não pagamento; com a diminuição de rendimentos, e, consequentemente, com uma quebra apreciável no meu nível de vida, que me levou, inclusivamente, a recorrer à ajuda dos pais. E por fim, a fatura maior. Um cancro na mama, felizmente, e até ver, curado, já lá vão doze anos.  Por tudo isto, agradeço aquela pessoa que tanto me magoou, me ensinou, e que, por fim, me libertou com a pergunta fatal:

Já te viste ao espelho? Gostas do que vês?  

Agora, já não me calo e grito com todas as minhas forças: Vejo-Me Ao Espelho todos os Dias, Adoro o Que Vejo e Sinto, e, acima de tudo, o QUE SOU!
 

Maria Pinto de Araújo, Lisboa, Setembro 2013

domingo, 22 de setembro de 2013

Elda não quer ser grande...

Por Elda Aguilar Rainho
 
Quando tinha quatro anos a caminho dos cinco, pois só fazia anos no final de Setembro, os meus pais, recém-chegados a Angola, acharam por bem colocar-me na pré-primária para melhor me inserir e socializar. Detestei a ideia. Achei que não era ainda altura para sair de uma casa aonde acabara praticamente de chegar, e não me apetecia nada deixar a companhia da minha Alice, a empregada que tomava conta de mim desde que era bebé.

 
Então, pus-me a olhar para o meu irmão mais novo do que eu dois anos, sentadinho na sua cadeirinha de passeio e sem ter que ser grande para ir para a escola, e pensei que se ainda andasse de cadeirinha como ele também não precisaria de ir á escola. Continuava a ser pequena e a poder ficar em casa. Então, disse á minha mãe que só iria para a escola se fosse na cadeirinha do  meu irmão!

"But Mother I don't want to grow up"

Claro está que esperava que a minha mãe me dissesse que não...mas surpresa das surpresas respondeu-me que sim! Com certeza que podia ir á escola como queria, e assim sendo lá fui eu de bata amarela às riscas toda encolhida na cadeirinha do Ruca, mas sem dar parte de fraca, com a empregada de cor a empurrar-me. Quando por fim chegámos ao Colégio lá tentei sair duma forma mais ou menos digna e direita, mas foi quase impossível de tão encaixada estava. Não tive sorte nenhuma no artifício que escolhi para me baldar ao primeiro dia de aulas e de obrigações dos grandes. Ainda por cima, a partir desse dia estas nunca mais pararam!

sábado, 21 de setembro de 2013

"As manas catatuas, quem leva uma leva as duas”.

Universos mágicos e memórias avassaladoras.

Por Maria Teresa Figueiredo
Nunca pensei que fosse tão difícil escrever sobre mim. Deixar preto no branco, sem floreados e personagens, a minha origem, a complexidade das minhas memórias de infância, a base do que sou hoje. Não me darei a conhecer na totalidade e nem mesmo todas as minhas memórias de infância porque nem todas estão devidamente relembradas e trabalhadas no meu íntimo ao ponto de as transpor e escrever. Nem darei a conhecer as outras, não por vergonha, mas pelo medo de não as conseguir dignificar e homenagear como pretendo. E como as recordo.

Irei sim, dar a conhecer o que tanto procuro amarrar e colar no coração todos os dias, com medo que se perca. As memórias da minha infância até aos cinco anos. A recordação dos que me trouxeram a este mundo até ao dia que um deles optou por mos retirar!

Ticas! Alcunha que resultou da dificuldade de minha irmã mais velha apenas um ano e meio, em dizer o meu nome, Maria Teresa. Depois, fui-me apercebendo da existência do nome de família “Graciosa”, pelas vezes em que tias me agarravam as bochechas sardentas e me diziam que só podia ser Graciosa! E assim fiquei até hoje, a Ticas Graciosa para os amigos. Haverá outra razão que me ajudou a acentuar o Ticas e desligar do Teresa, mas serão outros contos de memórias mais avançadas.


Adrião - Escadaria de acesso ao castelo de Belver, no concelho de Gavião, em Portugal
Os meus pais morreram quando eu tinha apenas cinco anos. Nessa altura, vi-me obrigada a trocar o ar seco e a paisagem vasta e agreste da Beira Baixa em tons amarelados, recheada de magníficos penedos e imponentes sobreiros, pelo clima ameno e menos campestre da Beira Litoral, onde fui viver para um palácio cujos muros nem sempre conseguiam esconder outras casas mais pequenas, mas também com a sua beleza, embora distinta. Aí, vivíamos num casarão onde podia correr para ir à casa de banho e esconder da minha avó todos os pães que não conseguia comer, até ao dia em que era apanhada e tinha de os comer a todos em sopas de leite, como castigo. Tive a graça de nascer e crescer no seio de uma família enorme, dez filhos (os nossos tios), vinte cinco primos e já bastantes bisnetos que, entre quintas e cavalos, cães e touros, bicicletas e cavalgadas, nos fomos conhecendo, entendendo e entrelaçando!

Perdi os meus pais mas ganhei uma ligação especial com os avós, tios e primos. Cada um acabou por ter no meu coração um lugar especial. Ainda relembro com prazer quando nos chamavam a mim e à minha irmã, por nesse tempo sermos unha com carne, as “Ticas” ou “As manas catatuas, quem leva uma leva as duas”. 

