terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O Homem sem nome e a Mulher sem rosto.

Sem desprimor para todos os excelentes trabalhos que têm saído das nossas oficinas de escrita,  onde se trabalha no duro!!, este conto do Ricardo Estevens está muitos furos acima da escala. Representa várias coisas notáveis, a primeira das quais o inegável talento do seu autor. Outra, a tenacidade com que Ricardo se entregou a um trabalho que lhe correu mal, e ainda bem, já que, depois de um aparentemente desmotivante resultado inicial, ele pode chegar a este resultado soberbo. Não foi à primeira. Nem à segunda. Mas foi e por mérito próprio e muito trabalho. Generosamente, ele reconhece que em dois ou três meses (duas oficinas, pelo menos)  evoluiu «alguns anos». É o poder do ofício quando a exigência é a da mestria. MG
 
Bernardo Pacheco (ilustração)

O Homem sem nome e a Mulher sem rosto.
 
Sobram poucos metros entre aquele sobreiro e uma pequena depressão na terra enxuta. O tique e o taque marcam para lá das vinte e três nas areias Cronos e a Lua já deambula no septuagésimo nono soluço de altitude quando, descuidada, uma lágrima desliza na bochecha de uma nuvem cinza, quase negra de quase luto, e com a pontaria do acaso cai na consequência de uma cova situada a milhares de decímetros daquele sobreiro a tudo alheio. De depressão a cova passa a lago e faz da lágrima, filha do pranto, fonte mãe da vida.

É aqui, sob as coordenadas geográficas de um Alentejo, onde há numa planície quase deserta uma única árvore a florescer de vida. Completamente isolada é ela o foco de tudo. Este quadro é pintado com as mesmas cores da paleta de tantos outros diferindo apenas e somente no traço que o pintor e o destino lhe deram.

Podia ter acontecido a qualquer ser em qualquer altura sem razão alguma, ou a ser algum e em nenhuma altura. Mas foi àquele corvo de poleiro naquele sobreiro que aconteceu. Aquando de se banhar e matar a sede na água fonte da vida que a sua não cessou mas perto, salva só pela lei de Lavoisier, isto é certo. Cai a pena das asas de voar, as articulações começam a partir e a formar ângulos opostos aos de antes, mais ossos nas “antes-asas”, agora ligamentos, músculos e por cima nova carne em retalhos: mãos. Lentamente o bico entra em decomposição até ficarem só dois pedaços de carne: lábios. A boca prenha de dentes enche-se com a língua inchada e em sangue de trincada. Os ossos começam a pesar. Vê com os novos olhos o velho chão distanciar-se, estranhamente agora que não voa. O negro das patas clareia até ser o moreno das pernas, excepto na esquerda onde, como se fosse tinta, o escarlate escorre na mesma direcção e forma um grosso aro abraçando o gémeo e a canela. O seu reflexo no lago é estranho, não se reconhece. É um estranho e à sua agora estranha mente, é branco. Branco de quem nasce novamente e deixa de lhe ser estranho porque se tudo é novo é de esperar que também seja nova a mente. O branco imaculado começa então a ganhar outras cores que o preenchem. Cor-de-conhecimento e tons de razão garridos. Começa a absorver as cores em seu redor e pinta numa tela igual à tela que deveria ser a de Adão antes da Eva, antes até do Criador; À de um recém-nascido antes de cometer o crime de perder a inocência; â de um Homem. Depois das cores, palavras. De alguma forma o seu pensamento é encriptado agora com símbolos que reconhece como se tivessem sido seus desde sempre. A palavra ler; escrever; palavra; raciocínio.

E se bem que tudo tem uma explicação, esta eu não a sei. Sei porém que agora o corvo é homem, e agora o homem já não é um corvo. O pobre animal, menos selvagem, mais consciente; menos asas, mais braços; nas penas menos no pêlo mais; 

Passados algum tempo numa auto-avaliação exaustiva junto ao espelho-lago sente os primeiros impulsos naturais, os mais selvagens que temos como os têm outros animais. A sede, matou-a de vez com aquela água ainda com alguma dificuldade em beber sem afundar nela também o nariz, e os olhos e a cara toda. Mas a fome ficou. Não uma fome de matéria, mas de mais “cores”, mais conhecimento, mais.

Procura saciar os porquês; quem; onde; como; enquanto isto, vislumbra o sobreiro e ao largo uma estrada de terra batida – pó. Ainda atabalhoado é por aí que se arrisca. No sentido contrário ao certo, seja ele qual for.

As altas temperaturas brincam com a sanidade deste Homem-menino perdido no caminho da casa que não sabe se tem. Neste momento as únicas certezas são: o horizonte para onde vai, e está o fim da estrada que quanto mais percorre mais chega só ao “meio”; e que o meio onde esteve lá atrás era só metade do meio onde está; de onde veio, aquele lago junto àquele sobreiro; e a própria dúvida que o atormenta e toma de assalto naquela caminhada com todas as interrogações sem respostas aparentes. Mas segue, talvez elas estejam já ali, naquele horizonte a par da estrela da manhã e da moça, que pisa de chinela e levanta o pó ao som que faz quando baila.

– Hmm? Está ali alguém? – urge em sí o impulso de lhe falar, de a conhecer, de saber se a conhece. Quer gritar, mas a voz amarrada pela sede não permite. Põe tudo o que tem, tudo o que lhe resta em força e arrasta-se numa última corrida, a mais exasperante e demorada de sempre, para ele a mais exasperante e vertiginosa, mais do que em qualquer voo. E voa até ela, estica o braço, ao toque dos seus dedos no ombro despido de Tágide desfaz-se no ar. Vê-se em Outubro no dia quinto. Da inquieta e inquietante só o pó das chinelas. Ao seu redor uma cidade inteira soerguida na direcção dos céus, em rectângulos trazidos para a terceira dimensão pela sua profundidade e num deles, separado apenas pelo frenesim do tráfego na Avenida rasgada em parelha à da República mais precisamente no nº186 sétimo piso, lá estava aquela figura feminina. No meio de tudo o que era tão novo e tão definido: os carros, as pessoas a caminho do trabalho em passo acelerado, o rugir da manhã de Lisboa. Foi ela que lhe furtou a atenção, envolta na dança da nuvem de fumo evocada a cada bafo no cigarro suspenso entre um dedo, a sensualidade e o outro. Finalmente, no tempo de um piscar de olhos, da queda de uma beata caramelo-baton lá de cima a cá abaixo a fumadora foi para dentro e do fumo tratou o vento.

