quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Memórias de infância: o peru de 1970

Por José Saraiva Augusto
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Em Portugal, a primeira metade do mês de Dezembro de 1970, foi particularmente fria, com muitas localidades do território nacional a registarem temperaturas negativas e queda de neve. Do outro lado do Atlântico, em Angola, prosseguia a luta armada e apesar dos dias ensolarados, chovia copiosamente, fazendo jus à sua época, que duraria até Abril. Foi, mais ou menos, por meados daquele Dezembro que, convictamente, defendi a minha primeira causa.
Uns meses antes, por iniciativa da minha mãe, e concordância do chefe-de-família, foi decidido, ao jantar, experimentar a criação doméstica de aves. Havia vontade, ânimo, apetite e espaço de sobra no quintal e, portanto, parecia ser uma boa ideia poder passar a contar com boas refeições caseiras de frango e com ovos frescos para as gemadas e para as omeletas.

A família pensa, a obra nasce. Assim, planeadas e desembaraçadamente construídas as necessárias instalações, recorrendo à madeira de pinho, à rede de arame, à chapa de lusalite, a pregos com fartura e a marteladas generosas, estrearam o novo espaço três galinhas, um galo, um garnisé e um peru. Ora, à semelhança do que já tinha acontecido com o «Jacó», também a população do galinheiro foi brindada com um processo de identificação semelhante, exaustivamente debatido, ficando as galinhas, o galo e o garnisé, indistintamente, como os «Piupiu’s», e o peru, de forma perfeitamente inusitada, o «Gluglu». A capoeira ganhava, assim, um forte apego à 5.ª vogal do alfabeto.

Por razões, até hoje, ainda pouco esclarecidas, dos seis pioneiros «inquilinos» do restrito zoológico doméstico, ganhei especial afeição pelo peru. De penugem cinza, papada de avermelhadas verrugas carúnculas, monco descaído e um andar de saltimbanco desengonçado, não constituía aquilo que vulgarmente se pode designar por uma «ave bonita». Não obstante, estabeleceu-se entre nós uma ligação afectiva de cumplicidade e empatia, bastando, a prová-lo, que eu batesse com o amolgado e velho tacho da comida no chão, para que, pausando a sua ingestão diária de insectos, corresse, lesto, na minha direcção, preparando-se, submisso para o afago e insaciável para o repasto.

No dia 17 de Dezembro, quinta-feira, exactamente 67 anos depois de os irmãos Orville e Wilbur Wright terem logrado voar no seu aeroplano durante 59 minutos, iniciei as minhas primeiras férias escolares de Natal. Era o primeiro período de lazer depois de ter ingressado na escola e, portanto, estavam a ser muito apreciadas. A seguir ao pequeno-almoço, numa pausa da chuva, saí para jogar à bola, na rua, em frente ao portão de casa, com os amigos do costume, que ia chegando em catadupa. Num intervalo, por mero acaso, entrando, sujo e esbaforido, em casa para beber água, dei, de rompante, com a minha mãe num suspeito conluio com a nossa vizinha da frente, senhora africana de voz potente e seio farto, numa combinação secreta para «matar o peru para o Natal». Matar o peru?! Não podia ser! Perpetrava-se uma aleivosia infame.

Procurei, de imediato, tirar satisfações de ambas sobre a torpe combinação, subitamente descoberta, e sobre o maquiavélico plano para degolar o desgraçado do animal, «muito meu amigo e quase da família». De convicção estampada no rosto, pelejei, assim, intrépido e com afinco, para salvar o peru da pena capital a que tinha sido condenado, incluindo, nos meus argumentos, choros, súplicas e soluços. Em vão. Dois dias depois o peru desapareceu.


Acontece, com alguma frequência, ser a morte de um animal de estimação, um dos primeiros acontecimentos que confronta as crianças com a questão do «fim da vida». Nos primeiros anos, aquelas não assumem o nexo de causalidade entre o sofrimento e o carácter definitivo da morte, julgando-a reversível. Cumulativamente, por ser um assunto complexo, muitos pais, embora bem-intencionados, têm a tendência para preferir a utilização de eufemismos circunstanciais, procurando «protegê-los da dor». No entanto, as crianças, a partir dos 5, 6 anos, com a inteligência sensitiva que lhes é inata, adivinham facilmente quando se lhes está a mentir, sentindo-se, por vezes, traídas por aqueles em quem confiam. Neste sentido, adequando, naturalmente, a linguagem ao nível etário, é bom dizer-se a verdade, assegurando-se de que a criança fique sem dúvidas que não possa partilhar, levando o tempo que for necessário.