Da minha infância e sem grande esforço de memória, facilmente recordo o Natal em que recebi a minha bicicleta azul e branca com rodinhas atrás. Lembro-me de estar no Páteo grande da quinta envolvido pelas casas, picadeiro, boxes para os cavalos e com larga vista para as pastagens repletas de sobreiros com o cabeço em segundo plano recheado de penedos. Foi neste Páteo, onde ainda se conseguia avistar uma das barragens, a mais pequena, que, empurrada e ajudada pelo meu pai dei as primeiras pedaladas na bicicleta que tanto me acompanhará nos anos seguintes. Mais tarde, e já na nova vida, mesmo sem travões desbravava caminhos e acelerava nas corridas entre primos. Rio-me e volto a ter a mesma sensação de medo e borboletas na barriga quando recordo a brincadeira que fazíamos com os primos mais velhos, de correr atrás de um pónei no meio do descampado, até este se zangar e cavalgar atrás de nós para nos morder. Tinha o seu feitio muito especial... E a sensação de ser puxada pela minha prima Maria – mais velha que eu, com a peculiaridade de ter um olho azul e outro verde –, ainda hoje se faz sentir.

Sentia-me livre naquele ambiente. Os dias passavam-se entre bezerros, passeios a cavalo na Toma, égua do meu pai, que era tão mansa que nos deixava montar para sermos passeadas à trela. Os cães eram nossos amigos, sempre cheios de paciência, e com eles partilhava outras brincadeiras. Agarrava-os, trocava os chupa-chupas, punha-lhe óculos de sol, tirava-lhe os óculos de sol. Não tinha problemas com a roupa, se sujava ou não sujava. Lembro-me apenas que brincava. Recordo com carinho e saudade o aconchego de me enroscar à noite no sofá, entre os meus pais, e a vontade que ainda hoje sinto de voltar atrás para voltar a ser a intrusa entre os dois, naqueles momentos mágicos. Recordo ainda as viagens no Citroen encarnado, com os meus pais e a minha irmã, e de adormeceremos a ouvir as músicas dos Gipsy Kings que ainda hoje me emocionam porque me trazem um bocadinho deles,  e porque sei que em tempos as ouvimos todos juntos!

Depois, havia os piqueniques entre os sobreiros e a pastagens, com os meus pais e amigos. As correrias e brincadeiras e mais uma vez a sensação de liberdade! Os jantares nas mesas circulares de pedra unidas entre si que, em conjunto fazem uma mesa enorme. Num deles e já depois de escurecer, ao tentar ir buscar fio dental para limpar os dentes, inclinei o armário fino e alto da casa de banho, sem me aperceber que no topo deste estava um autoclismo de loiça e que foi directo à minha cabeça. Chorei e chorei e, nessa altura, o pátio ainda me pareceu maior, pois de repente o meu lugar seguro deixou de o ser até conseguir reencontrar, entre a pouca luz e os muitos convidados, o colo, o conforto, os braços da minha mãe! Evidentemente, fui para o hospital, levei muitos pontos e chorei imenso. Ao meu lado, estava um rapaz também com os seus cinco anos que enfiara um amendoim numa das narinas e não conseguia retirá-lo! Aquela visão ainda me fez chorar mais e, de barriga para baixo com uma mão dada ao meu pai e a outra à minha mãe, chorei e chorei. A cicatriz ainda continua e quando a sinto é bom relembrar aquelas mãos comigo.

O que gostei da noite em que, suponho devido ao calor que se faz sentir naquela zona da Beira Baixa no verão, 40ºC, secos e sem qualquer aragem de ar fresco, fui com os meus pais, irmã e mais alguém que não me recordo, colar placards de uma tourada pelas paredes da vila. O cheiro da tinta, a adrenalina de estarmos ali de noite, o vento que apanhávamos na carrinha de caixa aberta, o delírio e o encanto daqueles momentos, devem ser outros tantos motivos para ter retido esta memória. E outras, como as noites em que o meu primo José Maria, depois de caçar aparecia em nossa casa. E eu, que já estava na cama, levantava-me para ir espreitar aquele “homem” sentado no nosso sofá com uma faca à cintura. Na altura tinha medo daquela figura e o medo criava-me a curiosidade suficiente para arriscar sair da cama e levar um castigo. Uma outra recordação carinhosa traz-me de volta as vezes em que os meus avós iam passar uns dias à Beira Baixa. Nessas alturas, a avó, sempre prática e despachada, contornava-nos os pés sobre numa folha branca com uma caneta, para, da próxima vez que voltasse, nos trazer sapatos. Mal sabíamos então que poucos anos depois o destino aproximaria muito mais ainda os nossos corações para que nos amássemos como mãe e filha.

Estas e outras lembranças, mais penosas e ainda por aprimorar até poderem ser registadas com a dignidade que merecem, são algumas das muitas que a criança que eu fui, até ao dia 13 de Dezembro de 1991, guarda a sete chaves no segredo do coração. Por agora, deixo aqui algumas.

Haverá outras, tantas e tantas, das várias fases da minha vida, que irão serão registadas, talvez em forma de romance, talvez fantasiadas. Para poder introduzir-lhes as presenças maravilhosas das fadas e dos duendes do mundo mágica a que todas, ou pelo menos quase todas, as crianças têm acesso.