– É isto! Não sei o quê senão que é ela – com esta certeza veio outra, desperta a recordação adormecida do desamor a cigarradas. A Cinco de Outubro continuou e de inerte só aquele tipo ali especado. Mas inerte só por fora, que por dentro acontecia num ritmo prestíssimo um jogo de perguntas e respostas que mais parecia de perguntas e perguntas.

– É-me familiar, a mim que não gosto de fumadoras. Não lhe sei o rosto, não o consegui perceber no meio daquela maldita nuvem de fumaça, todo o resto eu sei, mas o rosto não.

Aaarg! Aquela ali a quem não sei a cara seduziu-me com um “cigarrinho matinal”. A mim, que desprezo de fumadoras. Uma hora após a outra, enredado na memória dela, mira o 7º do nº186 e pensa na traição. A cada minuto sem a ver se junta um minuto da traição à curiosidade deste homem e ao vício de fumar daquela mulher. Provavelmente agora o viciado em fumo é ele, que não fuma. Ele que odeia fumadoras, que pensa mais nisso do que ela.

– Como é que me pôde acontecer isto? Amo-a sem sequer lhe saber a face, amo a maneira como fuma um cigarro, amo-a naquele andar naquela manhã a olhar por aquela janela sem me ver a ama-la cá em baixo.

– LOGO EU, que ABOMINO fumadoras!

Com a estrela da tarde chegou o fim do dia e já não é cinco de outubro data, é estrada de novo, e de novo incerteza. Assim como veio tudo foi, neste homem-trapo tudo míngua e crescente só o desgosto. Na velha estrada cruza com um velho escanifrado também ele errante. De barbas cor de cinza mal aparadas e cabelos recolhidos numa espécie de turbante mal-arranjado feito com as farripas de uma camisa negra. A sua pele é escura e rugosa, galvanizada pelo sol e pela poeira. Carrega às costas expostas um alforge com coisa pouca, nos pés sandálias a deixar sobrar mais pé que sola, e das canelas para cima só umas calças de um vermelho desbotado a esconder pouco mais que as vergonhas e uma marca que traz na perna esquerda.

– Quem vem lá? Sabes onde estamos? Para onde vais? Talvez te possas juntar a mim que caminho sozinho, ou deixar-me acompanhar-te se preferires –  pergunta o jovem sem obter mais do que um angustiante silêncio nos longos espaços entre as estas questões. Sem dizer o que quer que seja o velho busca o alforge de onde tira um pedaço de carne curada e um púcaro, para servir uns goles de vinho tinto ao homem sem nome. Dada a esmola, o velho numa voz rouca que segreda do fundo de um poço diz:

– Além –  apontando com o olhar para um vulto distante, deformado pelas ondas de calor que exala da terra cozida.

– Não sei que procuras, assim como vejo que não sabes tu, mas é naquela direcção que sopram os ventos. Se te tiraram algo é para lá que levam, e até que os ventos tornem a mudar de lá não volta.

Com isto o velho vidrou uma última vez os olhos no Homem Sem Nome e fez-se ao trilho oposto. Seguido de um assentir confiante o jovem parte na direcção aconselhada. Quanto mais se aproxima mais distinta se torna a figura do seu destino. Um sobreiro. Já exausto, alcança finalmente a sua sombra e ali passa o resto do dia e a noite.

Finalmente chega ao destino indicado pelo caminhante desconhecido e no entanto não há mais nada. Nem uma pista da mulher sem rosto ou do que seja. No dia que seguinte, sem força para muito, tenta subir à árvore e averiguar o espaço.  É quando um pé em falso num galho frágil, e uma fuga alvoraçada de um corvo abrigado na copa, lhe dão a deixa para amenizar a fadiga, para desistir desta busca que parece incessante por alguém vago. Tão vago como a memória do homem de perna traçada. E deixando caír o seu corpo num relaxamento completo, deixa caír também a esperança e a vontade. O chão estremece tal como estremeceu o chão onde estavam as raízes do pé de feijão de onde caiu também alguém da outra história. É então que volta à cena a lei de que já falei, regente da morte e da vida. Aquela carcaça ali jazida não é mais do que isso e serve uma ave vestida com as cores da morte. O pássaro, sedento e voraz ataca com a tenacidade e o ímpeto de encher o vazio deixado pelas presas que não conseguiu só ele sabe há quanto tempo. Depois de saciado e amansado o estômago o corvo resguarda-se novamente no sobreiro de onde surgiu, aquele que floresce de vida num sítio onde tudo é pó e tudo é só terra e eco até que alguma nuvem soprada de outras paragens torne a chorar um luto qualquer e dê de beber a um qualquer.

 

Ricardo Estevens
Lisboa 20/03/2014     


 

 

 


 

domingo, 9 de novembro de 2014

Requiem

Publico hoje o primeiro conto saído das últimas Oficinas de Escrita - Blind Date ou Encontros Imediatos de 2º Grau. O desafio foi muitíssimo estimulante, e o belíssimo texto de Alda Rosa testemunha-o. Pela minha parte, dou-lhe todas as estrelas das tabelas que as implicam. Manuela Gonzaga.

 

Deserto, Arches National Park, Utah.
[cortesia Kool Cats Photography]
 

Agora estamos a ficar surdos. Em breve tornar-nos-emos mudos. E em seguida silêncio. Que angustioso silêncio isso causa! Mas será som. Até mesmo o silêncio ficará cheio de som. Será uma espécie de música interespacial para encher o vazio das nossas almas insensíveis.

Que estranheza: silêncio, som, silêncio, angústia. Onde estaremos? Nesta escuridão não conseguimos ver-nos uns aos outros. Também estaremos a ficar cegos? Que espaço será este? Há uma música indelével no ar. Será a nossa respiração? Parece mais um gemido.

Sinto-me assustado. Cego, mudo, vazio, com uma surdez parcial, pois oiço a tal música estranha, que não consigo percepcionar. Fico arrepiado ao ouvi-la. Eu disse que me sinto arrepiado? Pelo menos ainda tenho alguma sensação neste abominável vazio.