Deste modo, abreviando a história, a minha mãe, depois de amainada a excitação, calma e pacientemente, explicou-me a relação íntima que, desde o início, existiu entre os «habitantes do galinheiro», o lume, as panelas, o forno e a cozinha e, assim, ali, abrigado da chuva miudinha, que começara a cair, entre o longínquo cantarolar lamuriento da D. Domingas, a palmeira e os resplandecentes matraquilhos, aprendi uma importante lição de vida – o inevitável destino da capoeira, era o prato. Foi um momento pungente, o da interiorização da perda e do desaparecimento do «Gluglu» para sempre. No entanto, por via das excepcionais qualidades de imitação do «Jacó», ficou aquele ainda perpetuado por muito tempo lá em casa. C’est la vie.

Por volta dos sete anos, felizmente, contraí tosse convulsa.
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créditos da imagem: Wagner Belmonte jornalismo, «A festa do Peru»

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

De Coimbra com amor, ou Oficinas de escrita em digressão

De Coimbra, sobretudo, mas também do Porto, e outras cidades a Norte e a Sul, os pedidos de deslocação destas Oficinas de escrita, começam a tomar forma de caso sério.
Para conseguir uma programação bem articulada, sugiro que me contactem por email, ou pela caixa de mensagens no final deste post, a fim poder fundamentar as deslocações, articulando-as com a minha actividade mais regular, que é a da escrita e investigação.

Neste momento, há dois tipos de oficinas de escrita a decorrerem:

-- A minha vida dava um livro
-- As palavras que sempre te quis dizer.

Na primeira, e ao longo de três sessões de três horas cada, trabalham-se identidades e memórias, e o modo como as organizar em discurso narrativo sedutor. É um percurso surpreendente, que, a avaliar pelos resultados já obtidos, tem efeitos muito singulares em todos os participantes. Acima de tudo, trata-se de lidar com uma ferramenta muito poderosa - a Palavra - numa área muito explosiva - o Eu. O resultado é muito gratificante, e há quem lhe chame até «terapèutico» embora essa não seja, de forma alguma, a sua abordagem ou o seu objectivo.

Na segunda, trabalham-se sentimentos e/ou emoçoes extremos como o amor e o ódio sob a forma de cartas, ao longo de duas sessões de duas horas cada, acompanhadas de textos, com leituras sugeridas e bastante diálogo. Sugerem-se abordagens e fomenta-se a criatividade. De certa forma, propõe-se uma catarse, real ou ficional se é que tais coisas podem ser «realmente» dissociadas.

As oficinas de escrita são presenciais, mas os textos dos participantes são analisados posteriormente, caso a caso, e editados se de tal necessitarem, com a explicação (por email privado) das emendas sugeridas.  E, caso os autores o desejem, com nome próprio ou pseudónimo, os textos são colocados neste blogue. Futuramente, está pensada uma edição antológica dos melhores textos, com a chancela da Bertrand Editora.


 

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A minha vida dava um livro - o que dizem os participantes


Manuela,

Muito obrigada pela maravilhosa viajem que nos proporcionaste durante estas sessões de "A minha vida dava um livro"!

Levaste-nos a todos pela tua mão, doce e firme, às nossas memórias, abrindo os porões da alma, atravessando portas, enfrentando fantasmas, rasgando cortinas, chegando finalmente lá bem ao fundo... a nós...

Daí, veio a viajem de volta, mais suave, mais sábia, soltando um bálsamo aqui e ali, agradecendo sempre e cada vez mais as coisas belas com que a vida nos presenteou (coisas tantas vezes ignoradas e desvalorizadas), tornando-nos mais doces e sobretudo MAIORES.

Este foi o meu sentir!

Um grande "Bem Hajas" pelo teu trabalho maravilhoso e pela pessoa que és!

Continua, que eu estarei sempre lá, antevendo desde já o sucesso e o prazer!!!

Beijos

Clara

As palavras que sempre te quis dizer

Há por aí palavras entaladas no peito ou na garganta? Alguma dor antiga ou recente que teima em não desaparecer? Retalhos de amores impossíveis, ou ódios congelados e febris? Quem é que sente uma raiva do tamanho do mundo? E uma ternura a transbordar da pele e dos olhos de água?

Sabem de fogos que ardem sem se ver a precisar do corpo da mensagem para dar luz a tanta chama?