Lisboa, Setembro 2013

Aprender a ler, a escrever e a contar

A infância tropical, numa escrita envolvente, cheia de imagens que cativam, pequenas ironias, e de leitura irresistível...
por José Saraiva

Entrávamos em 1971 e, em Portugal, a imprensa do mês Janeiro dava nota da falta de vacinas para o sarampo e do reforço de mais 500 táxis para a cidade de Lisboa. O ano correu célere e o verão não terminaria sem que eu iniciasse mais uma etapa de renome. Com efeito, alguns dias antes de cumprir os sete anos de idade, dei os primeiros passos na senda dos estudos e do conhecimento. O ano lectivo de 1971 - 72, marcava, assim, o início da minha actividade académica, registando-se como o meu primeiro dia de aulas, a segunda-feira, de 13 de Setembro de 1971.

Ao mando da voz paterna, apresentei-me na escola primária, em Luanda, junto ao Quartel-General [onde costumava assistir à circunspecta cerimónia do içar da bandeira nacional], aos olhos vivos e pequeninos da «senhora professora D. Isilda», a «mãe educadora» que, provavelmente pelo facto de nunca ter tido filhos, pela falta de paciência e pela idade avançada, adoptou, para «civilizar os ignorantes e a mestiçagem», uma eloquência de pendor maioritariamente castrense, autopromovendo-se, por distinção, nas atitudes e na retórica – a sargento. Dei, portanto, por mim consagrado à indústria das ideias e – à recruta. Nas aulas, exigia-se, para bem do espírito e do corpo, silêncio, cabeça aprumada e atenção ao quadro.

 
Assim, submisso, de bata branca de gola deitada, calções azuis pelo joelho e unhas cortadas pelo sabugo, depois de cantado o hino nacional e inscrito no mapa escolar, comecei, «a toque de caixa», a aprender a ler, a escrever e a contar.

Entrava-se na escola depois de passar pelos ferrolhos austeros de um pesado portão de ferro, cujas setas pontiagudas lhe acentuavam a sinusóide da sua linha superior, a que se sucedia uma passagem longitudinal até às escadas, que, subindo, afunilavam até à porta principal. Para a direita, as secretarias, as arrecadações, a sala de professores, a biblioteca e os gabinetes da Direcção. Para a esquerda, as salas de aula. A minha, caiada e limpa, ornava-se com um grande quadro de loisa cinza, sobre o qual a professora fazia deslizar, ciciosamente, os coloridos paus de giz, fazendo aparecer e desaparecer desenhos e alfabetos. Dois enormes mapas rectangulares, um de Portugal e outro do esqueleto humano, atapetavam equidistantes a parede oposta à das duas largas janelas, por onde se arremessavam copiosamente os reflexos do sol, as vozes da rua e os ruídos do trânsito. As cadeiras perfiladas com as mesas de estudo de tampo inclinado, as enormes molduras de massa, a imitar madeira entalhada, com as fotografias de Salazar e de Américo Tomás, ladeando o crucifixo ao alto da parede, centrado com o quadro de loisa, e o estrado elevado, que reforçava a autoridade da cátedra, e onde se estabeleciam a secretária e a cadeira, o ponteiro e a régua, completavam o resto da fisionomia daquela austera «casa da ciência».

O recreio, às traseiras, com um acesso central e outros dois pelas duas largas portas, nascidas, cada uma, do seu respectivo corredor interior, era constituído por um espaçoso recinto de cimento, vedado lateralmente por uma rede de arame grosso, terminando, abruptamente, ao topo, num muro de tijolo caiado, com cerca de 2 metros de altura e que servia, ao mesmo tempo, de encosto para os pés e de meta para as corridas. Contíguo à área das salas de aula, um telheiro estendia-se a todo o comprimento do alçado, abrigando uma correnteza de bancos de madeira castanha, com espaldas de ferro, que serviam ao alívio dos cansaços, à protecção da canícula e à sentinela das contínuas.

No segundo dia de aulas, quando se tratou da distribuição dos lugares para o ano inteiro, por uma insondável inclinação natural, disputei acerrimamente com o Osvaldo, já «companheiro e amigo», a última carteira, da última fila, junto à última janela – perdi, calhando-me ficar sentado à sua direita. Fixados os assentos, iniciámos, para preencher o fastio das lições, outra actividade, particularmente indicada para o desenvolvimento da visão e dos reflexos – apanhar moscas. Ganharia quem apresentasse mais insectos antes do almoço, apurando-se o vencedor antes de ir para casa, depois de acumuladas as quantidades, cuidando cada contendor de se certificar de que o adversário não fazia transitar as mesmas moscas, da manhã para a tarde. As varejeiras, os tavões e os moscardos valiam por duas. No entanto, a avidez dos gestos para abater alguns dípteros, cujas imprevistas e caprichosas evoluções implicavam um maior ímpeto capturador, traiu-nos, e a professora Isilda, de sobrancelha circunflexa e dedo inquisidor, quis saber o que se passava «lá atrás». Acabou o «campeonato» e nós, quais vendilhões do Templo, expulsos da sala de aula. Começávamos bem.
 
Uns dias depois, a festa de anos do meu sétimo aniversário, a 22 de Setembro de 1971, ficou marcada por uma actividade inesperada. A minha mãe organizava sempre um lanche recheado de apetites variados, com sumos de fruta naturais, folhados, bolos sortidos, salames, mousses e outras iguarias, que, numa mesa rectangular, colocada no quintal à sombra da palmeira, permitia que nos divertíssemos de barriga cheia. Seríamos, ao todo, uns vinte, constituindo os matraquilhos uma das principais atracções do evento, com vários campeonatos a decorrer em simultâneo, com os vencidos a produzirem várias acções de protesto. A tarde esvaía-se, assim, pela sua morna calidez, quando, de súbito, o meu irmão dá o alarme:

O Jacó desapareceu!

