terça-feira, 29 de outubro de 2013

O fantasma de Laika

Há uns tempos um artista plástico resolveu usar o meu rosto numa das suas composições. Fê-lo em segredo e depois enviou-me a fotografia do quadro
- Reconheces? – perguntou.
Fiquei perplexa, não tanto por ver o meu rosto naquela obra sua, mas pelo significado que ela me transmitia. «Como pode ele saber?» pensei. No meio daquela composição e talvez imperceptível a muita gente, eu não conseguia tirar os olhos de um olho que me fitava. Ei-lo! Só me aparecia em sonhos, ou melhor, em pesadelos, mas agora estava ali, acusatório e perdido. Aquele olhar que me perseguia desde sempre e fazia tão parte do meu ser que já não imaginava a minha vida sem ele.

Não sei bem como veio ali parar, possivelmente alguém a abandonou, ou então, perdeu-se de casa. Rondava a rua para baixo e para cima, e dormia à entrada das portas dos prédios. Era preta e branca, ou branca e preta, pois tinha umas manchas pretas que lhe adornavam o corpo. Tinha também os olhos mais meigos que alguma vez me tinham olhado. Um dia fiz-lhe uma festa, e aquele ser aninhou se aos meus pés de criança. Já não devia ser muito nova mas também duvido que fosse muito velha, devia portanto estar na meia-idade dos cães. Segundo a minha avó, notava-se que tinha sido mãe, o peito saliente e descaído era sinal disso mesmo, e, pobrezinha, estava sozinha.
– Oh pudemos ficar com ela? Perguntei eu ansiosa.-
– Não! – responderam me. – Está fora de questão, vamos mudar de casa e os novos senhorios não querem animais.
Não ficaram com ela, mas baptizaram-na de Laika.
– Laika! – chamava o meu pai quando a noite saia.

Alimentava-a e depois ela seguia-o até ao café. Ficava cá fora, à espera, enquanto ele lia o jornal e depois seguia-o até casa. Ele subia a escada e ela ficava em baixo aninhada, a dormir. Ele achava-lhe piada creio. Dizia:
– Parece uma pessoa, de tão esperta!
Mas nada fez para lhe procurar dono, ou pelo menos foi essa a ideia com que fiquei.
Estávamos de mudança. Eu, da varanda de um segundo andar, observava os homens que faziam todo aquele ritual de ir e vir carregando caixas e móveis. Carregavam as nossas coisas para a carrinha que me parecia enorme e estava estacionada à porta de casa. Não me apetecia nada mudar de casa e de cidade, mas lá teria de ser. Laika também observava.
Já era noite quando entramos todos no carro. E o animal também queria vir.
– Oh não! Ela vai correr atrás do carro – disse o meu pai.
Então, Laika entrou e aninhou-se aos meus pés, no banco de trás.
– Por que a deixas-te entrar se não a vamos levar? – perguntou a mãe.

Eu devia de ter uns cinco anos, pois sei que foi com essa idade que mudamos daquela casa, e o meu coração batia muito forte de nervosismo e antecipação, como se houvesse uma luz de esperança que Laika ficasse connosco. Não me lembro o que o meu pai respondeu, só me recordo que uns metros a frente o carro parou e ele convidou-a a sair.
– Porquê, papá? Onde é que ela vai?
– Está ali um amigo meu que vai ficar com ela. Nós não pudemos, ela é muito querida e tal e eu também queria muito... mas a vida... ahh a vida nem sempre é como queremos, tu não entendes ainda, mas um dia vais entender.
Laika saiu então do carro e eu olhei em redor aflita.
– Mas eu não estou a ver ninguém a chamá-la, as pessoas passam e ninguém a chama! Papá! Oh não! Laika! Laika! – e desatei a chorar!
O carro começou a andar e Laika ficou para traz.
– Sónia, não chores, assim como eu gostei dela alguém mais irá gostar, esta cadela parece uma pessoa de tão esperta... mas nós... nós não podemos ficar com ela.
Laika ficou para trás, os seus olhos meigos e perdidos olhando o carro. Eu olhava-a a chorar enquanto o carro se afastava. Sentia-me mal, muito mal. Como podia eu admitir uma coisa daquelas?