Tento andar, mas receio pisar algum dos meus companheiros. Estendo os braços e os meus dedos tocam numa superfície rochosa. Estaremos numa gruta? Coloco um pé diante do outro, com muito cuidado. Não se ouve nada, para além daquela música intrigante. Avanço lentamente e nada. Estarei mesmo acompanhado? Ou ter-me-ão lançado para este espaço desconhecido e vazio sem os meus companheiros?

Tento recordar-me dos momentos que antecederam este vazio. Éramos um grupo de activistas pelos direitos humanos e fomos detidos pela polícia. Colocaram-nos numa cela escura. Ficámos ali, apertados uns contra os outros, a sentir a respiração angustiante de todos nós. Pouco depois, começou o interrogatório e vieram as ameaças. Alguns choraram. Uma mulher desmaiou. Talvez não se tenha magoado, pois não havia espaço para cair desamparada no chão. Não tínhamos onde urinar ou defecar, o que deixou o cubículo imundo e quase irrespirável. Após longas horas de encarceramento, algemaram-nos, vendaram os nossos olhos e colocaram-nos num carro. Percorremos uma longa distância. Provavelmente era noite. Sentíamos um frio gélido a atravessar os nossos corpos. Quando parámos, retiraram-nos as algemas e fomos levados para um espaço. Ouvimos algo a fechar-se. Imaginei que fosse uma porta. Inicialmente o silêncio mas, pouco depois gritos, choro, pedidos de ajuda. Estávamos mais uma vez aprisionados. De repente, deixámos de ouvir qualquer ruído. Já não falávamos. Estaríamos a ficar surdos? Ou mudos? Um silêncio sepulcral. Até começar a tal música indelével, estranha, que parecia trespassar o vazio dos nossos corpos.

Continuo a andar lentamente, mas o medo de pisar algum dos companheiros atormenta-me. Tento gatinhar. Talvez seja mais fácil percepcionar o que me rodeia. Acho que estou numa gruta. As paredes rochosas e o chão térreo. Pelo menos sinto um pó por entre os dedos. E nem sinais de vida. O que terá acontecido aos meus camaradas? E mais uma vez esta música cortante. De onde virá?

Prossigo o caminho. De repente paro. Sinto um vento a passar pela minha face. Estarei perto de uma saída? Continuo, palpando à volta, mas só encontrando rocha. Talvez o ar venha de alguma fresta muito acima do local onde me encontro. Aqui, a música parece ecoar pelas paredes. É um som assustador.

Um pouco mais à frente, a minha cabeça toca numa superfície dura. Levanto a mão e tacteio toda uma zona rochosa. Deito-me e rastejo. Devo estar num local estreito. A música parece menos perceptível. Prossigo e parece-me ver claridade mais adiante. Que alívio, afinal não estou cego. Olho em redor e apercebo-me que estou numa gruta, rastejando num espaço onde só cabe o meu corpo deitado. Avanço até à saída. Finalmente a luz. Levanto-me e olho o meu corpo sujo e emagrecido. À minha volta uma zona árida, sem árvores, pedregosa, pobre em vegetação. Tenho de procurar os meus companheiros ou alguém que me ajude. Percorro o caminho, sem destino. O sol escalda. Lembro-me que estamos no Verão. A fome e a sede provocam-me uma inquietação, quase um estado alucinatório. Caminho cada vez com maior dificuldade. Sinto o corpo a pesar, as forças cada vez mais reduzidas. Nenhum ruído em redor. Ainda estaremos mudos? Abro a boca e grito: Estão a ouvir-me? Pelo menos não estou mudo. Não obtenho qualquer resposta.

Continuo este caminho errante. De repente sinto um odor no ar que me provoca uma náusea intensa. De onde virá? Olho à volta. Não acredito. Uns metros adiante, um amontoado de corpos. Arrasto-me até lá. São os meus camaradas. Foram assassinados e lançados aqui. Como foi possível esta chacina? E como é que sobrevivi? Este cenário é insuportável. Sinto uma dor lancinante no meu peito. Segue-se um vómito imenso. Parece que o meu corpo se está a desfazer. Não aguento mais. A dor cada vez mais intensa. Vou morrer. Estou a ouvir um som, uma música cada vez mais próxima. É um requiem. A dor atroz. Os vómitos incoercíveis. Caio em cima dos corpos. Estão frios. O cheiro é nauseabundo. O meu corpo também está a ficar frio. Quanto tempo terá passado? Como terei conseguido salvar-me? Mas a dor esmaga-me o peito. Estou a morrer. Só resta o requiem, que aos poucos se vai tornando menos perceptível.

Alda Rosa

Lisboa, 20 de Outubro de 2014

domingo, 26 de outubro de 2014

Alma Gémea

Na recolha de textos e sua revisão final para o próximo livro das Oficinas de Escrita, tenho voltado a deliciar-me com os trabalhos das e dos alunos. Aqui fica um extrato do excelente conto de Ana Moita dos Santos. MG

 
Alma Gémea
 
«[...] É impressionante o que um simples penteado pode fazer por uma mulher! Parece futilidade mas não é. Estou a passar por uma separação e um simples gesto de atenção comigo significa muito, neste momento.

Separei-me do meu marido de quinze anos, por vontade e iniciativa própria. Foi um alívio, na altura. Discussões, falta de amor, de respeito, tudo o que meu querido espelho testemunhou em silêncio.

«Desatei a namorar. Imaginem que me encantei por um antigo namorado de juventude, que não via há séculos… e, embriagada de paixão, entrei a fundo no “paraíso”! Divertimento, saídas à noite, viagens, enfim, tudo o que já há muitos anos não fazia.

Tirei a barriguinha de misérias, lá isso tirei. Mas o pior veio depois. É que, enquanto estive no “paraíso”, deixei os meus dois filhos com o pai. Quando regressei à Terra, eles não queriam nada com a mãe, só queriam o pai.

Tem sido muito doloroso viver na Terra sem eles.
[...] »
 
Ana Moita dos Santos
 

domingo, 12 de outubro de 2014

Encontros Inesperados de 2º Grau

Venham escrever connosco. As próximas Oficinas de Escrita estão a começar. Dois sábados, dias 18 e 25 de Outubro, das 16 às 18 horas.