Confirmada a sua deserção do poleiro e de casa, saímos todos, em préstito, para a rua, à procura do papagaio, acompanhando o movimento colectivo de busca por um sem número de assobios, chamamentos e outras onomatopeias, destinadas a cativar a ave desertora. Naturalmente, o desusado ajuntamento de crianças e o frenesim dos sons, fizeram acudir vários vizinhos à porta, que, depois de saberem do sucedido, também se foram juntando ao grupo de voluntários. Cerca de hora e meia depois, foi o ingrato encontrado a depenicar zelosamente bagos de arroz cozido, num quintal próximo. Reconduzido à origem, ficou, nessa noite, preso ao poleiro e no dia seguinte a minha mãe tratou de lhe cortar um pouco mais as asas. Para compensar o empenho de todos, ficou agendada uma 2.ª edição da festa de anos, e do lanche, a realizar no sábado seguinte, dia 25 de Setembro.
 
Entretanto, na escola, enquanto progredia nas letras e nos números, o meu comportamento arredio e a imaginação incontida para a traquinada, chegavam-me, quase dia sim, dia não, à palmatória educativa da professora Isilda e ao bofetão admoestador da D. Lucinda e da D. Conceição, contínuas vigilantes do recreio. Supostamente, a acção directa destinava-se a refrear a minha solta impudência da mocidade e o apego fervoroso às cenas de pontapé e pedrada certeira com que presenteava, no recreio, os filhos do capitão Samuel, militar em comissão de serviço. Do acto ao boato, sucedeu o esperado: em fins de Novembro [de 1971], a Direcção da escola convocou formalmente os meus pais para um «encontro». À altura, os pais acompanhavam os filhos no primeiro dia de aulas e ao exame da 4.ª classe. Fora destas ocasiões, apenas situações excepcionais ou problemas graves os faria lá comparecer. Assim, confundindo os meus elevados dotes de espírito e sobra de energia, com a condenável propensão para a diabrura, declararam-me, sem direito a contraditório, «indomável e terrível», cuja irreverência díscola reclamava urgentemente «mais educação». Presumo que não seja difícil adivinhar o que aí vem. De imediato, fui severamente prometido ao castigo inflexível e à sova rigorosa, se voltasse a repetir, – uma única vez que fosse!, qualquer uma das insolências e zaragatas de que tinha sido acusado. O meu pai, apopléctico, explodia,

– Uma vergonha! Um meliante! Um malandro! Onde já se viu termos um selvagem cá em casa!

Fiquei capaz de esganar aquela súcia de miseráveis esbirros delatores e de os enrolar em papel de mortalha, mas pareceu-me mais razoável levar a sério a advertência paterna, mormente no que dizia respeito ao articulado da sua segunda parte, onde claramente se referida «sova rigorosa», pelo que a minha índole de alegado rufia cedeu bruscamente a um comportamento mais prudente e subtil, presumivelmente para meu bem e, de certeza, para descanso dos imbecis descendentes do capitão Samuel. Embainhei, portanto, a espada.
[continua...]

Luanda, Setembro, 2013

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Clarinha vai para a escola


Por Clara F.
 

Entrei com quatro anos para “O Mundo Infantil”. Era um colégio até à 4ª classe. Ficava numa moradia na avenida Gago Coutinho, muito perto de casa dos meus pais.

O meu irmão mais velho – já era tão grande! andava ali na 4ª classe; o meu outro irmão entrou ao mesmo tempo que eu, mas foi para a infantil dos cinco anos, a dos crescidos.... E eu sentia-me razoavelmente segura pois os meus dois irmãos andavam no mesmo colégio. No entanto fomos logo separados por turmas e salas, e assim sendo, não tinha grande contacto com eles. Nas aulas não nos víamos e como o recreio era relativamente pequeno, os horários dos intervalos eram escalonados por classes.

Foi logo algo que não me agradou.... Qual era o problema de estar com os meus irmãos? Como é que algo que me parecia tão natural, se tornava proibido? Infelizmente, do alto dos meus quatro aninhos anos, nada pude fazer...

Por outro lado, achei desde logo que as minhas colegas me eram impostas e como tal olhava-as como umas estranhas e não lhes dava grande confiança, preferindo manter o meu ar de “orgulhosamente só”. Não havia o direito de me impedirem de estar com o meu irmão, só porque era mais velho. Como tinha de mostrar o meu descontentamento e já que não podia fazer mais nada, pelo menos não colaborava.
 
Então, as minhas pequenas condiscípulas começaram a fazer grupos entre si, enquanto eu ia sendo posta de parte, e pondo-me de parte também, aferrada à minha teimosia. Um dia, porém, resolvi ir brincar com elas, pois estavam a saltar à corda e também me apeteceu muito brincar. Mas como sempre me exclui do seu convívio, responderam-me prontamente que não. Zangada, agarrei na corda com as duas mãos e não as deixei saltar. Se eu não saltava, elas também não! Depois, sentei-me triunfante no muro do recreio com a corda nas mãos em ar de desafio.

 
Espantadas, nem estavam a acreditar no que se passara, e visto que não havia forma de me demoverem sem briga, foram chamar a autoridade. Neste caso, a vigilante. Mas a vigilante não teve mais sucesso do que as minhas pequenas companheiras porque eu continuei a insistir que não largava a corda pois achava que elas teriam de ser penalizadas por não me terem deixado brincar com elas. Desesperada, a vigilante foi chamar uma autoridade superior, a tia Lurdes que era a minha professora. Com esta tive de ceder. Até porque ela se aproximou de mim e amarrou-me as mãos com a mesma corda que tanta agitação estava a provocar. E assim fiquei de mãos amarradas durante o recreio inteiro.

