Assinado por Slaimen, e com data de 2015 este conto apocalíptico e futurista, ultrapassa, pela beleza da própria narrativa, e pelo seu ritmo quase poético, os limites do que se convencionou chamar «ficção científica», que, de resto, tanta obra maior nos tem dado. É mais um contributo das nossas oficinas de escrita, desta vez sob o lema Liberdade Incondicional.
Manuela Gonzaga.
Acho.
Se calhar desdenho só aquela imagem presa na circunferência dos reflexos. Os cabelos pretos misturados com os brancos, que se vão apoderando, dia após dia, de toda a minha cabeça e barba. Os olhos castanhos, que não sei se em alguma altura mudariam de cor com a luz do sol, porque os raios de sol que entram por esta janela com grade em cruz nunca são suficientes. Mas não desdenho as minhas superficialidades. Desdenho a postura curvada, tristonha e o olhar cheio de um vazio que me atormenta todas as horas dos dias. Desdenho o que fizeram de mim. Ou então desdenho aquilo que fiz com o que fizeram de mim. Ou só desdenho aquilo que me faço todos os dias.
Manuela Gonzaga.
Mas sei que tenho uma mãe
Três anos? Quatro anos?
Mais? Não sei. Por mais que tente não consigo recordar-me há quanto tempo estou
neste sítio. Às vezes até tenho dificuldade em perceber onde realmente estou. O José diz que este sítio é uma
prisão, mas eu questiono-me todos os dias sobre qual o significado dessa
palavra e qual o sentido deste sítio. Ultimamente,
não tenho certezas de nada. Nem do espaço, nem do tempo, nem de
mim. Como se na realidade estivesse suspenso nesta sala sem nunca conseguir
tocar o chão.
Não sei se algum dia
afirmei algo com toda a certeza e o abracei com todas as minhas forças. Não sei
se algum dia já soube qual a minha cor favorita. Não sei se algum dia soube
outra língua para além desta que falo. Não sei se algum dia gostei genuinamente
de pintar, fotografar, cozinhar ou até mesmo falar em público. Não sei se algum
dia tive alguém por quem daria a minha própria vida, ou tão pouco se tinha vida
para dar, porque neste momento não tenho nada para oferecer.
José traz-me livros às
vezes. Gosto de ler, acho. Se calhar só penso que gosto. Porque ou vejo o meu
reflexo no espelho ou leio. E entre olhar para o meu reflexo, que desdenho e
olhar para o reflexo de uma pessoa que não conheço através das suas palavras, a
segunda opção ganha sempre. Mas depois não me desdenho.
Acho.
Se calhar desdenho só aquela imagem presa na circunferência dos reflexos. Os cabelos pretos misturados com os brancos, que se vão apoderando, dia após dia, de toda a minha cabeça e barba. Os olhos castanhos, que não sei se em alguma altura mudariam de cor com a luz do sol, porque os raios de sol que entram por esta janela com grade em cruz nunca são suficientes. Mas não desdenho as minhas superficialidades. Desdenho a postura curvada, tristonha e o olhar cheio de um vazio que me atormenta todas as horas dos dias. Desdenho o que fizeram de mim. Ou então desdenho aquilo que fiz com o que fizeram de mim. Ou só desdenho aquilo que me faço todos os dias.
O José traz-me música
também. Mas nem sempre me deixavam ouvir música. Antes só podia ler e nessa
altura lia três livros por semana. Agora só leio um, porque todos os
fins-de-semana ele me traz música nova e confesso que gosto mais do que me contam
os álbuns de música do que as páginas dos livros. O último foi A Insustentável leveza do ser.
Digo o último porque o José não me visita faz agora um mês. Já o li quatro
vezes e esta última muito devagar, para não ter de repetir ainda mais. Decidi também não ouvir mais o
meu álbum favorito I am a bird now
dos Anthony and the Johnsons, para preservar o meu amor por esta peça. O meu
amor. Acredito que esta é a única forma de amor que me consigo sentir.
A Teresa. A Teresa não é amor. A Teresa é diferente. A Teresa é vida. É a única forma de vida que conheço neste mundo. É
leveza e peso, é calor e frio e é mais tristeza que alegria. Mas é a única
forma de vida que me imagino respirar com prazer todos os dias da minha vida.
Se algum dia tivesse uma de verdade. Faria
meus os olhos dela e habitaria a mente dela em todo e qualquer momento, porque
é a única coisa que me faz sentido. A
Teresa já não vem visitar-me há uma semana e para não morrer de desespero, não
espero que o faça. Nunca espero por ela. O
vigilante noturno disse que estávamos em guerra e que parte da população já
tinha fugido para outras partes do mundo á espera de encontrar paz.
Se calhar o José foi
embora também, e se calhar a Teresa foi obrigada a ir junto. Um dia ela jurou-me com o olhar que nunca
fugiria e que era ali que ficaria para o seu sempre, mas poderiam obrigá-la. A verdade é que
ultimamente tem chegado cada vez menos comida e a água tem agora um sabor
estranho. Se calhar está próximo o fim que todos falam, que o vigilante o anunciou
enquanto falava ao telefone com a família.
O fim do planeta tal como
o conhecemos.
Só espero, se o fim for
agora, que deixem a Teresa ficar onde quer, o José fugir e o vigilante noturno
juntar-se à família. Eu vou ficar aqui. Porque nunca fiquei em outro lugar que
não aqui. Não posso afirmar querer estar em outro lugar que não aqui. Não posso,
tão pouco, querer voltar atrás no tempo ou avançar para um futuro, porque não
tenho nenhum dos dois. Não sei se sou
culpado ou se haveria de culpar alguém. Mas sei que tenho uma mãe. E este rasgo
de consciência em forma de palavras é para ti, ser que me trouxe aqui.
Slaimen, 2025.
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