O titulo original desta Oficina era, e continua a ser, Blind Date, que é quase uma expressão idiomática partilhada em várias línguas. Mas uma leitora chamou-me a atenção e eu considerei. Não estaria eu a subalternizar a nossa adorada língua Portuguesa? Não estava, não estou. Mas acrescentei esta alternativa - Encontros Inesperados de 2º Grau
Posto isto - de que trata este Blind Date literário? Uh uh... se dissermos tudo, estragamos o prazer da festa. Portanto, mantendo o segredo, aqui vai uma súmula:


E quando um ou uma desconhecida lhe…
Pequena oficina de escrita quase automática que pretende despertar uma narrativa torrencial, em resposta a um desafio muito inesperado, cujo teor não revelaremos para manter intacta a energia do encontro e da surpresa.


Blind Date
Encontros Inesperados de 2º Grau

 A expressão - «Fiquei sem palavras» - é provavelmente o que vai acontecer aos participantes desta oficina nos primeiros momentos em que encontrarem o desafio proposto. Em carta fechada – e diferente para cada um ou uma.
Os envelopes são colocados numa pequena caixa, sem destinatário de modo que a proposta é escolhida de forma aleatória.

– Ao longo das duas aulas desta Oficina propõe-se a construção de uma narrativa com base no convite ou na proposta, decente, indecente? Invulgar? Banal?, que cada um escolher.
Duas aulas, duas horas cada. Na primeira a construção da narrativa. Na segunda o seu aperfeiçoamento e conclusão.

Informações - local, preços, inscrição através do email: manuelagonzaga@gmail.com

Adicional: Ao longo do tempo em que durar a Oficina, os participantes podem colocar questões à orientadora, por email, ou pessoalmente. As anotações sobre a escrita, não tendo qualquer intuito «crítico» serão conduzidas no sentido de orientar a eficácia do discurso. Tanto quanto possível, essas considerações serão pessoais – de orientadora a orientando/a.



 

quinta-feira, 15 de maio de 2014

A graça de ser Maria

A Ana, ou a Maria Ana, passou rapidamente a «Anita» durante as oficinas. Mas a sua esplêndida juventude não lhe retira um átimo à força das suas narrativas. Foi lindo ver como os seus textos cresciam, encantando-nos pela intensidade, emoção e frescura. Aqui fica uma amostra. MG



A graça de ser Maria

O meu pai conta em jeito de brincadeira que sou tão teimosa que troquei as voltas a toda a gente. Diz que fez as contas de forma a eu nascer no seu dia de aniversário e queria muito que fosse um «Zé». Eu não fiz a vontade a ninguém, nascendo Maria e quinze dias antes, sendo a rainha da teimosia desde que fui gerada.

A escolha do meu nome não foi um processo linear. À medida que a gravidez ia avançado, as incertezas não davam lugar às decisões e não havia maneira de ter um nome. Primeiro pensaram em Ana Luísa, nome com tradição familiar, mas depois diziam que fazia lembrar a tia chata e que não podia ser. Depois Anísabel, um rasgo de criatividade dos meus pais que agradeço por não ter sido levado avante. Joana também foi opção, mas a semelhança com o nome do meu irmão eram demasiado evidente e não queriam que carregasse esse peso.

Mas no meio de tantas dúvidas, o meu nome foi escolhido da forma mais engraçada que poderia haver. Após terminar a escritura de uma sociedade, a minha mãe e a sua sócia caminhavam lado a lado e esta pergunta-lhe:

Já têm nome para a bebé?

Não… disse a minha mãe, revelando que a escolha não estava a ser fácil.

Gostava muito de ser a madrinha.

A minha mãe sorriu e disse:

Mas eu não vou batizar a menina. O pai quer muito que esta possa escolher a sua orientação religiosa quando for mais crescida.

Não faz mal, serei uma madrinha de Registo – respondeu a sócia, continuando – Maria Ana é um nome lindo, não acha?

Com 20 anos pergunto-me: imaginar-me-ia com outro nome? De todo! Adoro-o e acho que nenhum seria tão perfeito para mim. Dá-me o privilégio de me adaptar às circunstâncias. Como costumo dizer, tenho quatro nomes: Maria para a maioria das pessoas que me conhecem; Ana para quando a minha mãe me chama à atenção; Maria Ana para situações mais formais e nome sonante numa vida profissional e por último mas não menos importante Anita, diminutivo criado pelo meu pai quando ainda era muito pequena, pelas semelhanças com a menina das histórias.
O nome é aquilo que nos distingue e nos caracteriza. Maria Ana não é um nome muito comum e isso faz-me gostar dele. Sempre o associei às princesas e rainhas, lembrando-me da Maria Ana da Áustria, casada com D. João V, Rei de Portugal. A minha mãe reforça a ideia que o nome me encaixa na perfeição porque sou um «narizinho empinado» que nasceu para dar ordens e não para obedecer!
Muita gente me pergunta: porque não Mariana ou Ana Maria? Não era mais fácil de lembrar ou pronunciar? Possivelmente até seria. Mas a graça das coisas da vida está na irreverência, na ausência de comparação e na singularidade e é sempre tão bom quando achamos que nosso nome tem graça.
 

 

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Espelho meu, há alguém com mais sorte do que eu?

Do excelente conto de Ana de Sienna, mais um extracto - enquanto aguardamos pelo livro antológico onde o texto constará na integra. MG
 
 
 
[...]
 
Claro que vou ficar neste mundo eternamente. Se isto for um sonho, por favor, não me acordem! E quando chegará até mim esse alguém, meu cantor?

Quando for a hora é a resposta.

Espero com muita calma e, enquanto espero, vejo uma figura envolta em neblina a andar na minha direcção. Caminha decidida e eu sinto que é importante o que tem para me dizer. Quando chega junto de mim, vejo que é um homem. Beija-me ao de leve nos lábios, sem uma palavra. Instintivamente, retribuo o beijo e percebo que o conheço há muito tempo. Há tanto tempo, que nem sei precisar quanto. Vários anos, talvez até séculos ou milénios… Que sensação tão maravilhosa e, ao mesmo tempo, tão estranha. É um reencontro? Já nos conhecíamos e só agora nos voltamos a encontrar? Tudo nele me é familiar: os lábios, o beijo, o cheiro, o toque, o que vejo no fundo dos seus olhos claros. O prazer do seu toque é imenso, o seu olhar é reconfortante… Tudo e nada me diz que é com ele que a felicidade pode chegar. Que vale a pena tentar. Não sinto medo, não sinto hesitação, sinto vontade de arriscar.

E ele diz-me:

Sou a tua alma gémea. Tenho-te visto sofrer e, finalmente, venho ao teu encontro. Confia em mim. Não te vou deixar. Quero ficar contigo para sempre.