 


– Chama se Laika em memória da primeira cadela que foi à Lua! – explicou-me.
– Foi à Lua papá? Sozinha? Deixaram a cadelinha sozinha ir à lua?
– Deixaram claro, em nome da ciência! Era a primeira vez, não podiam ainda enviar um homem ou uma mulher, pois não havia garantias que regressassem a Terra!
– E a Laika voltou? – perguntei ansiosa.
Fez-se um silêncio, como se ele estivesse talvez a ponderar se havia ou não de poupar a criança àquela verdade.
– Não! – respondeu o meu pai. – A Laika ficou em órbitra no espaço, nunca mais voltou!
Tal e qual a da minha infância. Que nome tão maldito fora escolhido para o animal. Eu ansiava que alguém mais tarde lhe tivesse dado outro nome que não Laika, algum com melhor presságio. Ainda hoje, quando conheço um animal com esse nome sinto um misto de arrepio e ternura, mas na verdade esta recordação perdeu-se e só há uns quatro anos irrompeu pelas brumas, qual D Sebastião numa eternidade de nevoeiro que um dia reaparece, trazendo as Laikas da minha infância à deriva no espaço da minha memória

Sónia Alves, Estocolmo, Setembro/Outubro 2013


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Message in a bottle? Melhor ainda!

Se tivessem um correio para o passado, uma espécie de DHL custo zero, a quem enviariam a vossa carta? A quem escreveriam as palavras 'que sempre te quis dizer'?

Se pudessem mandar uma mensagem numa garrafa, atirando-a para o oceano do tempo, sabendo de antemão que ela seria entregue, incólume e poderosa, ao seu, à sua, destinatários?

Pensem nisso.

É por estes caminhos que caminha o novo curso das nossas oficinas.

 

domingo, 20 de outubro de 2013

O prazer de escrever

Começar a escrever, a escrever pelo prazer da escrita, é uma aventura tão extasiante como começar a andar, uma alegria cuja memória perdemos. Mas esse exercício tem contrapesos e bem pesados!, que não estão contemplados na atividade que rodeia os nossos primeiros passos. O medo - de falhar. E o preconceito - o que é que os outros vão pensar de mim e do que eu escrevo?

Se aliviássemos essa carga, ou melhor, quando a retiramos, fio a fio, casca a casca, voltamos ao esplendor dos primeiros dias do resto das nossas vidas. Voltamos a ser crianças. E a saber, como elas, que brincar é a coisa mais séria que existe.

sábado, 19 de outubro de 2013

Meu inimigo, minha sombra, minha luz e meu amor.

As «Elegias do amor e do ódio» vão arrancar daqui a poucas horas - o segundo grupo. Os exercícios propostos nesta oficina continuam a ser vivenciais e muito profundos. Basicamente, trata-se de procurar e escolher uma pessoa, especificamente uma pessoa, que nos marcou. Pode ter sido 'alguém que passou por cá e deixou ao deus-dará os olhos presos nos meus', como na letra do fado. Pode ter sido alguém que nos impressionou pelos melhores ou piores motivos. Pode ser alguém sobre o qual se queira efabular um registo literário, mas que, em boa verdade, só exista na nossa imaginação.

Em todo o caso, vamos chamar uma pessoa. E essa evocação provocará um recrudescimento de memórias. E por fim, dessas memórias trabalhadas pela palavra viva, vai emergir uma carta. Uma carta que funcionará como um acerto de contas com o passado, real ou imaginário. É igual, vai dar ao mesmo. Tudo somos nós:

Destacamos, do primeiro módulo, o respectivo briefing: «Ao longo da vida há muitas pessoas que nos marcam. Aqui costumamos acrescentar a frase que é uma espécie de dogma: 'para o melhor e para o pior'. Este aforismo, porém, é desprovido de sentido. Todos os que nos ensinam, e portanto todos os que nos fazem crescer, com ou sem dor, surgem na nossa vida por algum motivo, um motivo muito forte. Fomos nós que os/as chamámos.
Neste módulo vamos invocar, descobrir, desentocar, alguém muito particular, e trazê-lo à luz do momento presente. Vamos recordá-lo com todos os detalhes. Vamos chamá-lo pelo nome.»