Ainda temos textos da última oficina - «A minha vida dá um livro» - para publicar. Mas, e em parte a pedido dos participantes, vamos avançar já com um novo tema. Muito resumidamente, será em torno de «as palavras que sempre te quis dizer».

Que palavras serão estas? É o que se verá durante as próximas oficinas de escrita, agora centradas nas elegias do amor e do ódio.

Em breve, informações mais detalhadas sobre datas, horários, inscrições e pagamentos.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

A minha primeira bicicleta




Por Carlos Scarllaty

Vivi a minha infância e juventude, entre as Avenidas Novas de Lisboa e o Campo Grande, que era um lugar maravilhoso, um verdadeiro campo, muito grande e muito verde, às portas da cidade. O espaço era interrompido, apenas, pelos caminhos de terra batida para se chegar ao lago dos patos, ou mais acima, a um outro lago ainda maior, onde se podia andar de barco a remos. As casas eram confortáveis, espaçosas e os terrenos eram enormes, divididos por muros baixos. Mesmo defronte da casa da minha avó, havia uma quinta enorme, cheia de árvores de fruto, flores, plantas, hortas... E um moinho de vento que fazia sair a água do grande poço para as regas. Nesse tempo, as ruas de Lisboa ainda não eram todas asfaltadas, mas sim calçadas com paralelepípedos de granito. Longe do centro, por exemplo no Lumiar, Lisboa parecia um cidade da província. Um ótimo lugar para a infância.

Diante da casa da minha avó, na rua de Malpique, onde eu ficava durante o dia, passava o homem do “gelado fresquinho” que me fazia correr mal ouvia tocar a sua buzina de fole de borracha. Recordo também o amolador, com a sua gaita-de-beiços, anunciar que afiava facas e tesoiras, e o homem dos barquilhos e das bolachas de baunilha. Na mercearia defronte, havia rebuçados e guloseimas que faziam a alegria da miudagem.

E nós, as crianças, atravessávamos a infância numa animação de tantas brincadeiras. Os quintais enormes das casas, com quintas que rodeavam a “nossa” rua de árvores frondosas, criavam um ambiente de felicidade. A minha avó Maria (paterna) era o meu Anjo da Guarda. Não me dizia que não a nada, e deixava-me brincar à vontade até a minha mãe chegar para me levar para casa. Parecia que o dia terminava mais depressa. Foi desta forma feliz que vivi a minha prolongada infância até os 7 anos, época que jamais vou esquecer.

Não vou dizer que foi por aqui que nasceu o meu desejo por andar de bicicleta. Seria romântico se fosse assim. Não, foi na aldeia onde nasceu a minha mãe, na Beira Alta, onde íamos de férias todos anos, que um primo, mais velho, me ensinou andar de bicicleta. Nunca tive muito equilíbrio, mas andava bem nas descidas... e o facto é que depois destas experiências voltei para a cidade com vontade de ter a minha própria bicicleta. Com os meus pais entenderam que ainda não era altura de a ter, comecei a dar as primeiras pedaladas nas bicicletas dos amigos.

Mais tarde tive então uma só minha, e com ela vivi uma série de acidentes sem gravidade, e alguns bem engraçados, que marcaram a minha infância. Quando tinha seis anos, alto e magrinho, esbarrei de frente com uma "bicicletona" que uma senhora bem encorpada conduzia pelos caminhos que circundavam as quintas do hipódromo, onde hoje fica a Cidade Universitária. Foi um desastre! Caí no chão, cheio das pedrinhas soltas do cascalho, e esfolei um braço junto do cotovelo. Estava eu a falar com a mulher, ainda meio assustado sob o efeito da queda, quando percebi que a roda da frente da minha bicicleta se tinha entortado. Perante o sangue e a pele esfolada entrei em pânico, e fui a correr para casa da minha avó, a quem me queixei do acontecido num discurso revoltado, referindo-me à pobre senhora em tom furioso:
- Olha vó, o que aquela mulher gorda me fez? Aquela baleia que costuma passar aqui à nossa porta?”,
E choramingava. Estava sentado na cozinha, com a minha avó a prestar-me os "primeiros socorros", quando a dita senhora apareceu a pedir desculpas. Eu estava muito nervoso, e dizia:
- Foi essa mesmo! Foi essa baleia gorda que bateu na minha bicicleta nova!

