Da nossa oficina de Encontros Inesperados ou Blind Date, sai mais um fabuloso texto. É um conto que nos coloca no palco de uma pequena tragédia rural, mas que, mais ainda, nos remete para o arquétipo dos irmãos que se odeiam, um tema que semeia as páginas do Velho Testamento, e toda a mitologia clássica. De Ana Moita dos Santos, uma narrativa poderosa, que se lê de um folego e nos, me enche de orgulho. MG
Eduardo Carrillo (1937-1997), 'Two Brothers Fighting,' 1986, óleo sobre tela |
PIOR QUE INIMIGOS
Como era possível dois irmãos
odiarem-se tanto? Lutavam um com o outro desde pequenos e, agora, ali estavam
eles, homens feitos, prestes a matarem-se.
Na praça defronte da igreja, depois
da missa de domingo a que assistiram com a mãe, uma troca áspera de palavras entre
os dois dera início àquela dança mortal.
De navalhas em riste, olhos fixos um
no outro, os dois homens movimentavam-se, ondulando os corpos como serpentes prestes
a atacar, dissimuladas mas totalmente concentradas, a medirem a presa,
aguardando uma oportunidade para investir, com toda a força e energia de que
eram capazes.
Podiam morrer nos dez minutos
seguintes, mas pareciam não se importar. De olhos presos nos olhos do outro, não
desviavam a atenção, nem mesmo quando a velha gritava:
― Parem! Não quero que lutem! Parem!
Nada, mesmo nada, podia interromper aquela
dança. Estavam dispostos a morrer na luta que haviam iniciado há décadas atrás,
desde que se conheciam como gente.
Pior que inimigos, eram irmãos.
IRMÃOS
O mais novo, José, sempre fora o
preferido da mãe. Manuel nunca deixara de sofrer com isso. Tinham apenas ano e
meio de diferença e, desde que José nascera, Manuel nunca mais se sentira
querido.
A mãe, aquela velha mal penteada e enrugada,
tinha sido uma bela mulher e Manuel idolatrava-a com todas as suas forças, apesar
de saber que ela não o amava. Só queria que ela lhe desse um pouco de atenção,
que gostasse dele um bocadinho… mas a mãe só tinha olhos para o irmão mais pequeno.
Estava sempre a rebaixá-lo, comparando-o com o irmão. Este sim, era o seu mais
que tudo! Lembrava-lhe o marido adorado, Vasco, que tinha falecido pouco tempo
depois do nascimento de José, deixando-a sozinha com os dois para criar e uma
ferida de saudade lívida, no peito inconsolável.
Manuel só o conhecia pelas
fotografias nas molduras de latão amarelo da sala de estar: alto, bonito, rosto
esguio, louro, de olhos azuis, pele branca e sorriso matreiro no canto dos
lábios finos. José parecia-se muito com o pai.
Manuel, pelo contrário, baixo e
moreno, de cabelo castanhos e olhos pretos, saía ao lado da mãe. Não era bonito,
mas atraente, à sua maneira. Rosto quadrado, feições bem marcadas, quase rudes.
Estava sempre de semblante carregado. Nunca sorria, a não ser quando achava
graça a alguma maldade.
Isto irritava a mãe, que tentava corrigi-lo,
para que se parecesse mais com o irmão, bem-humorado e divertido. Em vão,
diga-se, pois Manuel não seguia os seus conselhos. Pelo contrário, no mais íntimo
de si, foram crescendo sentimentos tão destrutivos como facas de gume afiado,
idêntico ao das navalhas que agora ele e o irmão empunhavam. Mágoa, ciúme e rancor,
foram-se exponenciando, até se transformarem num ódio profundo e visceral
contra José, que Manuel não conseguia evitar nem dominar.
― Raios partam o meu irmão e o dia em
que nasceu para me infernizar a vida! Por que razão a minha mãe não gosta de
mim como sou?
A mãe ria-se de tudo o que José
dizia, aceitava todas as suas ideias e estava a sempre a dizer-lhe:
― Ainda bem que não dei ouvidos ao
teu pai. Ele dizia que a vida não estava para ter mais do que um filho. Mas eu
insisti em ter pelo menos mais um. Ser filho único não é bom.
Manuel ouvia isto vezes sem conta e
logo arranjava um pretexto para bater no irmão. Batia-lhe e gritava:
― Ser filho único é que eu gostava,
malandro! Só nasceste para me prejudicar.
Como era mais forte e robusto,
abusava. José encolhia-se e, sem responder, esperava que a raiva do irmão
passasse. Desde os seis anos que se lembrava de apanhar dele. Ficava com o
corpo cheio de nódoas negras, mas nunca fazia queixa à mãe. No fundo, achava
que merecia porque o irmão só lhe batia por a mãe gostar mais dele. Por outro
lado, sabia que se fizesse queixa, a mãe zangava-se com o Manuel e punha-o de
castigo. Depois, apanhava mais, mal ela se fosse embora trabalhar.
José sofria com o facto de o irmão
não gostar dele e dava voltas à cabeça para encontrar uma forma de serem
amigos. À noite, na cama, estava muito tempo sem dormir, a pensar no que
poderia fazer para que isso se tornasse realidade. Por vezes tentava falar com
o irmão, mas este começava logo a bater-lhe, e José calava-se.
Não havia nada que pudesse fazer. O
problema não estava em si, mas na mãe.
A
MÃE
A mãe olhava desesperada para os
dois filhos, prestes a matarem-se à navalhada. Há muitos anos que intuíra que uma
luta fatal poderia vir a acontecer, mas nada fizera para o evitar.