Dou por mim a pensar: Isto só pode ser um folhetim ou uma novela daquelas bem pimba… Acorda e regressa à realidade. Tento abrir os olhos, belisco-me, mas nada acontece. Tudo se mantém igual.

Entretanto, ele já me envolveu nos seus braços e acaricia-me de uma forma nunca antes sentida, enfim, um descalabro! Rendo-me ou resisto? Se resistir, não me vou arrepender para o resto da vida? Mas será isto realmente a minha vida ou trata-se apenas um sonho, um delírio dos quarenta, uma maluqueira repentina, eu sei lá!?

Olho-me novamente no espelho e falo com ele: «espelho meu, diz-me se há alguém com mais sorte que eu?»
[...]

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Alma Gémea

De Ana de Sienna, o extracto de um magnifico conto, «Alma Gémea», que nos leva ao universo das escolhas que determinam as nossas vidas. Uma mulher, as suas memórias, um espelho, a solidão, o sonho e uma promessa. E uma inspiradora lição de vida, porque disso se trata. MG.


'É um espelho alto, cheio de detalhes preciosos: talha dourada, flores pequeninas enganchadas em tronquinhos retorcidos, mimosos. É uma peça do séc. XVIII, italiana.' [foto A.S.} 


[...]
Neste quarto, e com este espelho por testemunha, vivi todos os anos do meu casamento. O que ele sabe e não conta dava um livro. Um livro que posso abrir ou não. Um dia, talvez olhe para ele e não me veja só a mim, como agora, mas consiga ver mais além, para o passado e, quem sabe, para o futuro. O que vejo agora é uma mulher de quarenta anos, bem conservada. Bonita, de feições agradáveis mas vincadas pela vida. Pelas emoções vividas, boas e más. Algumas muito más. Algumas boas e poucas muito boas.

Olho-me no espelho e vejo uns olhos. Grandes, verdes, bem desenhados, mas tristes. Tristes, porque é assim que me sinto hoje. O cabelo é preto, comprido e desgrenhado. Não tive ânimo para o arranjar e agora, para além de triste, sinto-me feia.

Não faz mal, penso, porque todos me dizem que sou bonita! Sim, mas podia estar melhor, se tivesse arranjado o cabelo, penso em seguida. Amanhã tenho uma reunião importante e não posso apresentar-me assim. Tenho de conseguir tempo e vontade para ir arranjar o cabelo.

Não me quero ver mais ao espelho, hoje. Amanhã, vou mesmo ao cabeleireiro!
[...]


 
Ana de Sienna, Lisboa, 18.03.2014




 

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O incandescente mantra

Texto arrebatador, de um erotismo poético, assinado por Eugénia Sales que insiste em escrever «não consigo!». Mas nós, que a lemos, percebemos perfeitamente que consegue. MG.

Gustav Klimt (1862-1918), Le Baiser
 
Não consigo! Não consigo escrever! Dizes para “sentir” que “as coisas acabam por fluir”. E o pensamento voa de imediato para o sentir. Só que é para o sentir dos teus beijos na minha cara, nos meus ombros, no meu pescoço, nos meus lábios, nas voltas das nossas línguas.
Tento, juro que tento. Mas por mais que o faça, é para lá que volto sempre. Para o teu olhar. O teu olhar em mim. Esse olhar que me percorre o corpo todo e que me penetra a alma. Esse olhar, presente e inabalável, que espelha, seguro, este amor antigo, que te enraíza e te eleva. E volto para os teus lábios que sussurram, naquele murmúrio cantado que nos embala nesta nossa viagem. As mãos entrelaçam-se e os corpos estremecem.
Não consigo escrever. Só lembrar!

E as imagens sucedem-se e a perplexidade e o maravilhamento vão tomando conta de mim... Como é que o fogo pode ser brando e refrescante; como é que a candura pode ser tão pujante e viril; como é que a intensidade pode ser leve e o mantra incandescente? Como pode um peito tão cheio e arrebatado, deixar um sorriso indizível escapar dos teus lábios e fixar-se no teu olhar? Como podem as tuas mãos, tão ágeis e vorazes, tecerem este manto de seda que me envolve a pele e de que os teus dedos são hábeis artesãos? Como pode o ferro ser veludo? Como pode o Céu estar na Terra e a Terra toda em mim?
Meu amor! Serena essa alma ávida e aflita. Porque o meu corpo reclama a tua boca e a minha alma aspira ao nó que nos une e se vai entrelaçando nesta valsa lenta mas eterna.

E não consigo, não consigo escrever.

Eugénia Sales, Lisboa, Fevereiro 2014

domingo, 20 de abril de 2014

Uma menina chamada Alda

Extracto de um dos textos de Alda Rosa, que se junta às outras narrativas que compõem o 2º livro das nossas Oficinas de Escrita. Delicioso! MG



[...]
 
Sete anos. Vamos fazer uma luta de índios e cowboys. Dividimo-nos em dois grupos. Cada um de nós tem vários bonecos de plástico que escondemos nos canteiros e vasos dos quintais das redondezas, para grande fúria das porteiras, pois deixamos sempre algumas flores destruídas. Ganha o grupo que encontrar mais bonecos do inimigo. É sempre muito divertido.

Oito anos. Encontrámos um novo divertimento. Subir um candeeiro de electricidade junto a um muro que tem cerca de três metros de altura, depois fazemos uma corrida ao longo do muro, que tem um rebordo com alguns centímetros e depois descemos pelo candeeiro que se encontra na outra ponta. É uma brincadeira um pouco arriscada, mas nós divertimo-nos imenso. Eu sou a única menina, mas fico sempre entre os primeiros.
[...]
 
Alda Rosa, Lisboa, Março, 2014

terça-feira, 15 de abril de 2014

Lembras-te, Pai?

Da coletânea de textos de Alda Rosa, ficção e autobiografia, que vão figurar no próximo livro das nossas oficinas, destacamos este testemunho pungente. Uma muito bela e muito tocante homenagem ao seu pai. MG
 

Lembras-te paizinho, do triciclo que me compraste quando eu tinha dois anos e que eu parti naquela aventura de querer andar de marcha atrás? Tu, habilmente, reconstruíste a minha máquina e eu pude continuar a brincar com ela. E recordas-te de quando íamos de férias para a aldeia e corrias comigo pelo campo, ensinando-me a conhecer, pelo nome, todas as árvores e arbustos? Transmitias-me tanta confiança, que aprendi contigo a não ter medo de alguns animais, como cobras, ratos e lagartos... Depois, quando dei as primeiras braçadas na água gélida das piscinas naturais do Agroal, tão pequenina que perdia facilmente o pé, não sentia receio, porque estavas sempre ao meu lado.
 