Mesmo sem fazer parte das nossas Oficinas, porque não tentar escrever também esta carta, seguindo os passos aqui muito sucintamente explanados? Façam-nos e deixem-nos saber como foi,

Estamos, estou, muito interessada. Como pessoa e por pessoas.


 

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Chamo-me Clara mas queria ter sido Teresa

O 'Bilhete de identidade' da Clara, num registo encantador. Continuamos assim a publicar textos da anterior oficina, e a preparar o livro antológico dos participantes.
 

Nasci no dia 24 de abril há muitos anos atrás, no seio de uma família que sempre acreditei não ser a minha. Chamo-me Clara, mas sempre achei que o meu nome deveria ser Teresa, motivo pelo qual, nas minhas brincadeiras de faz de conta com as minhas amiguinhas, as obrigava a chamarem-me como tal. Sou a mais nova de três irmãos e sou a única rapariga. Os meus pais, pessoas maravilhosas, nunca foram dados a grandes manifestações de afectos. O seu amor por nós, de que não tenho dúvidas, era assim ocultado por uma teia de gestos convencionais e muita secura.  

O meu irmão mais velho era um rapaz muito acertadinho, excelente aluno, sempre no quadro de honra, o que fazia o meu pai, professor catedrático de agronomia, exultar de orgulho. Cresceu assim, sempre muito estudioso, tímido e bem comportado. O meu outro irmão, também era muito bem comportado, e, apesar de não ser tão dotado para os estudos como o meu irmão mais velho, teve o mérito de se esforçar homericamente para estar à altura dos elogios do meu pai. Nunca gostou de ficar em segundo lugar e fazia de tudo para poder sobressair.

Tínhamos uma relação muito cúmplice, devido à proximidade de idades, (14 meses de diferença), mas a realidade é que eu era de facto o rapaz da casa e queria sempre mandar nos meus irmãos, principalmente neste. E como sentia um enorme desgosto por não ter uma irmã, cheguei a obrigá-lo a vestir as minhas roupas para o fazer passar por menina. É óbvio que só o consegui fazer enquanto éramos muito pequenos. Depois ele começou a insurgir-se violentamente contra as minhas tentativas, recusando vestidos, folhos, e outros adornos indignos do rapazinho que ele era, pelo que a partir de certa altura já não consegui mais transformá-lo na irmã com que tanto sonhava.

Mas apesar da nossa cumplicidade, ele irritava-me pois era muito mariquinhas e queixinhas. Nunca queria alinhar comigo nas propostas de fazer malandrices e chegava mesmo a ir ter com os pais, para denunciar os meus planos, ficando eu de castigo vezes sem fim. É que, e ao contrário dos meus irmãos, eu não era nenhum exemplo de filha, nem sequer uma brilhante como aluna, poi fui sempre mediana, recusando-me a ceder um segundo que fosse do meu tempo de brincadeira para o estudo. Nunca chumbei nenhum ano, mas as minhas notas raramente subiam acima de um 15. Normalmente andavam entre o 12 e o 13, para grande desgosto do meu pai.

Nesta matéria, a minha mãe era mais benevolente. Mas quando o tema era religião e quando o assunto era o catecismo, aí é que eram elas!!!! A sua benevolência desaparecia e dava lugar a uma severa vigilante da fé, cheia de tabus, onde por exemplo, falar de pernas, só por motivos de doença, e grave!!!

