domingo, 9 de novembro de 2014

Requiem

Publico hoje o primeiro conto saído das últimas Oficinas de Escrita - Blind Date ou Encontros Imediatos de 2º Grau. O desafio foi muitíssimo estimulante, e o belíssimo texto de Alda Rosa testemunha-o. Pela minha parte, dou-lhe todas as estrelas das tabelas que as implicam. Manuela Gonzaga.

 

Deserto, Arches National Park, Utah.
[cortesia Kool Cats Photography]
 

Agora estamos a ficar surdos. Em breve tornar-nos-emos mudos. E em seguida silêncio. Que angustioso silêncio isso causa! Mas será som. Até mesmo o silêncio ficará cheio de som. Será uma espécie de música interespacial para encher o vazio das nossas almas insensíveis.

Que estranheza: silêncio, som, silêncio, angústia. Onde estaremos? Nesta escuridão não conseguimos ver-nos uns aos outros. Também estaremos a ficar cegos? Que espaço será este? Há uma música indelével no ar. Será a nossa respiração? Parece mais um gemido.

Sinto-me assustado. Cego, mudo, vazio, com uma surdez parcial, pois oiço a tal música estranha, que não consigo percepcionar. Fico arrepiado ao ouvi-la. Eu disse que me sinto arrepiado? Pelo menos ainda tenho alguma sensação neste abominável vazio.

Tento andar, mas receio pisar algum dos meus companheiros. Estendo os braços e os meus dedos tocam numa superfície rochosa. Estaremos numa gruta? Coloco um pé diante do outro, com muito cuidado. Não se ouve nada, para além daquela música intrigante. Avanço lentamente e nada. Estarei mesmo acompanhado? Ou ter-me-ão lançado para este espaço desconhecido e vazio sem os meus companheiros?

Tento recordar-me dos momentos que antecederam este vazio. Éramos um grupo de activistas pelos direitos humanos e fomos detidos pela polícia. Colocaram-nos numa cela escura. Ficámos ali, apertados uns contra os outros, a sentir a respiração angustiante de todos nós. Pouco depois, começou o interrogatório e vieram as ameaças. Alguns choraram. Uma mulher desmaiou. Talvez não se tenha magoado, pois não havia espaço para cair desamparada no chão. Não tínhamos onde urinar ou defecar, o que deixou o cubículo imundo e quase irrespirável. Após longas horas de encarceramento, algemaram-nos, vendaram os nossos olhos e colocaram-nos num carro. Percorremos uma longa distância. Provavelmente era noite. Sentíamos um frio gélido a atravessar os nossos corpos. Quando parámos, retiraram-nos as algemas e fomos levados para um espaço. Ouvimos algo a fechar-se. Imaginei que fosse uma porta. Inicialmente o silêncio mas, pouco depois gritos, choro, pedidos de ajuda. Estávamos mais uma vez aprisionados. De repente, deixámos de ouvir qualquer ruído. Já não falávamos. Estaríamos a ficar surdos? Ou mudos? Um silêncio sepulcral. Até começar a tal música indelével, estranha, que parecia trespassar o vazio dos nossos corpos.

Continuo a andar lentamente, mas o medo de pisar algum dos companheiros atormenta-me. Tento gatinhar. Talvez seja mais fácil percepcionar o que me rodeia. Acho que estou numa gruta. As paredes rochosas e o chão térreo. Pelo menos sinto um pó por entre os dedos. E nem sinais de vida. O que terá acontecido aos meus camaradas? E mais uma vez esta música cortante. De onde virá?

Prossigo o caminho. De repente paro. Sinto um vento a passar pela minha face. Estarei perto de uma saída? Continuo, palpando à volta, mas só encontrando rocha. Talvez o ar venha de alguma fresta muito acima do local onde me encontro. Aqui, a música parece ecoar pelas paredes. É um som assustador.

Um pouco mais à frente, a minha cabeça toca numa superfície dura. Levanto a mão e tacteio toda uma zona rochosa. Deito-me e rastejo. Devo estar num local estreito. A música parece menos perceptível. Prossigo e parece-me ver claridade mais adiante. Que alívio, afinal não estou cego. Olho em redor e apercebo-me que estou numa gruta, rastejando num espaço onde só cabe o meu corpo deitado. Avanço até à saída. Finalmente a luz. Levanto-me e olho o meu corpo sujo e emagrecido. À minha volta uma zona árida, sem árvores, pedregosa, pobre em vegetação. Tenho de procurar os meus companheiros ou alguém que me ajude. Percorro o caminho, sem destino. O sol escalda. Lembro-me que estamos no Verão. A fome e a sede provocam-me uma inquietação, quase um estado alucinatório. Caminho cada vez com maior dificuldade. Sinto o corpo a pesar, as forças cada vez mais reduzidas. Nenhum ruído em redor. Ainda estaremos mudos? Abro a boca e grito: Estão a ouvir-me? Pelo menos não estou mudo. Não obtenho qualquer resposta.

Continuo este caminho errante. De repente sinto um odor no ar que me provoca uma náusea intensa. De onde virá? Olho à volta. Não acredito. Uns metros adiante, um amontoado de corpos. Arrasto-me até lá. São os meus camaradas. Foram assassinados e lançados aqui. Como foi possível esta chacina? E como é que sobrevivi? Este cenário é insuportável. Sinto uma dor lancinante no meu peito. Segue-se um vómito imenso. Parece que o meu corpo se está a desfazer. Não aguento mais. A dor cada vez mais intensa. Vou morrer. Estou a ouvir um som, uma música cada vez mais próxima. É um requiem. A dor atroz. Os vómitos incoercíveis. Caio em cima dos corpos. Estão frios. O cheiro é nauseabundo. O meu corpo também está a ficar frio. Quanto tempo terá passado? Como terei conseguido salvar-me? Mas a dor esmaga-me o peito. Estou a morrer. Só resta o requiem, que aos poucos se vai tornando menos perceptível.

Alda Rosa

Lisboa, 20 de Outubro de 2014

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