À noite, chegavas a casa com o Diário de Notícias e eu pegava nele, acocorava-me a um canto da cozinha, e colocava-o no chão para o ler de trás para diante. Este é um hábito que mantenho até aos dias de hoje, com jornais e revistas.
 
Como eu gostava do escritório onde trabalhavas, na rua da Glória! Desde os dez anos, sempre que não tinha aulas, levavas-me para lá, contigo. Recordo aquela casa enorme, com uma sala que era o centro da minha fantasia. Nesse espaço, colocavas as colecções de roupa feminina que recebias da fábrica do Porto e separavas as peças que posteriormente eram distribuídas pelas boutiques de Lisboa. Em cada mudança de estação, lá estava eu a experimentar vestidos, saias, blusas. Tu até deixavas que eu usasse alfinetes para os ajustar ao meu corpo. Depois, fazia um desfile. Eras o único espectador, e eu a única modelo, mas divertíamo-nos muito. Um dia, ensinaste-me a dactilografar, e eu sentia-me tão orgulhosa por escrever as minhas redacções naquela máquina preta, que produzia música de cada vez que se teclava numa letra.
 
Continuas tão presente na minha vida… Recordas-te das nossas idas à Ervanária Rosil, na rua da Madalena, plena de uma enorme variedade de perfumes que vinham de todas as ervas medicinais lá existentes, que serviam para as mais variadas mezinhas? Eras um grande apologista da utilização de infusões ou pomadas para tratar algumas das nossas maleitas. Só me faziam impressão as sanguessugas, (que também tínhamos em casa), porque receava que um pedaço do meu corpo fosse sugado para dentro daqueles frascos.
 
Sabes?, as nossas conversas ainda hoje me alimentam. Apesar de só teres concluído o curso comercial, sempre foste um homem ávido pelo conhecimento. Quanto tempo passámos a falar de livros! Foi contigo que conheci autores como Miguel Torga, Soeiro Pereira Gomes, Eça de Queiroz, Júlio Verne, Vítor Hugo e tantos outros. Então, foi aquela noite de 29 de Novembro de 1978, em que eu estava muito feliz, pois tinha acabado de saber que tinha vaga no curso de Medicina. Mostraste-te satisfeito, mas também preocupado, referindo que não sabias se ias ter força para me ajudar a alcançar este meu desejo. Fiquei desapontada e incrédula. Porque não havias de ter força? Tu eras o meu super-homem, nada de mal te poderia acontecer! Como poderias estar a adivinhar a catástrofe que caiu sobre nós, três dias depois?
 
Lembras-te, Pai?

 
Alda Rosa, Lisboa, 30 de Março de 2014

 
 

quarta-feira, 9 de abril de 2014

O Homem sem nome e a Mulher sem rosto

É com a maior alegria que publicamos um extracto do texto soberbo de Ricardo Estevens, cuja evolução em dois seminários de escrita foi surpreendente, confirmando o enorme talento do jovem escritor. É um, entre vários excelentes contos que integra a próxima antologia das Oficinas de Escrita. Daí, e por opção dos autores, ainda não os publicarmos aqui integralmente. MG.

Ilustração de Bernardo Pacheco


«Podia ter acontecido a qualquer ser em qualquer altura sem razão alguma, ou a ser algum e em nenhuma altura. Mas foi àquele corvo, empoleirado naquele sobreiro, que aconteceu. Aquando de se banhar e matar a sede na água fonte da vida, que a sua não cessou mas perto, salva só pela lei de Lavoisier, isto é certo. Cai a pena das asas de voar, as articulações começam a partir e a formar ângulos opostos aos de antes, mais ossos nas “antes-asas”, agora ligamentos, músculos e por cima nova carne em retalhos – mãos. Lentamente o bico entra em decomposição até ficarem só dois pedaços de carne – lábios. A boca prenha de dentes torna-se pequena para a língua inchada e em sangue, consequência da luta por espaço com os novos inquilinos. Os ossos começam a pesar. Vê com os novos olhos o velho chão distanciar-se, estranhamente agora que não voa. O negro das patas clareia até ser o moreno das pernas, excepto na esquerda onde, como se fosse tinta, o escarlate escorre na mesma direcção e forma um grosso aro abraçando o gémeo e a canela. O seu reflexo no lago é estranho, não se reconhece. É um estranho e na sua agora estranha mente tudo é branco. Branco de quem nasce novamente e deixa de lhe ser estranho, porque se tudo é novo é de esperar que também seja nova a mente. O branco imaculado começa então a ganhar outras cores que o preenchem. Cor-de-conhecimento e tons de razão garridos. Começa a absorver as cores em seu redor, e pinta numa tela igual à tela que deveria ser a de Adão antes da Eva, antes até do Criador; à de um recém-nascido antes de cometer o crime de perder a inocência; à de um homem. Depois das cores, palavras. De alguma forma, o seu pensamento é encriptado agora com símbolos que reconhece, como se tivessem sido seus desde sempre: a palavra ler; escrever; raciocínio.»
[...]

Ricardo Miguel Mota Estevens
Lisboa, 04/04/2014





 
 


 

segunda-feira, 24 de março de 2014

O Efeito Borboleta ou Cenas de um (pós) Casamento

Sob o título genérico O Efeito Borboleta, os próximos cursos de escrita ficcional recomeçam a 10 e 12 de Abril, e vão dividir-se por dois grupos, respectivamente às quintas-feiras, das 18.30 às 20 horas e aos sábados, das 16 às 17.30 horas. Ah, e vamo-nos divertir tanto, mas tanto.

"I'm afraid I ca'n't put it more clearly," Alice replied, very politely, "For I ca'n't understand it myself to begin with; and being so many different sizes in a day is very confusing." [L. Carroll]
 

O local será, como de costume, a Livraria Alêtheia, na rua do Século nº 4.

A duração destas oficinas será de mês e meio - seis aulas portanto, dividas por três módulos:

1) à procura de um personagem, ou de vários;
2) A história que as imagens não contam;
3) As respostas para a pergunta: onde param os noivos?