Sentia, naquela família, que todos me eram estranhos e não eram raras as vezes em que imaginava que a minha verdadeira família iria entrar porta dentro a reclamar-me como a filha extraviada. Isso nunca veio a acontecer e o sentimento de desadequação foi uma constante no meu percurso. É sempre difícil crescermos e movermo-nos numa realidade com a qual não nos identificamos e foi isso que me aconteceu... Tinha de seguir regras e padrões de comportamento que nada tinham a ver com a minha verdade. Vivia espartilhada por uma educação que não me fazia qualquer sentido. Os valores morais e sociais sobrepunham-se aos afectos e isso era algo que não conseguia compreender. Tive de aceitar, mas fui crescendo coxa, com um sentimento de que um dia mais tarde iria encontrar o meu verdadeiro lugar no mundo.  Como não podia fazer nada par mudar esta realidade, refugiava-me no meu próprio mundo paralelo, onde era eu que ditava as regras e podia ser quem eu de facto me sentia.


 
Os jardins onde vivemos

Os jardins tiveram um papel fundamental neste meu mundo. Em casa dos meu pais tinha um jardim relativamente pequeno, onde existia uma zona de horta e outra de jardim, mas onde eu arranjava recantos que representavam estradas, casas, lugares, espaços à minha escala. Havia uma garagem, separada da casa, onde eu trepava ao telhado, proeza homérica para uma criança de cinco, seis anos, pois sentia-me no topo do mundo, tendo desafiado o medo de cair dali abaixo. Isso dava-me poder!

Adorava fazer  papas com lama e flores, (as queridas flores dos meus pais, ambos agrónomos), o que me custou vários dias de castigo fechada à chave no meu quarto.  Mas nem assim deixei de fazer as papas com as flores dos meus pais. Em vez de arranjar alternativa para as papas, arranjei alternativa para sair do castigo; ou seja, do quarto. Não teria mais que quatro ou cinco anos, mas resolvi arriscar e descer pela janela abaixo, apoiando-me num alpendre que ficava logo em baixo da minha janela e aí então já podia de novo viver a minha liberdade. Claro que logo que era descoberta, voltava para o quarto, mas entretanto fugir passou a ser uma rotina… O importante é que eu conseguia impor a minha vontade.

Outro jardim muito importante para mim foi o jardim de casa dos meus avós em Braga. É um jardim francês muito grande, cheio de canteiros de bucho e flores. Como eu era muito pequena, os canteiros representavam para mim caminhos, recantos mágicos onde e aí, sim, eu sentia-me protegida. Aquele era o meu mundo, onde existiam fadas e gnomos e todo um imaginário que me deleitava. Ainda hoje recordo os cheiros intensos desse jardim onde, profunda e intensamente podia expressar a minha liberdade e soltar a minha imaginação porque aquele mundo era só meu! Esta sensação era tão poderosa que, desde que me lembro de ser gente, os meus desenhos reproduziam invariavelmente fadas e casas em forma de cogumelos como as dos gnomos.

Um dia, quando descobri a maravilhosa aventura dos livros, a par dos tradicionais conto de encantar, devorava avidamente os Tio Patinhas, onde as histórias que mais me fascinavam eram as da Madame Min e da Maga Patalógica. Tudo em mim me encaminhava para o mundo das fadas e das florestas nem que fosse pelo trilho das «histórias de quadradinhos».

Até a realidade mais banal me remetia para esse mundo.

Clara Ferrão, Lisboa, Outubro de 2013

[créditos da imagem: http://juliedillon.deviantart.com/art/Forest-City-38174791
 

sábado, 12 de outubro de 2013

O que dizem os participantes

Não resisto em publicar alguns comentários às anteriores Oficinas e as expectativas dos participantes e a sua vontade de prosseguir, para além do tempo e da distância. Ou como diz o Zé, não é preciso «ser-se perto para se estar junto». Obrigada, muito.

