quinta-feira, 15 de maio de 2014

A graça de ser Maria

A Ana, ou a Maria Ana, passou rapidamente a «Anita» durante as oficinas. Mas a sua esplêndida juventude não lhe retira um átimo à força das suas narrativas. Foi lindo ver como os seus textos cresciam, encantando-nos pela intensidade, emoção e frescura. Aqui fica uma amostra. MG



A graça de ser Maria

O meu pai conta em jeito de brincadeira que sou tão teimosa que troquei as voltas a toda a gente. Diz que fez as contas de forma a eu nascer no seu dia de aniversário e queria muito que fosse um «Zé». Eu não fiz a vontade a ninguém, nascendo Maria e quinze dias antes, sendo a rainha da teimosia desde que fui gerada.

A escolha do meu nome não foi um processo linear. À medida que a gravidez ia avançado, as incertezas não davam lugar às decisões e não havia maneira de ter um nome. Primeiro pensaram em Ana Luísa, nome com tradição familiar, mas depois diziam que fazia lembrar a tia chata e que não podia ser. Depois Anísabel, um rasgo de criatividade dos meus pais que agradeço por não ter sido levado avante. Joana também foi opção, mas a semelhança com o nome do meu irmão eram demasiado evidente e não queriam que carregasse esse peso.

Mas no meio de tantas dúvidas, o meu nome foi escolhido da forma mais engraçada que poderia haver. Após terminar a escritura de uma sociedade, a minha mãe e a sua sócia caminhavam lado a lado e esta pergunta-lhe:

Já têm nome para a bebé?

Não… disse a minha mãe, revelando que a escolha não estava a ser fácil.

Gostava muito de ser a madrinha.

A minha mãe sorriu e disse:

Mas eu não vou batizar a menina. O pai quer muito que esta possa escolher a sua orientação religiosa quando for mais crescida.

Não faz mal, serei uma madrinha de Registo – respondeu a sócia, continuando – Maria Ana é um nome lindo, não acha?

Com 20 anos pergunto-me: imaginar-me-ia com outro nome? De todo! Adoro-o e acho que nenhum seria tão perfeito para mim. Dá-me o privilégio de me adaptar às circunstâncias. Como costumo dizer, tenho quatro nomes: Maria para a maioria das pessoas que me conhecem; Ana para quando a minha mãe me chama à atenção; Maria Ana para situações mais formais e nome sonante numa vida profissional e por último mas não menos importante Anita, diminutivo criado pelo meu pai quando ainda era muito pequena, pelas semelhanças com a menina das histórias.
O nome é aquilo que nos distingue e nos caracteriza. Maria Ana não é um nome muito comum e isso faz-me gostar dele. Sempre o associei às princesas e rainhas, lembrando-me da Maria Ana da Áustria, casada com D. João V, Rei de Portugal. A minha mãe reforça a ideia que o nome me encaixa na perfeição porque sou um «narizinho empinado» que nasceu para dar ordens e não para obedecer!
Muita gente me pergunta: porque não Mariana ou Ana Maria? Não era mais fácil de lembrar ou pronunciar? Possivelmente até seria. Mas a graça das coisas da vida está na irreverência, na ausência de comparação e na singularidade e é sempre tão bom quando achamos que nosso nome tem graça.
 

 

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Espelho meu, há alguém com mais sorte do que eu?

Do excelente conto de Ana de Sienna, mais um extracto - enquanto aguardamos pelo livro antológico onde o texto constará na integra. MG
 
 
 
[...]
 
Claro que vou ficar neste mundo eternamente. Se isto for um sonho, por favor, não me acordem! E quando chegará até mim esse alguém, meu cantor?

Quando for a hora é a resposta.

Espero com muita calma e, enquanto espero, vejo uma figura envolta em neblina a andar na minha direcção. Caminha decidida e eu sinto que é importante o que tem para me dizer. Quando chega junto de mim, vejo que é um homem. Beija-me ao de leve nos lábios, sem uma palavra. Instintivamente, retribuo o beijo e percebo que o conheço há muito tempo. Há tanto tempo, que nem sei precisar quanto. Vários anos, talvez até séculos ou milénios… Que sensação tão maravilhosa e, ao mesmo tempo, tão estranha. É um reencontro? Já nos conhecíamos e só agora nos voltamos a encontrar? Tudo nele me é familiar: os lábios, o beijo, o cheiro, o toque, o que vejo no fundo dos seus olhos claros. O prazer do seu toque é imenso, o seu olhar é reconfortante… Tudo e nada me diz que é com ele que a felicidade pode chegar. Que vale a pena tentar. Não sinto medo, não sinto hesitação, sinto vontade de arriscar.

E ele diz-me:

Sou a tua alma gémea. Tenho-te visto sofrer e, finalmente, venho ao teu encontro. Confia em mim. Não te vou deixar. Quero ficar contigo para sempre.

Dou por mim a pensar: Isto só pode ser um folhetim ou uma novela daquelas bem pimba… Acorda e regressa à realidade. Tento abrir os olhos, belisco-me, mas nada acontece. Tudo se mantém igual.

Entretanto, ele já me envolveu nos seus braços e acaricia-me de uma forma nunca antes sentida, enfim, um descalabro! Rendo-me ou resisto? Se resistir, não me vou arrepender para o resto da vida? Mas será isto realmente a minha vida ou trata-se apenas um sonho, um delírio dos quarenta, uma maluqueira repentina, eu sei lá!?

Olho-me novamente no espelho e falo com ele: «espelho meu, diz-me se há alguém com mais sorte que eu?»
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quinta-feira, 1 de maio de 2014

Alma Gémea

De Ana de Sienna, o extracto de um magnifico conto, «Alma Gémea», que nos leva ao universo das escolhas que determinam as nossas vidas. Uma mulher, as suas memórias, um espelho, a solidão, o sonho e uma promessa. E uma inspiradora lição de vida, porque disso se trata. MG.


'É um espelho alto, cheio de detalhes preciosos: talha dourada, flores pequeninas enganchadas em tronquinhos retorcidos, mimosos. É uma peça do séc. XVIII, italiana.' [foto A.S.} 


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Neste quarto, e com este espelho por testemunha, vivi todos os anos do meu casamento. O que ele sabe e não conta dava um livro. Um livro que posso abrir ou não. Um dia, talvez olhe para ele e não me veja só a mim, como agora, mas consiga ver mais além, para o passado e, quem sabe, para o futuro. O que vejo agora é uma mulher de quarenta anos, bem conservada. Bonita, de feições agradáveis mas vincadas pela vida. Pelas emoções vividas, boas e más. Algumas muito más. Algumas boas e poucas muito boas.

Olho-me no espelho e vejo uns olhos. Grandes, verdes, bem desenhados, mas tristes. Tristes, porque é assim que me sinto hoje. O cabelo é preto, comprido e desgrenhado. Não tive ânimo para o arranjar e agora, para além de triste, sinto-me feia.

Não faz mal, penso, porque todos me dizem que sou bonita! Sim, mas podia estar melhor, se tivesse arranjado o cabelo, penso em seguida. Amanhã tenho uma reunião importante e não posso apresentar-me assim. Tenho de conseguir tempo e vontade para ir arranjar o cabelo.

Não me quero ver mais ao espelho, hoje. Amanhã, vou mesmo ao cabeleireiro!
[...]


 
Ana de Sienna, Lisboa, 18.03.2014