sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A pequena luz branca




Por: Carlota da Luz

Era eu uma luzinha no todo branco. Eu era tudo e tudo era eu, como uma célula auto-consciente num imenso corpo, quando uma força me puxou, nada de agressivo, mas intensa e bem direcionada. Como um avião quando descola, só que lá dentro ia só eu. Tão depressa avancei como me detive, numa nuvem de confusão a vislumbrar ao fundo um sim, uma afirmação, uma escolha.

Tinha eu uns seis anos de idade, quando dou por mim no meu quarto, a olhar para o interruptor da luz, que ficava tão lá em cima, bem fora do meu alcance, e a interrogar-me: o que estou a fazer aqui!? Sendo que aqui era no planeta Terra, naquela ilha, naquela casa, naquela família. A sentir o incómodo de quem escolheu e se arrependeu.
Alguns anos mais seriam precisos para ouvir o princípio da história da minha vida. Era a minha mãe uma enfermeira obstetra, casada e com dois filhos, uma rapaz e uma rapariga. Gémeos. A vida corria-lhe bem. Estava apaixonada pelas crianças, pelo trabalho, pelo marido e tudo acontecia como quem anda de bicicleta e não pensa em dar aos pedais.

Certo dia acontece o impensado e o mundo parece parar: «Estou grávida!». A minha mãe estava grávida de mim, sem me desejar. Rapidamente liga ao marido. Conta-lhe de mim, e nesta história há um choro escondido, que ele depressa acalma. «Quem cria dois cria três!» Fomos ao médico, saber se eu estava bem e se a minha mãe bem estava, se tudo tinha voltado a correr mais uma vez como quem anda de bicicleta, quando um buraco se abre no chão sem aviso. Trava! Trava! A minha mãe tinha uma infeção no útero. Na altura, sem acesso aos medicamentos e sem os testes que existem hoje. Consciente das consequências, o médico propõe o inaudito: «Maria, talvez seja melhor abortares…»

O silêncio e o medo instalaram-se como que ocupando todo os espaços: o espaço do ar, o espaço da vida. Nesses minutos, toda uma vida decorreu em imagens e emoções. Via-se a levar os filhos à escola, viu-os a correrem na rua, a brincarem, a chorarem, a rirem, a crescerem, namorarem, casarem e a terem filhos. Viu-se a ser avó. Daí saiu a resposta: «Não! Não vou abortar, sei que vai correr tudo bem!»

Estou eu no universo desconhecido, às escuras, quando oiço a escolha, e tal como o avião descolou, ali aterrei eu, e passou a existir a minha vida.

Nasci numa Sexta-feira santa, ironicamente no dia em que Jesus Cristo morreu. A caminho do hospital, a minha mãe repetia: «vai correr tudo bem, Deus vai querer que tudo corra bem!» E correu, e eu nasci bem, sem nenhuma deficiência (pelo menos aparente) e durante os anos que se seguiram tudo foi normal, ou pelo menos mais ou menos normal, para os dias de hoje.

Lembro-me de ir para as Babás, o nome que dávamos as senhoras que tomavam conta de nós. Nós, eu e os meus irmãos, tínhamos os berços lá em cima. O meu ficava à direita de quem entrava no quarto. O teto era inclinado quase como se fosse o telhado da casa, talvez até fosse. Havia um quintal, onde só podíamos andar no corredor, ladeado de canteiros. Lembro-me de coisas verdes. Às vezes estavam penduradas no meio do caminho e atrapalhavam os nossos passos. Cheirava a terra e a roupa lavada. Contudo, o que nunca me vou esquecer de toda aquela casa, é de um baralho de cartas brancas com caricaturas azuis. Tinha uns três anos quando as vi e pedi à Bábá para me explicar o que eram, e para me ensinar a jogar. Ela disse que sim, que noutro dia me iria ensinar, e guardou o baralho das cartas brancas com caricaturas azuis no fundo do armário do bar da sala de estar. No lado esquerdo do fundo do armário, para ser mais precisa. Ainda hoje as vejo. Infelizmente esse dia nunca chegou e ainda hoje, parte de mim continua à espera.

26 de Setembro, 2012



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