Comentários [retirados da página da Alêtheia]

Clara Ferrão:
Estou ansiosa por ir fazer este curso!!! Tendo como experiência o curso anterior de oficinas de escrita, não posso estar mais entusiasmada!
Mais do que um mero exercício para nos pôr a escrever, é um mergulho às nossas entranhas, com um efeito catártico nas nossas vidas.
Muito obrigada Manuela pelo teu maravilhoso trabalho e generosidade com que te empenhas.
October 09 2013 at 12:10 PM

Sónia Alves:
Gostei muito de ter participado do curso anterior de oficinas de escrita! Concordo com a Clara , alem de um exercício que nos convida a escrita tem tb um efeito muito terapêutico. Um abraço grande Manuela e obrigada por tudo!
October 09 2013 at 05:10 PM

José Saraiva:
De África, de olho arregalado à escrita, mas circunspecto quanto à «profundidade» que este curso exigirá. Encher as palavras com emoções e memórias, será um «intenso desafio», a subscrever, na íntegra, a última frase da Clara. Lá estarei, até porque não é preciso ser-se perto para se estar junto. Z

Comentário retirado do Face Book:
Elda Aguilar Rainho Manuela muito obrigada por tudo, pela disponibilidade, pelo carinho, pela paciência, pelas palavras de coragem, alento e persistência que teve com cada uma de nós! Consegue com que cada um se sinta especial e importante na sua história e naquilo que transmite. Adorei e espero continuar na próxima oficina. Para mim foi uma terapia da alma! Obrigada a todas as colegas de Oficina. Adorei conhecer-vos. Bjnhs

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

As palavras que sempre te quis dizer

Muitas vezes, arrependemo-nos das nossas palavras. Porque as palavras quando saem da boca, deixam de nos pertencer. Não há como voltar a recolhê-las. Porém... há muitos silêncios que nos esmagam.  Tanta coisa por dizer. Tanta voz silenciada.
 
Como daquela vez em que gostaríamos tanto de ter respondido à letra, mas éramos demasiadamente pequenos, frágeis ou indefesos para erguer a voz perante o outro; ou como quando à agressão respondemos nada; e que dizer do dia em que, por timidez ou cobardia, calámos a voz dos sentimentos e vimos partir para sempre alguns anjos que cruzaram os nossos destinos?

Essas palavras que gostaríamos de ter dito e nunca dissemos, perseguem-nos? Pesam-nos no coração e na alma? Doem-nos no garganta? Vamos soltá-las até ao fim da memória.
 
Juntem-se à nova oficina de escrita 'Elegias do Amor e do Ódio'. No lindíssimo e acolhedor espaço da Livraria Alêtheia.
 

Livraria Alêtheia
Rua do Século, 13, 1200-433 Lisboa
(Estacionamento no silo da Calçada do Combro)
Telefone (+ 351) 210939748 * Email: aletheia@aletheia
 

domingo, 6 de outubro de 2013

«A infância dura mais que a vida inteira»

Numa colagem de memórias, Sónia Alves evoca o passado e vai à raiz do nome, em textos corajosos, de uma grande e comovedora sensibilidade.




As partidas da memória

Tive alguma relutância em escrever sobre mim e isto por vários factores. Um deles é certamente o facto de, ao escrevermos sobre nós ou melhor acerca daquilo que se passou no decorrer das nossas vidas, envolvermos outras pessoas. Quer queiramos quer não, faz parte do processo. Uma vez, quando estava na biblioteca de Estocolmo para devolver alguns livros, assisti por mero acaso a uma entrevista com a escritora Rebecca Walker. Eu nunca tinha ouvido falar nela, mas sim na sua mãe, Alice Walker, pelo que a presença de Rebecca, que viajava a dar cursos de escrita após o lançamento do seu livro autobiográfico, despertou-me a atenção. De acordo com a escritora, a mãe tinha deixado de lhe falar por uns tempos porque ficou bastante perturbada quando a sua autobiografia foi publicada, bem como outros membros da família que acabaram por acusá-la, entre outras coisas, de injusta e mentirosa.
 
Creio que isso deve acontecer com certa regularidade.