De onde então o Efeito Borboleta, ou melhor ainda, o Efeito Lagarta, se os conteúdos remetem basicamente para Cenas de um (pós) Casamento? Da frase que sintetiza o despoletar de uma investigação que culminou na Teoria do Caos: «A dependência sensível das condições iniciais».

Quer dizer, de um mesmo ponto de partida - um álbum fotográfico recolhido numa esquina de rua à mistura com tralhas diversas e sacos de lixo - propomos a reestruturação da história TODA por contar. O que terá acontecido, para tudo acabar assim? As imagens são de uma eloquência encantadora, mas não as divulgaremos antes de tornarmos irreconhecíveis os seus protagonistas. Acrescentemos porém que há rostos inscritos em conchas; noivos a duplicar; corações de nuvens e emoldurar os nubentes; e um certo ar de tristeza na cara da princesa do momento. Há quem jure, olhando as fotografias, que ela já está grávida. Há quem veja muito mais do que ali aparece. Há histórias a fervilhar...


Will you love me forever? Yes! Till this plastic bodies of ours melt somehow.

Portanto, e de um  mesmo ponto de partida, veremos como das mesmas condições iniciais se divergirá imensamente para as mais diversas narrativas. Até porque a Criação subjaz poderosa e latente no seio do Caos, o que, em arte, é sempre a epifânica constatação.


Nota: «O Efeito Borboleta» enquanto frase merece um post à parte, mas para simplificarmos as coisas não há como ir à fonte de divulgação para leigos. De James Gleick, Caos, a Construção de uma Nova Ciência, 2ª ed., Lisboa, Gradiva, 1994.

sábado, 22 de março de 2014

Universos Paralelos em livro antológico

Universos Paralelos - viagem ao outro lado do espelho - trouxe a lume forte um punhado de narrativas muito boas. Surpreendentes, mesmo. Da primeira aula - 'eu não tenho imaginação nenhuma'; ou: 'embrulho-me na história, quero contar tanta coisa'; ou: 'estou cheio ou cheia de dúvidas'; etc. etc., passámos à segurança das etapas seguintes, com todas as inseguranças implícitas no acto criativo. Ao mesmo tempo, e no decorrer das várias aulas, aprofundámos a importância da partilha. De ideias, de textos, de histórias de vida e leituras cruzadas.

AN EARLY BOOK PRINTING SHOP

As histórias que surgiram de Universos Paralelos, cujo mote foi o olhar sobre um espelho com viagem de ida e volta ao outro lado, são tão diversas e ricas que nos deram já o mote do próximo curso ficcional. Por isso, e só aparentemente, é que as Oficinas têm estado muito 'tranquilas'. Nem sequer colocamos aqui os belos contos dos participantes. Porquê? Opção decidida por unanimidade. Já que vamos avançar para um livro antológico, é melhor manter a surpresa.

E que livro!

Tema de outro post, está visto.


Imagem cortesia de: An early book-printing shop illustrated in a copperplate print by Stradanus (1590)» Copyright S. Blair Hedges, retirado de HANAUER & SEIDMAN RARE BOOKS 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

E isso é que é sedutor

Na última aula, pedi: «apresentem-se de uma forma sedutora», no arranque da escrita de uma pequena história de vida para «a minha vida dá um livro». A M. Eugénia manifestou a sua perplexidade e fundamentou-a. Estava cheia, coberta de razão.


Charles Dickens, Oliver Twist (1837)

Mas em escrita, quando falo de 'sedução' invoco outros patamares. Não são os nossos pseudo-triunfos, as nossas medalhas de bom comportamento social, ou forma mais ou menos adequada como nos inserimos, desde muito pequenos, no espaço emocional e afectivo que nos coube em destino: nada disso, se for só isso,suscitará empatias, mas sim as nossas perplexidades, falhas, medos, anseios e sonhos, e quedas. Tudo, o que nos torna realmente humanos e que é tudo o que todos temos em comum.

Isso é que é sedutor.

Não se trata de fazer o apelo à «desgraça», hoje em dia tão banalizada ao serviço da comunicação de entretenimento fácil. É o modo com enfrentamos o caminho, as pedras em que tropeçamos e os montes que subimos, e o que vamos fazendo até conseguir ir ver o Mar. É o caminho e a forma como caminhamos, corremos, caímos, levantando-nos uma vez e outra, voando por vezes, que importa. E o caminho é sempre irregular e assombroso, no segredo das nossas vivências. Conseguirmos partilhá-lo, em primeiro lugar, é arranjarmos muita iluminação extra para nós próprios. Inevitavelmente, a luz espalha-se.

E isso é que é sedutor. 

 

sábado, 8 de fevereiro de 2014

A Princesa Ariana

De Alda Rosa, a segunda parte da sua viagem pelos Universos Paralelos. É um conto escrito à boa e antiga maneira das histórias de fadas, muito sedutor e intrigante.


A Princesa Ariana

 
Havia um, na torre, que me fascinava. Chamavam-lhe o quarto da Rainha Eleanora e era proibido entrar ali

 
Tanto ruído, mas que gritaria. Há um grande entusiasmo no ar. O bebé da Rainha Azara está prestes a nascer! E eu, minúscula, no meio de todo aquele alarido, a sair das entranhas da minha mãe para os braços firmes da velha e sábia mulher que me ajudou a vir ao Mundo, e que me acolheu, limpou e embrulhou em lindas cambraias e rendas, estendendo-me depois à rainha:

- Majestade, eis a vossa linda princesinha.

Oiço a minha mãe a dizer:

- É tão linda!

E depois, uma voz masculina, muito meiga:

- A minha princesinha Ariana parece uma laranjinha! Amem-na muito, pois virá a ser a vossa rainha.

- Sim, Majestade, responderam as aias, que a seguir me levaram para o berço cheio de rendas e debruado a ouro, onde adormeci.

E por todo o reino tocaram sinos em honra do meu nascimento, e foram decretadas festas, e organizados banquetes e bailes para onde todos, sem distinção de nascimento ou de fortuna eram convidados, para que o povo partilhasse da alegria dos seus monarcas.

