Por: Carlota da Luz
Era eu uma luzinha no todo branco.
Eu era tudo e tudo era eu, como uma célula auto-consciente num imenso corpo, quando uma força me puxou,
nada de agressivo, mas intensa e bem direcionada. Como um avião quando descola,
só que lá dentro ia só eu. Tão depressa avancei como me detive, numa nuvem de
confusão a vislumbrar ao fundo um sim, uma afirmação, uma escolha.
Tinha eu uns seis anos de
idade, quando dou por mim no meu quarto, a olhar para o interruptor da luz, que
ficava tão lá em cima, bem fora do meu alcance, e a interrogar-me: o que estou
a fazer aqui!? Sendo que aqui era no
planeta Terra, naquela ilha, naquela casa, naquela família. A sentir o incómodo
de quem escolheu e se arrependeu.
Alguns anos mais seriam
precisos para ouvir o princípio da história da minha vida. Era a minha mãe uma
enfermeira obstetra, casada e com dois filhos, uma rapaz e uma rapariga. Gémeos.
A vida corria-lhe bem. Estava apaixonada pelas crianças, pelo trabalho, pelo
marido e tudo acontecia como quem anda de bicicleta e não pensa em dar aos
pedais.
Certo dia acontece o
impensado e o mundo parece parar: «Estou grávida!». A minha mãe estava grávida
de mim, sem me desejar. Rapidamente liga ao marido. Conta-lhe de mim, e nesta
história há um choro escondido, que ele depressa acalma. «Quem cria dois cria
três!» Fomos ao médico, saber se eu
estava bem e se a minha mãe bem estava, se tudo tinha voltado a correr mais uma
vez como quem anda de bicicleta, quando um buraco se abre no chão sem aviso. Trava!
Trava! A minha mãe tinha uma infeção no útero. Na altura, sem acesso aos
medicamentos e sem os testes que existem hoje. Consciente das consequências, o
médico propõe o inaudito: «Maria, talvez seja melhor abortares…»
O silêncio e o medo instalaram-se
como que ocupando todo os espaços: o espaço do ar, o espaço da vida. Nesses minutos,
toda uma vida decorreu em imagens e emoções. Via-se a levar os filhos à escola,
viu-os a correrem na rua, a brincarem, a chorarem, a rirem, a crescerem,
namorarem, casarem e a terem filhos. Viu-se a ser avó. Daí saiu a resposta: «Não!
Não vou abortar, sei que vai correr tudo bem!»
Estou eu no universo
desconhecido, às escuras, quando oiço a escolha, e tal como o avião descolou,
ali aterrei eu, e passou a existir a minha vida.
Nasci numa Sexta-feira
santa, ironicamente no dia em que Jesus Cristo morreu. A caminho do hospital, a
minha mãe repetia: «vai correr tudo bem, Deus vai querer que tudo corra bem!» E
correu, e eu nasci bem, sem nenhuma deficiência (pelo menos aparente) e durante
os anos que se seguiram tudo foi normal, ou pelo menos mais ou menos normal,
para os dias de hoje.
Lembro-me de ir para as Babás, o nome que dávamos as senhoras
que tomavam conta de nós. Nós, eu e os meus irmãos, tínhamos os berços lá em
cima. O meu ficava à direita de quem entrava no quarto. O teto era inclinado
quase como se fosse o telhado da casa, talvez até fosse. Havia um quintal, onde
só podíamos andar no corredor, ladeado de canteiros. Lembro-me de coisas
verdes. Às vezes estavam penduradas no meio do caminho e atrapalhavam os nossos
passos. Cheirava a terra e a roupa lavada. Contudo, o que nunca me vou esquecer
de toda aquela casa, é de um baralho de cartas brancas com caricaturas azuis.
Tinha uns três anos quando as vi e pedi à Bábá para me explicar o que eram, e
para me ensinar a jogar. Ela disse que sim, que noutro dia me iria ensinar, e
guardou o baralho das cartas brancas com caricaturas azuis no fundo do armário
do bar da sala de estar. No lado esquerdo do fundo do armário, para ser mais precisa.
Ainda hoje as vejo. Infelizmente esse dia nunca chegou e ainda hoje, parte de
mim continua à espera.
26 de Setembro, 2012
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