Outro dos motivos da minha renitência prende-se com o facto de a memória nos pregar rasteiras. Nos seus recantos, as recordações assumem outros contornos e cores que, uma vez invocados e transcritos, parecem perder a forca que antes tinham aos nossos olhos.

Finalmente, e até há bem pouco tempo, julgava que não tinha quase nenhumas memórias de infância, pois só me recordava de pequenas imagens fragmentadas e incoerentes como nos sonhos. Depois, quando comecei a pegar nas poucas fotografias e objectos antigos que restaram – mudámos muitas vezes de casa e a minha mãe tinha por hábito desfazer se das coisas –, elas foram voltando de mansinho.
 

O meu nome é Sónia

O meu nome é Sónia e nasci em Lisboa. Sou filha de pais Portugueses. Foi a minha mãe que o escolheu, inspirada numa das personagens de um livro que leu quando estava gravida de mim, Crime e Castigo de Fyodor Dostoyevsky. Creio que estava mesmo destinada a ter um nome russo, pois mais tarde, ela disse-me que também se chamava Sónia a mulher de Tosltoy que deu igualmente esse nome a uma das personagens do seu Guerra e Paz. A minha mãe também me contou que, quando estava grávida de mim, teve alguns problemas políticos. Afinal, eu ainda nasci em ditadura, um ano antes da chamada Revolução dos cravos.

Uma vez, no jardim do Príncipe Real, chorou tanto que disse ao vento:

– A minha filha há-de nascer com a bandeira vermelha.

Nunca lhe fiz perguntas acerca deste episódio talvez porque soubesse qual era, na época, a sua ideologia. Mais tarde, ela própria admitiu a sua desilusão com algumas políticas soviéticas, ou pelo menos pelo modo como foram, e nas suas próprias palavras, «usadas, aplicadas, confundidas, alteradas». A ironia disto tudo é que, no decorrer da minha vida já viajei sozinha para vários destinos, mas sempre senti a maior relutância em aventurar-me sozinha pela Rússia, para não falar pelas antigas Republicas Soviéticas. Porquê? Não consigo explicar isto, racionalmente. Contudo, na minha cabeça, imagino-me com alguma frequência a viajar no comboio transiberiano, a embarcar em São Petersburgo, a parar varias vezes no decorrer do percurso, a sentar-me junto de um lago algures na Mongólia, de termo de chá na mão e a sair uns dias depois em Pequim.

 

A infância dura mais que a vida inteira

Há uns meses, aconselhada por uma amiga, fui a uma reunião dos alcoólicos anónimos para familiares e amigos de pessoas que sofrem ou sofreram de alcoolismo. «Não importa que já tenha passado», disse-me ela. «O que tu viveste, pensaste e sentiste na infância molda mais e condiciona mais o teu presente e futuro do que possas imaginar». Foi então que me lembrei também de uma frase da escritora espanhola Ana Maria Matute durante uma entrevista:

– A infância dura mais que a vida inteira.

Então, agarrei na minha vergonha, coloquei a numa gaveta imaginaria e lá fui com a minha amiga ao tal primeiro encontro. No grupo, estava uma rapariga de cabelo escuro como o meu.Senti que o rosto dela me era familiar e pensei, «talvez seja portuguesa ou espanhola»:

– Olá, o meu nome é Sónia – disse ela –, sou de São Petersburgo e estou aqui porque o meu pai é alcoólico.

Já tínhamos duas coisas em comum, além do cabelo escuro.
 

Ai Mouraria!