Para as outras meninas o meu castigo foi o delírio, mas no meu íntimo sentia que, apesar delas estarem tão vitoriosas, a vencedora tinha sido eu. Afinal, elas também não tinham podido brincar!
 
Cheguei a casa e remeti-me ao silêncio, consciente de que se os meus pais soubessem o que se passara, seria alvo de novo castigo e para mim já chegava de castigos para um dia só. E como das outras vezes, fui para o meu quarto onde mergulhei num mundo só meu, onde me sentia protegida, compreendida e amada. Nunca questionei a atitude da professora. Acreditava que, sendo ela mais velha agia correctamente, de acordo com os padrões do mundo em que eu vivia e no qual me sentia profundamente desajustada.
 
Cerca de um ano mais tarde, no decorrer de uma feia briga com o meu irmão do meio, ele foi contar o que acontecera aos pais, na esperança de estar a revelar algo de muito grave que me custaria o castigo da vida afectando também gravemente a minha reputação perante os nossos progenitores. Dessa forma, julgava ele, seria exemplarmente vingado. Fiquei muito sentida, pois tínhamos feito um pacto de silêncio sobre esse triste episódio que ele tinha quebrado. Eu nunca ousaria contar o segredo dele. Foi um golpe muito baixo!!!
 
Mas então, surpresa das surpresas!!!!, a minha mãe, quando ouviu a história, reagiu de uma forma completamente surpreendente. Profundamente indignada com o que se tinha passado, foi ao colégio e exigiu falar com a professora. Que coisa mais estranha, pensei. Afinal não estava sozinha no meu mundo. Afinal, tinha uma aliada na minha mãe, que até aí nunca a tinha sentido como tal! E assim, pela mão dela entrei na escola,  sentindo-me segura e invencível. Ia finalmente poder explicar as minhas razões. Nesta altura, já tinha feito algumas amizades, mesmo entre as minhas colegas a quem eu tinha tirado a corda, por isso o meu confronto direcionava-se quase em exclusivo à professora que me castigara de forma tão cruel. Tudo o que queria era enfrentá-la. Aflita, ela tentou desculpar-se, procurando desvalorizar o sucedido, mas quando sentiu a minha força passou a tratar-me com mais respeito, não fosse eu voltar a queixar-me aos meus pais ... amigos da directora do colégio.
 
A minha entrada para a escola não representa, portanto, um marco feliz. Passar um dia inteiro fechada numa sala, sujeita a horários rígidos para entrar e para sair, era para mim um verdadeiro suplício. Para reforçar estes sentimentos, os muros e as grades apresentavam-se como outras tantas barreiras a condicionar enormemente a minha liberdade provocando-me um sentimentos de asfixia. Não foram poucas as vezes em que atirei os sapatos para fora dos muros, alegando com o ar mais inocente, que me tinham caído, apenas para poder sair do colégio sozinha e acenar, do lado de fora, às minhas condiscípulas que me olhavam com um olhar de admiração que eu simplesmente adorava. Era o êxtase!
 
Sentindo-me diferente pois OUSAVA, comecei a ser admirada pelos meus colegas, rapazes e raparigas, já que fazia coisas que, para eles, eram impensáveis. Comecei assim a ter muitos amigos rapazes, que alinhavam comigo nas brincadeiras mais radicais, como trepar às árvores, dar cambalhotas nos baloiços andar simplesmente de baloiço não tinha graça nenhuma e muitas outras diabruras. Se havia alguma cena de pancadaria, lá estava eu a demarcar a minha posição. Chegava a bater em rapazes, (embora escolhesse sempre os mais fraquinhos) o que me dava um estatuto de durona e fazia com que os meus pequenos companheiros me olhassem como uma deles.

Isto dava-me uma extasiante sensação de poder...


Créditos de imagem: "MENINAS PULANDO CORDA", Óleo sobre telaAtelier de Orlando, Rogério e Luciana Teruz

sábado, 14 de setembro de 2013

Van Gogh, Marie Curie, Napoleão Bonaparte

Mais um textos, brilhante!, de um dos nossos «oficinantes». Três biografias. Ele explica a razão desta escolha. MG

Por José Saraiva
Em 1867, quando em Varsóvia se acolhiam os primeiros choros de Maria Sklodowska [Marie Curie, por matrimónio], Vincent van Gogh representava quase 15 primaveras, idade com que, assobiando, deixou os estudos e foi trabalhar na loja de um tio, em Haia. Trinta e dois anos antes, na ilha de Santa Helena, supostamente envenenado por arsénio, morria Napoleão Bonaparte. Não será de estranhar que o leitor acidental, aqui considerado sem distinção de género, ao ler o parágrafo anterior sem qualquer exórdio que o clareie, legitimamente se interrogue sobre a relação existente entre aqueles três personagens, díspares na índole, nas carreiras e na vida. Um militar visionário, uma cientista abnegada e um pintor alucinado, excluindo-se o facto de todos os seus nomes se iniciarem por consoantes, aparentemente não terão muito em comum. Todavia, o mistério da trindade revelar-se-á insuficiente quando se esclarecer que van Gogh se equivale à última biografia lida pelo autor destas palavras, e que os dois restantes correspondem a duas vidas que substantivamente impressionaram – o mesmo autor.