Sentia-se culpada. Nunca tinha sido
capaz de controlar aquela guerra surda entre os dois e agora, pela segunda vez,
arriscava-se a perder a pessoa que mais amava na vida.
Recuou, duas décadas atrás. Estavam os
quatro no quintal da casa, num dia quente e soalheiro de Agosto. Ela, Vasco e
os dois filhos. José, com apenas oito dias de vida, dormia no berço e Manuel,
de dezoito meses, brincava no jardim com uma forquilha de cabo alto, que o pai utilizava
para fazer jardinagem. A mãe pedia-lhe que largasse a forquilha, pois podia
magoar-se, mas a criança, traquinas, não lhe obedecia. O pai interveio e o
Manuel, quando o viu a correr na sua direcção para lha tirar, largou-a de repente e pôs-se a fugir, soltando gargalhadas altas e
sonoras. Estava alegre, pois pensava que o pai queria brincar com ele. O pai,
sem reparar, pisou a forquilha, de tal forma, que os dentes desta se espetaram
com violência no seu pescoço, apanhando-lhe a glote, não lhe dando hipótese de
escapar. Rapidamente se esvaiu em sangue. Quando a ambulância chegou, já estava
morto. “Foi o maior desgosto da minha vida”, recordou a mãe, destroçada por
aquela memória tão trágica. Lágrimas grossas e ácidas caíram-lhe dos olhos, queimando-lhe
o rosto.
E foi nesse momento que percebeu.
Culpara sempre o Manuel pela morte do marido. E, só agora, que se confrontava com
a possibilidade de o seu filho querido poder morrer às mãos do irmão, tomava
consciência disso.
Mais uma vez, só se preocupava em salvar o José.
A
LUTA FINAL
Haviam passado cinco minutos apenas,
desde que a luta se iniciara, mas parecia terem decorrido várias horas. A
tensão que se sentia no ar era sufocante. Duas serpentes ondulando na praça da
igreja, uma à espera que a outra tomasse a iniciativa de atacar.
Vários populares assistiam à luta, a
uma distância segura dos irmãos, não fosse aquilo acabar em sangue. Alguém
informava que a Polícia já tinha sido chamada e podia chegar a qualquer
instante.
Foi, então, que Manuel avançou de
navalha em punho, olhos chispantes, boca aberta, num esgar aterrador. José,
atento, desviou-se da navalha mas não contra-atacou. Ficou atónito, a olhar o
irmão. Finalmente, dava-se conta de que ele seria mesmo capaz de o matar. Perante
a atitude desconcertante de José, Manuel hesitou mas, logo em seguida, deu um
salto ágil em frente, impulsionando o braço que empunhava a navalha, na
direcção do irmão. Mais uma vez, José conseguiu desviar-se, tendo a navalha embatido
na pedra da igreja, partindo-se em dois bocados.
Foi, então, que a mãe, desesperada, se
colocou entre os dois, gritando:
― Manuel, eu sou a culpada, não mates
o teu irmão!.
― Mãe, tu não és culpada de nada –
retorquiu Manuel com um grito. – A culpa é toda dele. Sempre te quis só para
ele.
― Não é verdade, Manuel. Eu é que
sempre te culpei pelo acidente que acabou com a vida do vosso pai ― confessou a mãe.
E, agarrando-lhe com força a mão
direita, fê-lo largar o bocado de navalha que ele ainda segurava, e continuou:
― Pensei que, se me tivesses
obedecido quando te ordenei que me desses a forquilha com que brincavas, talvez
ele ainda estivesse vivo. Hoje percebi o mal que tais pensamentos nos fizeram
aos três. Nunca te dei amor e fiz com que odiasses o teu irmão, que não tem
culpa de nada.
Manuel não conseguia deixar de pensar
no que a mãe acabara de dizer. E se tivesse sido obediente, o pai ainda estaria
vivo? Tudo teria sido diferente com ele cá, disso Manuel não duvidava.
Lembrou-se do carinho que o pai lhe dava, de como brincava com ele tantas
vezes, do cheiro da sua pele que ainda hoje conseguia sentir, memórias boas de tenra
infância... As lágrimas começaram a correr-lhe cara abaixo e, olhando para o
irmão, pensou: “Eu devia matá-lo, riscá-lo do mapa! Mas, e se a culpa não é
dele, mas minha? Ou da mãe?”.
José, que já tinha largado a arma, ergueu
os olhos para o azul límpido do Céu sem nuvens, e rezou:
― Meu Deus, como foi possível dois
irmãos chegarem ao ponto de quererem tirar a vida um ao outro? Ajuda-nos, que
nós já não sabemos o que fazemos!
Viu que o irmão se aproximava a
passos lentos e cansados, trazendo a mãe pelo braço. Tinha uma expressão
dolorosa no rosto e os olhos cintilantes de lágrimas. A mãe, em estado de
choque, ainda mais desgrenhada, as faces enrugadas, vermelhas, queimadas de
tanto chorar, pedia aos filhos:
― Perdoem-me, perdoem-me! Perdoem-se um
ao outro. Eu amo os dois.
Os irmãos olharam-se, extenuados de
tanto ódio, desejosos de se afastarem da luta infernal que os tinha lançado naquela
dança de serpentes enlouquecidas.
Pela primeira vez, Manuel desejou
ser amigo de José. Este, por sua vez, relembrou as noites de criança em que não
conseguia pregar olho, pensando em como poderia ganhar a amizade do irmão. Porém,
nada fizeram.
Ainda não estavam preparados.
Ana Moita dos Santos, 22.02.2015
Sem comentários:
Enviar um comentário