Eu nem queria saber do ferimento que tinha no braço, de onde escorria sangue a valer. Importava-me sim, a bicicleta nova, que tinha pouco mais de uma semana nas minhas mãos. Coisas de criança nervosa, mimada, e de pelo na venta. Enquanto isso, a minha avó pedia desculpas pelo meu descontrole linguístico. Por fim, fui para o hospital, onde acabei por levar uns seis pontos no braço. O que não me fazia esquecer a roda torta da minha bicicleta. Essa recordação nunca terá fim. É eterna. Como eterna é a recordação dos beijos que recebi de minha avó e de minha mãe.

Lisboa, 08.10.2012

créditos da imagem: Pitux, em A bicicleta que ia atrás

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Memórias de infância: os matraquilhos e o psitacídeo.



Por José Saraiva Augusto
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Aos meus 5 anos, depois de a bola de futebol a troco de reiterado e solene juramento de nunca mais jogar dentro de casa, ter sido resgatada, ao mofo e à escuridão húmida, da arrecadação que habitava solitária ao fundo do quintal , recebi de prenda uma envernizada mesa de matraquilhos, onde o Sporting e o Benfica, emblemas maiores da portugalidade desportiva, se digladiavam sem tréguas, com viço renovado a cada jogo. Foi um sucesso inaudito de fama e popularidade – os frenéticos matraquilhos ribombavam na vizinhança e «chegava gente de todo o lado» para, ou com deleite, ou com inveja, os ver e apreciar. A par do seu estatuto de glória e celebridade públicas, foram fisicamente colocados, com largueza de espaço e de movimentos, imprescindíveis às veementes e entusiásticas manifestações de júbilo dos vencedores, sob o grande telheiro do vestíbulo existente defronte da porta das traseiras, por onde se arribava directamente à cozinha. Abrigados, os matraquilhos e os jogadores, do vento, da chuva, do sol e dos excrementos de alguns pássaros costumeiros, a localização escolhida, continha também a vantagem, não despicienda, do fácil acesso aos sumos de fruta, aos bolos secos, às sandes de fiambre e aos folhados de salsicha, sempre muito apreciados pelos participantes. Presumo, também, ter sido a partir dessa altura, que a magnificência, a imensa luminosidade e o esplendoroso fulgor, do horizontal listrado verde e branco das camisolas leoninas, conquistou a minha profunda e eterna simpatia pelo clube: Sporting, for ever

Porém, avultou logo de início uma questão funcional da maior relevância: partindo-se do princípio de que o meu tamanho não se podia alterar, a mesa era relativamente alta – ficava-me com o nariz ao postigo. Assim, para que pudesse desfrutar de toda a emoção do pleito, que acontecia no pequeno rectângulo de madeira verde escuro, colocavam-se três opções possíveis: serrar as pernas da mesa de jogo, para que baixasse, improvisar um estrado, que me subisse, ou guardar os matraquilhos e esperar que eu crescesse. Venceu, por unanimidade, a 2.ª hipótese e, portanto, obteve-se o adequado escabelo, que me permitia, agora, ter uma visão perfeita do «relvado».

Ora, este pormenor, aparentemente insignificante, do ajustamento da cota, entre mim e os matraquilhos, foi, todavia, peremptório na minha longa, sucessiva e continuada conquista de títulos «aos matrecos». Para o efeito, bastou que, concomitantemente, tivessem sido implementadas três regras básicas. Primeira: só o dono do jogo tinha direito ao uso do supedâneo. Segunda: o Gustavo estava proibido de jogar. Terceira: quem protestasse, acompanharia o Gustavo. Na sequência, muitos dos meus adversários benfiquistas, tinham, assim, de permanecer em bicos de pés, para lograrem vislumbrar o que quer que fosse. Contudo, no prolongar do esforço, quando o cansaço lhes começava a retesar os músculos das pernas, obrigando-os a «pousar», para alívio dos gémeos macerados, eu, empoleirado na base, entretinha-me a aboná-los com expressivas derrotas, limitadas numericamente ao número de bolas existentes: 12-0. Estarei inclinado em concordar que a minha posição visual dominante e mais confortável, me conferiam nítida vantagem competitiva, mas eram, definitivamente, muito aprazíveis estas arrasadoras vitórias sobre os «lampiões». De facto, ainda hoje, já sem precisão da peanha, tenho jeito para os matraquilhos, preferindo, naturalmente, vencer nos que contêm o derby Sporting-Benfica. 