Nasci no bairro da Mouraria. Fui lá só para nascer, pois nunca ali vivi, mas mudei tantas vezes de casa que dei por mim a pensar, no Verão passado, que não conseguia imaginar nenhum outro bairro em Lisboa onde pudesse ter nascido. Não por pensar que viver na Mouraria é fácil. As casas são pequenas e há falta de privacidade, coisas, para mim, difíceis de suportar. Mas há algo neste bairro que tem a ver comigo, pelo que, no último Verão quando estive em Portugal, visitei demoradamente a Mouraria que eu conhecia tão mal. Numa dessas visitas, num final de tarde, sentei-me nas escadas de pedra de uma daquelas ruas tão antigas, e senti as lágrimas correrem-me pela cara abaixo. Percebi então e finalmente, que tudo na minha vida tem a ver com sobrevivência. Nao a duríssima sobrevivência que alguns sobreviventes referem, mas a minha tentativa de resistir num espaço fisico que considero agreste e bárbaro, o mundo, tentando ao mesmo tempo tentar manter uma certa dignidade, e conservar os princípios que considero essenciais, sem os quais nem eu própria me suportaria.

Sónia Alves, Setembro 2013, Estocolmo

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Entre o riso e o choro

O belo texto poético de Carla Lemos


I - DEZASSETE
 
Sou adolescente.

Adulta pelas contas da natureza humana.

Espero que alguém perceba a razão pela qual o meu corpo adoeceu em pouco tempo e rapidamente me atirou para uma cama, sem força para viver a vida que me pertence.

Um instante mudou a minha vida, e com ele a possibilidade de não sobreviver.

Aproveito esse momento de solidão para rever dezassete anos de vida.

Curiosamente parece-me uma eternidade de vida, o que me deixa feliz por perceber que foi de alguma forma bem vivida.

É impressionante a lucidez com que revejo cada dia.

E de repente sinto uma enorme necessidade de analisar a vida e todo o seu sentido, e chegam-me os “porquês”  que não tive em criança.

Começo a perder uma certa identidade física, aquela que há tão pouco julgava ter criado.

Por outro lado revela-se uma percepção de tudo o que me rodeia, da integridade do ser que sou, e do que faço parte, que brilha dentro de mim como eu nunca tinha imaginado possível.

E aqui estou, um nada de mão em mão, entregue a todas as possibilidades, à espera de mais vida.

Sobrevivo.

À última chamada, eventualmente...

Talvez sobreviva à importância da vida.

Àquela vida que não sei o que seria por não a ter vivido, restando-me a outra à qual resisto desde então, que me mostrou o plano que eu nem sequer tinha traçado.

Que plano é esse que nos pergunta a toda a hora se escolho entre o riso e o choro?

Ah que pergunta...

O riso, claro!



II - ODEMIRA

Odemira é o Alentejo para onde já muito pouca gente vai.

Terra bonita, arranjada, que me recorda aventurosas viagens de juventude, quando os transportes não eram  muitos, mas esperávamos pelo que havia e lá íamos vivendo a vida, sem grandes exigências, sem carros, nem comboios de alta velocidade, e as viagens para a Europa não tinham valores low-cost.

A vida era para ir passando e ir vivendo e ir sonhando.

Então saí de Carcavelos em bicicleta.

Com um mapa e um caderno de apontamentos, duas bolsas laterais de mantimentos e pouca roupa, parti convicta.

O caminho foi sendo percorrido à beira-mar, num esforço descomunal, apenas seduzida pela aventura e pelo entusiasmo daquela liberdade que sentia bater-me na cara em forma de brisa.

Toda aquela natureza verdejante da serra de S. Luís, e um silêncio apenas quebrado pela corrente da bicicleta e algumas pedaladas, me levavam para uma viagem interior palpitante, e deixava-me um sorriso preso na cara.

Era uma altura em que dar parte fraca era desistir, era arranjar uma cabina telefónica e chamar a pagar no destino para pedir que me viessem buscar porque não aguentava mais

E parte fraca nunca foi o meu forte, por isso seguia em direcção ao esgotamento mais gostoso do mundo.

Sentia-me perfeitamente fundida neste espaço físico e psicológico que me acompanhou por muitas milhas percorridas.

A liberdade só é boa quando conseguimos integrá-la.

Assim seja sempre.

Carla Lemos, Lisboa, Setembro 2013



Créditos de imagem: Rota Vicentina, Serra do Cercal/São Luís.