Napoleão Bonaparte, Vincent van Gogh e Marie Curie, nasceram a 15 de Agosto de 1769, a 30 de Março de 1853 e a 7 de Novembro de 1867, por esta sequência. As mortes, pela mesma ordem, sobrevieram-lhes a 5 de Maio de 1821, a 29 de Julho de 1890 e a 4 de Julho de 1934. Nutrida a cronologia, passemos ao propósito.

Foi sensivelmente pela idade dos 17 anos que o autor «encontra» Napoleão Bonaparte, por oca-
sião de uma das primeiras aulas sobre Armamento, cadeira do 1.º ano da Academia Militar, instituição onde havia ingressado recentemente. As impetuosas campanhas militares do imperador, conduziram a França, durante a primeira década do século XIX, a deter uma clara hegemonia sobre a maior parte da Europa. As conquistas e o indómito arrebatamento do «pequeno general», pareciam enlevá-lo com a auréola dos heróis predestinados, cujas estratégias venciam continuamente os mais afoitos capitães inimigos e que ainda hoje, com o denodo dos jovens cadetes, se estudam nas escolas militares de todo o mundo. No entanto, a valentia não o poupou à humilhação dos reveses vindouros. A campanha da Rússia, em 1812, e a batalha de Waterloo, três anos depois, marcaram o prólogo dos seis últimos anos da sua existência, vividos na clausura britânica da ilha de Santa Helena, na costa de África. O livro contendo a sua biografia, com cerca de 500 páginas, repousa discretamente na estante de um quarto reconduzido a biblioteca, cuja capa ilustra o «pequeno grande homem» montado num cavalo alazão, garbosamente rebuçado num manto esvoaçante, no meio de um esfumado cenário de guerra e mortandade. À perspectiva viril de que dos fracos, provavelmente, não rezará a História, importa emparelhar tempos desiguais e olhares diferentes.

Marie Curie alcançou o feito extraordinário de ganhar dois prémios Nobel no espaço de 8 anos [Física, 1903, e Química, 1911]. Uma das mais brilhantes cientistas de todos os tempos, cujo valor académico e mérito científico foram amplamente reconhecidos pelos seus pares e pelo mundo, morreu com leucemia, seguramente, devido à exposição massiva às radiações que decorriam do seu trabalho. Ironicamente, a descoberta da sua vida – matou-a. Dentre os valiosíssimos contributos do seu trabalho, particularmente a descoberta do «rádio», constituiu um avanço fundamental nas terapias de combate ao cancro e à sua contenção degenerativa.
O seu livro Radioactivité, escrito ao longo de vários anos, foi publicado a título póstumo, sendo considerado um dos documentos fundadores dos estudos relacionados com a radioatividade clássica.
Em 1995, os seus restos mortais foram transladados para o Panteão de Paris, tornando-se a primeira mulher a ser sepultada neste local. Marie Curie, «apareceu» ao autor incluída num conjunto de biografias editadas pelas Publicações Europa-América, numa famosa coleção designada por «Livros de Bolso». Pequeno livro, mas prenhe de ideais.

Doze girassóis numa jarra é considerada uma das melhores e mais famosas obras de van Gogh. Todavia, não obstante o seu excepcional talento, não se distará sobremaneira da realidade se se o descrever como um lunático alucinadamente perturbado, cuja incrível genialidade apenas lhe foi reconhecida após a sua morte. Este pintor holandês, da segunda metade do século XIX, é a imagem viva do sucesso vertiginoso – post mortem. Nos 37 anos da sua curta vida, apenas logrou vender um
quadro e, no entanto, o fastio desse magro património de então, faz hoje farto alarido à sua gordura, com algumas das suas obras a atingirem preços fabulosos de dezenas de milhões de dólares. Com uma vida recheada de peripécias rocambolescas, conta-se que, numa desavença, cresceu sanguinário para Gauguin em programa de frases persuasivas – à navalhada. Porém, atormentado com o fracasso da investida, van Gogh, transtornado, amputa, com a arma do feroz assalto, o lóbulo da orelha esquerda – do próprio. Embrulha-o e entrega-o a uma prostituta. Já se vê a cara da mulher.
Na fase final da sua vida, pintou freneticamente e num passeio improvisado, na cidade de Auvers-sur-Oise, em França, decide suicidar-se com um tiro no tórax. A vida durou-lhe mais 3 dias. Com efeito, o talento extraordinário e a loucura insidiosa, geram uma estranha união que, não raras vezes, é capaz de produzir obras de elevada intensidade artística e humana. Van Gogh, ou o «ruivo louco», por antonomásia, foi a última biografia que, há cerca de dois anos, bracejou à cabeceira do autor. O livro, já dobrado nas pontas e de capa amarelecida, chegou-lhe casualmente às mãos, durante os desbragados trabalhos de encaixotamento de infindáveis tralhas e haveres, por ocasião de uma mudança de casa de um amigo próximo.

Aqui chegados, importa dizer que estas três vidas invulgares se cruzam apenas pelo facto de se terem constituído em estacas literárias do autor. No entanto, terão em comum o facto de terem marcado indelevelmente o mundo em que viveram e, certamente, o do que lhes sucedeu.
 