E eu fui crescendo, entre afagos, mimos, alegrias, correndo pelos enormes corredores do palácio, cobertos de tapeçarias e de retratos dos meus antepassados, alguns com aspecto tenebroso. Eu não conhecia o palácio todo. Havia salas, salões, câmaras, recâmaras, pequenos aposentos, caves, aonde acedia com maior ou menor facilidade. Mas também havia outros aposentos misteriosos sempre fechados com grossos ferrolhos. Havia um, na torre, que me fascinava particularmente. Chamavam-lhe o quarto da Rainha Eleanora e era proibido entrar ali, por causa de um espelho que pertencera a essa minha avó. A minha mãe, dizia que, quando o mirávamos, deparávamos com a cara horrenda de uma bruxa. Assim, esse espelho estava guardado numa gaveta e o quarto mantinha-se sempre fechado.

Sempre que podia fugir ao controle das minhas aias, e conseguia subtrair a chave que a Rainha guardava numa pequena arca na sua câmara real, subia à torre, abria o quarto da minha avó, pegava no espelho, olhava-me, fazia caretas, imaginava-me já crescida a fazer penteados com o meu cabelo negro e comprido, que entrançava e prendia no cimo da cabeça. Este espelho, que nunca me devolveu a imagem de uma bruxa horrenda, mas era para mim algo de mágico. Como poderia a minha mãe não gostar dele?

 Enquanto era muito pequena, uma boa parte da minha vida era passada nos jardins do palácio, onde, por vezes, as minhas aias me deixavam brincar com os filhos das numerosas servas e açafatas, algumas das quais eram casadas com oficiais e mesteres ao serviço da corte, e viviam em instalações anexas, junto das hortas ou dos pomares ou das oficinas. Também adorava percorrer as cozinhas, onde eram confeccionados pratos deliciosos que emanavam aromas maravilhosos e tentava distrair as criadas para  ir até aos salões, onde o meu pai se reunia com, ministros, conselheiros, dava audiências a embaixadores de outros países ou acolhia as petições do seu povo. Escondia-me atrás dos reposteiros e ouvia as conversas. Não percebia muito do que diziam, mas entendia que o meu pai era apreciado no Reino e amada por todos.

Por vezes, quando ia cavalgar para o bosque com o seu séquito de guardas, escudeiros e pajens, levava-me à garupa do seu cavalo e fazia-me conhecer a natureza, ensinando-me o nome dos pássaros, das árvores, das plantas e de todos os animais que corriam livremente em redor do palácio. Lembro-me do dia em que ele me falou do freixo:

- Sabes Ariana, esta bela árvore que aqui vês chama-se freixo e pertence à mesma família da oliveira. Tem a copa arredondada e cresceu rapidamente, porque se desenvolveu aqui, perto do ribeiro. As folhas também têm uma particularidade, quando chega o frio, caem, ainda verdes, sem alterar a sua cor, como acontece com a maioria das árvores. Isto ajuda a nutrir o solo e a alimentar os animais. Os antigos também diziam que as folhas ajudavam a baixar a febre. E a madeira, por ser flexível e resistente, tem sido usada, desde longa data, na construção de arcos e flechas.

As coisas maravilhosas que o meu pai sabia!

Um dos pajens que nos acompanhava nesses passeios por bosques e florestas era o Alberto, apenas um pouco mais velho do que eu. Os seus pais tinham morrido durante uma trovoada, fulminados por um raio. O meu pai tinha um carinho especial por ele, porque o Alberto cuidava extraordinariamente dos cavalos, parecia que tinha uma relação mágica com eles. Foi ele que, a mando do meu pai me ensinou a cavalgar. Quer a proximidade de idades, quer o cuidado que Alberto tinha comigo, criou em nós uma amizade profunda.

A minha mãe confiava-me às aias e prestava-me pouca atenção, apesar de estar sempre a dar-lhes instruções sobre a minha educação, pois temia que não viesse a tornar-me na boa rainha como o reino precisava. Eu adorava vê-la a receber os joalheiros que expunham aos nossos olhares joias deslumbrantes, anéis, pulseiras, as gargantilhas que ela tanto gostava de usar. Ou os mercadores, que traziam tecidos lindíssimos e preciosos de tão remotas paragens. Sedas, musselinas, cetins, algodões finíssimos, rendas, que me deixavam fascinada a imaginar os belos vestidos executados em tão ricos tecidos.

E chegou a altura em que me começaram a ser ministrados os conhecimentos necessários à posição que eu viria a desempenhar, num futuro remoto... Tive aulas com o professor Luciano, um sábio nas áreas da literatura, filosofia, pintura, a quem a minha mãe tinha incumbido sobretudo a missão de me ensinar música. Mas enquanto o professor tocava cravo ou harpa, eu lia algumas das obras que existiam na biblioteca do palácio, a maioria com histórias fantásticas, que me fascinavam e, por vezes, até sentia semelhanças com algumas das personagens.

Nos dias de festa e por ordem da Rainha minha mãe, eu era obrigada a vestir vestidos pesados e profusamente ornamentados, recebendo ordens severas para me manter imóvel e majestosa como o exigia a minha qualidade de herdeira e futura monarca. Então, e após ter feito 14 anos, o meu pai morreu subitamente, provocando uma enorme consternação em todo o Reino. Uma infindável tristeza abateu-se sobre mim. E, agora, o que iria ser de mim, de nós todos? Nesses momentos de maior solidão e amargura, o Alberto tornou-se uma presença reconfortante e preciosa. Com ele, ia dar longos passeios a cavalo. E um dia, pouco após a morte do meu pai, a minha mãe informou-me que pretendia voltar a casar-se e que desejaria ter um filho varão, situação essa que me iria retirar a possibilidade de algum dia vir a ser rainha, contrariamente ao desejo do meu pai. Disse, também, que caso essa decisão não se realizasse, no dia em que ela morresse, cairia uma maldição sobre o palácio que seria devorado por um enorme fogo o qual também faria desaparecer todo o Reino.
 
 
Senti-me tão angustiada que, e com a ajuda da minha ama-de-leite, que me adorava e temia pela minha vida desde que o rei morrera, reuni algumas roupas, as mais modestas, algumas joias e o espelho da minha avó, dentro de um pequeno baú, e fui ter com o Alberto. Ele estava a par de quase tudo o que se passava, mas as ameaças da minha mãe foram decisivas. Então, nessa mesma noite, decidimos partir, com os nossos haveres, para outro Reino distante, onde iríamos casar, ter filhos e viver felizes para sempre.

Alda Rosa, Lisboa, Janeiro de 2014

Créditos imagens: Ghost Stories: The Tower of London
Aernout van der Neer (1604-1677), Burning castle before a city [detalhe]