De Fátima Belling este lindíssimo conto a deixar margem para muito sonhar. Extremamente bem escrito, pede mais, ou melhor, suscita-nos a nós, leitores, muitas perguntas. É uma narrativa breve, intensa e misteriosamente comovedora. Apetece tanto vê-la crescer até ao romance. Será? MG
A Candeia
A ponte inspira-lhe medo.
Na verdade, a ponte inspirava medo a toda a gente, e
dizia-se até que era assombrada. O
poderoso penhasco que a envolvia, muitas vezes fendido, projectava na sua superfície
espinhos de sombra que a madeira velha arrebatava, oscilante, a cada passo. A
água estagnada não produzia qualquer murmúrio tranquilizador, antes reverberava
em advertência.
Os pés descalços seguindo pegadas e rastos na terra húmida,
ela pousa mais uma vez o carrego. Não é o negrume, o ar gélido, que a assustam.
Nem as lendas de espíritos malditos. Nem a sombra imutável do penhasco, qualquer
que seja a hora do dia. É, sim, a revelação de uma dor que atravessa os séculos
e que paira no ar como um lamento.
Perturbada, ajoelha sobre uma laje triangular, reza, e só
então prossegue. A laje abriga, desde há muitos anos, um ninho de escorpiões.
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Ele percorre mais uma vez o caminho.
A Lua, cúmplice, esconde-se para encobrir a sua silhueta na orla
da floresta, tão antiga e cerrada que, dizia-se, nem homem nem animal lá conseguiam entrar.
Um longo manto esconde os compridos cabelos grisalhos e os
últimos vestígios daquilo que é durante
o dia: Senhor de terras e de gados, respeitado
por padres e malfeitores, padrinho desejado de todas as crianças pobres.
Passo a passo, ele só conta com o reflexo das estrelas no
orvalho nascente para o alumiar. Mas os arbustos esquivam-se para que não
tropece, as pedras afastam-se dos seus pés, o zimbro afiado desvia-se do seu
rosto. E os pinheiros rugosos, os únicos que sabem as feridas que tem nas mãos,
alisam os troncos por compaixão.
O caminho finda no pequeno vale, onde o riacho o saúda e se
aquieta num sussurro. A casa de pedra
cinzenta surge no meio da encosta, entre o céu e a terra, de um lado a fraga altiva,
do outro os azevinhos perenes. E a cerejeira-brava. Em tempos, uma cascata jovem
beijara o rochedo, unindo-se ao riacho. Mas há muito que secara.
É nesse vale que, atravessando as urzes, os escorpiões
interrompem a caçada para lhe trazer notícias. Notícias dela, por cuja luz ele
espera, o peito dorido e doente de remorso.
Enfim a janela abre-se, surge a candeia e o ar torna-se resplandecente.
A luz flui da casa de pedra, dispersa-se em miríades de partículas que o
envolvem e por um momento, um único momento, ele recorda ... recorda um tempo
em que ela cheirava a musgos e madrugadas, em que acordavam entre risos e campânulas
de prata. Um tempo em que os corpos de ambos
haviam desenhado sóis poentes de desejo nas águas do rio.
A candeia não se apaga, mas a lua espreita, o riacho saltita
ansioso. Ao longe, o pio da coruja ecoa, urgente. O manto
regressa ao buraco no tojo, e ele afasta-se, mais uma vez, da floresta inexpugnável.
Para logo regressar.
E tantas vezes percorre o caminho, que o riacho altera o
curso para o acompanhar. Tantas vezes percorre o caminho, que o lobo de olhos
mansos o espera nas encruzilhadas, e a cobra d’água se enrola confiante nas
suas pernas. Tantas vezes percorre o caminho, que a escuridão entra na sua
vontade, mistura-se com seu sangue, para não mais se distinguir o homem e a
noite, sombra de sombras, cinzento o homem, negra a noite.
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Na casa de pedra cinzenta no meio da encosta, entre o céu e
a terra, com a fraga fendida de um lado, e do outro os azevinhos perenes e a
cerejeira brava, ela abre a janela. Escuta, serena. Não há nenhum som da
cascata outrora jovem, e ela enche então a candeia de azeite, e acende-a.
Acende-a para ele, todas as noites. Imagina-o na aldeia, os compridos cabelos
negros, os olhos azuis como um céu sem nuvens, a cuidar das terras e dos gados.
Acende a candeia, para que Deus o proteja.
Fátima Belling
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2015
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