JOSÉ SARAIVA
Luanda, 11-09-2013

Créditos das imagens: Napoleão Bonaparte, Marie Curie, van Gogh - seguir os links.
Obrigada Wikipédia por estas ligações com denominação de origem.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Cleópatra, Joana a Louca, Maria Adelaide Coelho

Começamos a publicar alguns dos textos produzidos nesta Oficina de Escrita biográfica que ainda está a decorrer. O tema proposto foi «biografias» de forma abrangente, aqui se incluindo obras que deixaram marcas, sem preocupação pela ficha técnica do livro evocado. MG

Por Clara Ferrão

Elizabeth Taylor em Cleopatra
Gosto muito de biografias, pois através de uma história de vida dão-nos acesso a um outro lado que afinal mal conhecemos, numa autêntica viagem ao avesso da História, quase sempre recheada de muitas surpresas…. Além disso, não deixa de ser curioso descobrir grandezas ou misérias de personagens que nos ensinaram a respeitar e até a amar e que nem sempre estão à altura da lenda criada em seu redor.

A última biografia que tive o prazer de ler foi a da Cleópatra. E aqui, o que mais me marcou foi perceber que, apesar de nascermos aparentemente livres, sobretudo quando estamos a falar de elites, toda a nossa existência está à partida determinada e condicionada pelo espaço e pelo tempo em que nascemos, pela nossa posição na pirâmide social e pelas pessoas que nos rodeiam e que nos impõem a representação de um papel do qual muito dificilmente conseguimos desviar-nos.

 Nesta caso, a vida de Cleópatra é um registo de deslumbramento, poder e traição, que neste livro é relatada sob um clima de mistério que remete para um verdadeiro thriler. Sem deixar de ser um retrato da condição humana, com os seus afectos, os seus medos e os seus anseios, o que se nos desenha é uma espécie de tragédia, onde cada passo conduz, não à desejada felicidade, mas a uma inevitável “perdição”. E foi assim, por um caminho extremamente solitário, sem poder verdadeiramente confiar em ninguém, numa sociedade amoral onde viver e sobreviver é uma corrida de obstáculos por entre atropelos e intrigas, que reinou aquela mulher cuja beleza ficou na História, e cujos amores entraram para a lenda. Mas Cleópatra foi também uma mulher fascinante, uma jogadora exímia, de uma inteligência ímpar, que deixou a sua marca.

Neste registo de histórias verídicas que tanto aprecio, quero referir a biografia de Joana A Louca que também me marcou profundamente, pela intensidade do drama. Mais uma vez, a liberdade pessoal da personagem foi aqui cruelmente submetida à vontade do poder maior, que ceifa cegamente quem se lhe atravessa, transformando as existências num exílio de agonias, suplícios e de uma insuportável solidão.

Francisco Pradilla y Ortiz (1848-1921), Joana a louca velando o cadáver de Filipe o Belo, Museu do Prado, Madrid.
 

Uma outra biografia que também me tocou muito foi a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, uma mulher que teve a coragem de enfrentar uma sociedade em peso, para lutar pela sua verdade contra tudo e contra todos. Nos começos do século XX, e em Portugal, Maria Adelaide, senhora da alta sociedade de então, reescreveu a sua história de vida, arcando com o ónus da loucura por assumir o amor por um homem muito mais novo e de condição social ‘inferior’ à sua. Por este 'crime', Adelaide Coelho perdeu fortuna, situação social e apoios familiares, vindo a ser internada num hospício, de que se libertou em condições extraordinárias graças à força do seu carácter e à coerência dos seus sentimentos.

 

 

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Como escrever um livro?

Como escrever um livro, dois livros, muitos livros?

Lendo. Lendo muito. Lendo todos os dias. Lendo como quem precisa de ler para respirar. Lendo como quem precisa de ler para estar vivo.

Isso, e escrever. Escrever todos os dias, como um oficio. Ter um caderno à mão, uma folha solta, ou um artefacto electrónico qualquer que conserve as nossas palavras. Depois, e de puro exercício sem esperar retorno, reuni-las em frases, em pequenos contos, a partir dos diálogos soltos que apanhamos no ar e na espuma dos dias para construir através deles uma história que já não é de ninguém, nem sequer nossa, porque nos foge do pensamento e temos de correr para a capturar com a rede das nossas palavras.

Um escritor faz-se disto e de muito mais. Da atenção plena e amorosa ao que nos rodeia. De instantes que se carregam no saco sem fundo das nossas erráticas recordações. Do oficio de escrever por obrigação de vida. Da paixão intoxicante pela palavra. Da dor que nos autoinfligimos quando, por inépcia, não a conseguimos moldar. Da caminhada sem descanso pelos mais recônditos lugares do pensamento.

Escrever é estar acordado mesmo quando se dorme. É recordar o que mais quisemos esquecer. É voltar à infância para  soltar pássaros aflitos que esvoaçam nas gaiolas escuras no interior da montanha onde garimpamos o ouro da palavra. É enfrentar monstros. Monstros de verdade, as nossas assombrações, as nossa feridas, as nossas vergonhas, os nossos medos.

 

Escrever  até às entranhas, é, muitas vezes, ir ao encontro do nosso inimigo maior. Aquele de quem fugimos desde o princípio dos tempos. E depois, deitar-mo-nos com ele, abraçando-o e beijando-o na boca, para além de todo o horror, até vermos que o seu rosto informe e o seu corpo de pesadelo são o nosso próprio reflexo no espelho da vida a dissolver-se num jorro de luz.