Cerca de dois meses após a entrada triunfal dos matraquilhos em cena, o meu irmão completou o seu segundo aniversário. Terminava, então, o mês de Novembro de 1970 e o «mano» tinha conseguido bons avanços na sua coordenação motora, progredia significativamente nas primeiras construções frásicas e alardeava já algum vocabulário erudito, tal como «padabéns», «tator» e «pipoca». Muito provavelmente em sintonia com o seu estádio de desenvolvimento psicomotor, o meu pai resolveu aplicar-lhe uma ferramenta viva: ofereceu-lhe, da sub-espécie psittacus erithacus, um psitacídeo, de anilha no pé. Um papagaio, como facilmente se adivinhou. Esta estirpe é uma das que aprende com mais facilidade e a que consegue desenvolver um vocabulário mais vasto.  

Passado o primeiro impacto de contentamento familiar generalizado, que durou cerca de dois dias, notou-se que a completa integração do bicho carecia de adequado baptismo. Assim, resultando de um brilhante e extenuado exercício de brainstorming doméstico, soçobrou-lhe, exangue e de língua de fora, um nome de fulgurosa originalidade – «Jacó». Viveu connosco cerca de 17 anos, contando-se por muitos os episódios burlescos em que interveio. 

«Jacó» apresentava-se invariavelmente em público de plumagem cinza e cauda curta e vermelha, revelando-se, logo de início, simpático, sociável e falador, com uma inegável habilidade para repetir o som do toque do telefone, da sirene dos bombeiros, do despertador e, por entre assobios múltiplos, dizer uma palavra irreproduzível, que a minha mãe desconfiava que, muito provavelmente, tivesse sido eu a ensinar-lhe. Tinha pouso próprio, cinzento a condizer, com cerca de um metro e meio de altura, onde coabitavam, na plataforma redonda que lhe encimava a haste vertical, a água, o girassol, o dendém e o poleiro. Devido ao facto de lhe cortarmos regularmente as asas, não possuía corrente que o castrasse à liberdade, gozando, assim, de total independência de movimentos. Caminhava, então, ordeira e tranquilamente, durante horas, pelo pátio e pelo chão da casa e, com a força do bico e o auxílio das patas, trepava por onde entendia, tendo uma predilecção natural pela palmeira do quintal. Em casa, revelava-se cuidadoso nas suas escaladas, mesmo quando o fazia pelos cortinados.

De bico temivelmente forte e tenaz, gostava de ser borrifado com água fresca nos dias de maior calor e, apesar de ser eu quem lhe actualizava o léxico, o «escolhido» foi, desde o início, o meu irmão, tendo, eventualmente, adoptado, para estabelecer a sua preferência afectiva, o critério da altura mínima. 

Dentre todas as suas numerosíssimas habilidades linguísticas, recordo uma que se lhe sobressaía admiravelmente: imitava, de forma irrepreensível, a voz da minha mãe. Lembro-me, aliás, que, várias vezes, estando o meu pai sentado no sofá castanho-escuro da sala, de óculos ligeiramente descaídos sobre o nariz e candidamente absorto nas suas leituras e congeminações, se levantava para ir ao quarto, julgando, de lá, ter sido chamado pela minha mãe. Ali chegado, deparava-se com o bicho, displicentemente, a subir pelo ferro forjado da cabeceira da cama, sem mais vivalma por perto – o papagaio pregara-lhe uma peça. Irritado, por ter sido iludido por 30 cm de penas cinzentas, no caminho de volta ao conforto do sofá, costumava remoer, de si para consigo, «O culpado sou eu, que o trouxe!» 

No entanto, passou a prevenir-se, entrincheirando-se para resistir ao ardil matreiro da semelhança entre a voz da minha mãe e o som emitido pelo papagaio. Assim, ao chamamento passou a exigir confirmação, – Luísa, és tu? Diz o que queres. 
Na ausência de resposta, deixava-se estar – tinha sido novamente o atrevido do bicho, mas, desta vez, falharam-lhe o gracejo e o embuste – o homem prevalecia sobre a ave. Acontecia, contudo, que, por vezes, a minha mãe, acto contínuo, na azáfama dos seus afazeres, saía por breves instantes de casa para o quintal, não lhe replicando de volta, pelo facto de não o ter ouvido, assomando-se à sala, poucos minutos depois 
– Olha lá, tu não me ouves chamar-te. Vem ajudar-me, se faz favor! 
Uma balbúrdia. 
À noite, para pernoitar, o «Jacó» recolhia-se cedo ao poleiro que, na circunstância, era colocado debaixo do alpendre onde se encontravam os matraquilhos, dormindo o papagaio, sem tombar, como o faz, dividindo o número de membros por dois, a estátua do cavalo de D. José ao Terreiro do Paço – com uma pata no ar.
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