Mais um texto de AR, cheio de fogo e, paradoxalmente, de alegria. É sempre reconfortante confirmarmos como a infância é tão mágica e poderosa que sobrevive às bruxas, aos ogres, e a tantos monstros que se ocultam nos quartos escuros da memória. A ilustração, colagem sobre papel, é da autora. MG
Colagem sobre papel, ilustração da autora
Nunca
conseguimos falar sobre o meu nascimento e o início da minha infância. Soube apenas que
o nascimento de um filho já não era esperado, nem desejado. Soube também que
a gravidez foi problemática e que, para agravar a situação, eu decidi vir ao mundo aos oito meses de
gestação, situação que, para a época, era tida como de grande risco. Para além
desta “precocidade”, nasci de pé e com uma incompatibilidade sanguínea, que
implicou risco de vida, vários dias de internamento hospitalar, uma transfusão
de sangue e a decisão da mãe de ter alta contra parecer médico.
Todos estes
acontecimentos foram-me sempre relatados como algo de catastrófico, que
impediram a minha mãe de ter uma vida livre. Para mim, porém, tamanha amargura era
ininteligível.
Constantemente
ouvia frases que me magoavam demais. A pior de todas era a de que eu tinha «sangue
do Diabo», porque me fazia sentir como um ser impuro, desprezível, diferente
das outras crianças. Pior, com esta frase, caía sobre mim a culpa de ter
causado tanto sofrimento à minha própria mãe. Na verdade, ao longo da minha
infância a nossa relação não melhorou. No plano material as necessidades foram
supridas, mas afectivamente ia-se criando um fosso, no qual eu tentava a todo o
custo sobreviver. Houve sempre uma incompatibilidade entre nós, muito mais
profunda do que a do sangue.
O meu pai
trabalhava demasiadamente, mas quando estava presente era tão apaziguador, tão
bom ouvinte, que a sua presença iluminava e aquecia todos os momentos que
passávamos juntos. Foi com ele que partilhei as questões relativas ao crescimento,
à sexualidade, à vida. E mesmo na hora de morrer, as suas últimas palavras
foram para me dar força, e para me pedir que cuidasse de mim!
E o que fazia
uma criança de cinco anos sozinha em casa durante várias horas por dia?
Descobria o seu Mundo, que supostamente estava limitado àquele apartamento, mas
que tinha inúmeros lugares para explorar! Não eram os brinquedos que me
entusiasmavam, mas sim os objectos dos adultos, com os quais eu construía as
minhas histórias de encantar!
E, quando mais
tarde pude descobrir o acesso à rua, através da janela que aprendi a abrir, foi
o êxtase. Por fim, estava ao meu alcance o vasto e excitante território por
explorar nas traseiras dos prédios, com novos amigos e novas brincadeiras, por
vezes arriscadas, que me transportavam para um mundo paralelo, onde eu era
feliz!
Colagem sobre papel, ilustração da autora
Sem comentários:
Enviar um comentário