Créditos da imagem: Gustave Doré, lithographie de Barbe Bleue (1862), Contos de Pérrault,
retirado de http://commons.wikimedia.org/wiki/File%3ABarbebleue.jpg

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O ofício de escrever

Porque é que lhes chamo «Oficinas de escrita» em vez de «Cursos de escrita criativa»? Qual é a diferença? Pessoalmente tanto se me dá que a referência seja feita de uma ou de outra maneira. Mas as palavras têm peso, personalidade própria e justa dimensão. Soa-me sempre a redundância juntar ao vocábulo «escrita» o adjectivo «criativa», pois tenho para mim que toda a escrita, menos a comercial, é um acto de criação.

Porquê «Oficina»? Porque, para lá da inspiração a que cada um pode aceder em vários graus e de múltiplas maneiras, por esforço próprio e dedicação constante, escrever é um ofício no sentido arcaico de termo, onde o verbo é a nossa ferramenta.

Da exposição Scriptorium medieval, Santa Casa da Misericórdia de Coimbra
Par e passo: como iniciar esta aventura, tão exultante e tão penosa quando a levamos a sério; como manusear a palavra, burilar frases e adequá-las ao que queremos dizer; como transformar pensamentos soltos, esquivos como nuvens, ou selvagens como potros bravos, num registo narrador; como encontrar, no fundo de nós, o filão de ouro, a estrela guia, que nos conduza nesse caminho?

Esse é trabalho de oficina. Com vários graus de iniciação onde se trata de estimular e orientar,  mais do que ensinar, cada um a descobrir a sua voz. E a estruturá-la em registo narrativo. Afinal, creio que será isso que muitos, ou bastantes, cursos/oficinas, fazem, seja qual for o nome que utilizem.



 

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O jardim onde vivemos

A Clara só se sentia completamente em casa quando, em criança, inventava o seu mundo nos jardins de casa dos pais ou dos avós. Nem sequer precisava de grandes espaços. De um pequeno recanto, desde que tivesse arbustos, erva e flores, fazia um reino mágico, povoado de fadas e de gnomos que só ela via.

A Maria ainda hoje precisa dos penedos formidáveis das terras da Beira Baixa, onde fica a quinta dos avós, para ganhar novas forças e se sentir embalada sob o céu de estrelas imutável que lhe devolve a infância tão particular.

Eu aprendi tanto com a Sereiazinha que nunca lhe poderei agradecer o suficiente a companhia que me fez e o amor que lhe devotei. De resto, era nos contos de fadas que me reconhecia enquanto ser, porque era lá que se encontravam o meu universo e as minhas pessoas.

A cabeça de uma criança é uma nave espacial. Guardemos com um tesouro sem preço, o legado da nossa infância. Porque mesmo quando viver é muito difícil, e todas as crianças conhecem essa dor por mais amadas e protegidas que sejam, a capacidade de criar, recriar e voar que temos, ajuda-nos a enfrentar todos os desafios.

E é um passaporte para a vida.  

terça-feira, 3 de setembro de 2013

De Angola com amor

Os livros, escritos e por escrever, criam as mais impensáveis pontes. Sem tempo nem distância, a fraternidade do espírito é um vento vivificador que acorda ressonâncias mágicas e recorda-nos quem realmente somos.

Isso, e amar. Mas o amor é tudo isso.

De Angola, chegam-me os primeiros textos. Excelentes. Como poderia ser de outra forma, tratando-se de quem os escreve?
As noites mágicas na Baía de Luanda

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Querido Diário

«Como se a minha vida interessasse a alguém» -- comentário céptico que reproduz em síntese um email recentemente recebido.

A equação está mal colocada. A nossa vida interessa muitíssimo. A quem? A nós mesmos para começar. Desde logo, porque é a única de que dispomos. Tanto quanto sabemos nem o gato tem aquelas todas que se diz. E isso leva-nos à segunda permissa. Se só temos uma, pelo menos pelo registo da memória actual, é sobre essa que devemos trabalhar e reflectir. Não necessariamente escrevendo livros, está bom de ver. Há outras formas de auto-conhecimento e reflexão que nos podem conduzir nesse sentido. 
Querido Diário. Hoje usei as minhas palavras e elas libertaram-me.
 
Mas o que sinto, e tenho confirmado, é que, com orientação «oficinal» ou sem ela, o registo literário das nossas memórias é uma das melhoras formas de estruturarmos o pensamento. Sendo, igualmente, um exercício criador que acorda  as «saudades» do futuro que desejamos viver e revelando-nos muito de nós que ignorávamos. Recordemo-nos dos diários de adolescentes que todos ou todas mais ou menos mantivemos. Foram ou não foi uma companhia inesquecível?

E não era para mostrar a ninguém... Até ao dia que os olhámos com o olhar do futuro que se fez presente, e resolvemos partilhá-los com alguém. Ou deixá-los à família. Ou simplesmente, entregá-los às chamas, em privada cerimónia muito nossa. Ou, quem sabe?, publicar o que escrevemos. Por nossa livre decisão.

Créditos da imagem no link: «Keeping Diaries Increasingly Common Among Teenage Girls, Study Finds

domingo, 1 de setembro de 2013

Skype me or something

Os pedidos de inscrição de fora de Lisboa - de Portugal, mas também de Angola e do Brasil - estão a incitar-me a desenvolver mais depressa do que tinha pensado outras plataformas.

Aos candidatos às nossas Oficinas de Escrita que estão longe: está para breve. Com toda a proximidade da palavra e do gesto.

O mundo ficou tão próximo, que não há desculpa mesmo.