Universos mágicos e memórias avassaladoras.
Irei sim, dar a conhecer o que tanto procuro amarrar e colar no coração todos os dias, com medo que se perca. As memórias da minha infância até aos cinco anos. A recordação dos que me trouxeram a este mundo até ao dia que um deles optou por mos retirar!
Ticas! Alcunha que resultou da dificuldade de minha irmã mais velha apenas um ano e meio, em dizer o meu nome, Maria Teresa. Depois, fui-me apercebendo da existência do nome de família “Graciosa”, pelas vezes em que tias me agarravam as bochechas sardentas e me diziam que só podia ser Graciosa! E assim fiquei até hoje, a Ticas Graciosa para os amigos. Haverá outra razão que me ajudou a acentuar o Ticas e desligar do Teresa, mas serão outros contos de memórias mais avançadas.
Os meus pais morreram quando eu tinha apenas cinco anos. Nessa altura, vi-me obrigada a trocar o ar seco e a
paisagem vasta e agreste da Beira Baixa em tons
amarelados, recheada de magníficos penedos e imponentes sobreiros, pelo clima
ameno e menos campestre da Beira Litoral, onde fui viver para um
palácio cujos muros nem sempre conseguiam esconder outras casas mais
pequenas, mas também com a sua beleza, embora distinta. Aí, vivíamos num casarão
onde podia correr para ir à casa de banho e esconder da minha avó todos os pães
que não conseguia comer, até ao dia em que era apanhada e tinha de os comer a
todos em sopas de leite, como castigo. Tive a graça de nascer e crescer no seio de uma família enorme, dez filhos
(os nossos tios), vinte cinco primos e já bastantes bisnetos que, entre quintas
e cavalos, cães e touros, bicicletas e cavalgadas, nos fomos conhecendo,
entendendo e entrelaçando!
Perdi os meus pais mas ganhei uma ligação especial com os avós, tios e primos. Cada um acabou por ter no meu coração um lugar especial. Ainda relembro com prazer quando nos chamavam a mim e à minha irmã, por nesse tempo sermos unha com carne, as “Ticas” ou “As manas catatuas, quem leva uma leva as duas”.
Da minha infância e sem grande esforço de memória, facilmente recordo o Natal em que recebi a minha bicicleta azul e branca com rodinhas atrás. Lembro-me de estar no Páteo grande da quinta envolvido pelas casas, picadeiro, boxes para os cavalos e com larga vista para as pastagens repletas de sobreiros com o cabeço em segundo plano recheado de penedos. Foi neste Páteo, onde ainda se conseguia avistar uma das barragens, a mais pequena, que, empurrada e ajudada pelo meu pai dei as primeiras pedaladas na bicicleta que tanto me acompanhará nos anos seguintes. Mais tarde, e já na nova vida, mesmo sem travões desbravava caminhos e acelerava nas corridas entre primos. Rio-me e volto a ter a mesma sensação de medo e borboletas na barriga quando recordo a brincadeira que fazíamos com os primos mais velhos, de correr atrás de um pónei no meio do descampado, até este se zangar e cavalgar atrás de nós para nos morder. Tinha o seu feitio muito especial... E a sensação de ser puxada pela minha prima Maria – mais velha que eu, com a peculiaridade de ter um olho azul e outro verde –, ainda hoje se faz sentir.
Sentia-me livre naquele ambiente. Os dias passavam-se entre bezerros, passeios a cavalo na Toma, égua do meu pai, que era tão mansa que nos deixava montar para sermos passeadas à trela. Os cães eram nossos amigos, sempre cheios de paciência, e com eles partilhava outras brincadeiras. Agarrava-os, trocava os chupa-chupas, punha-lhe óculos de sol, tirava-lhe os óculos de sol. Não tinha problemas com a roupa, se sujava ou não sujava. Lembro-me apenas que brincava. Recordo com carinho e saudade o aconchego de me enroscar à noite no sofá, entre os meus pais, e a vontade que ainda hoje sinto de voltar atrás para voltar a ser a intrusa entre os dois, naqueles momentos mágicos. Recordo ainda as viagens no Citroen encarnado, com os meus pais e a minha irmã, e de adormeceremos a ouvir as músicas dos Gipsy Kings que ainda hoje me emocionam porque me trazem um bocadinho deles, e porque sei que em tempos as ouvimos todos juntos!
Depois, havia os piqueniques entre os sobreiros e a pastagens, com os meus pais e amigos. As correrias e brincadeiras e mais uma vez a sensação de liberdade! Os jantares nas mesas circulares de pedra unidas entre si que, em conjunto fazem uma mesa enorme. Num deles e já depois de escurecer, ao tentar ir buscar fio dental para limpar os dentes, inclinei o armário fino e alto da casa de banho, sem me aperceber que no topo deste estava um autoclismo de loiça e que foi directo à minha cabeça. Chorei e chorei e, nessa altura, o pátio ainda me pareceu maior, pois de repente o meu lugar seguro deixou de o ser até conseguir reencontrar, entre a pouca luz e os muitos convidados, o colo, o conforto, os braços da minha mãe! Evidentemente, fui para o hospital, levei muitos pontos e chorei imenso. Ao meu lado, estava um rapaz também com os seus cinco anos que enfiara um amendoim numa das narinas e não conseguia retirá-lo! Aquela visão ainda me fez chorar mais e, de barriga para baixo com uma mão dada ao meu pai e a outra à minha mãe, chorei e chorei. A cicatriz ainda continua e quando a sinto é bom relembrar aquelas mãos comigo.
O que gostei da noite em que, suponho devido ao calor que se faz sentir naquela zona da Beira Baixa no verão, 40ºC, secos e sem qualquer aragem de ar fresco, fui com os meus pais, irmã e mais alguém que não me recordo, colar placards de uma tourada pelas paredes da vila. O cheiro da tinta, a adrenalina de estarmos ali de noite, o vento que apanhávamos na carrinha de caixa aberta, o delírio e o encanto daqueles momentos, devem ser outros tantos motivos para ter retido esta memória. E outras, como as noites em que o meu primo José Maria, depois de caçar aparecia em nossa casa. E eu, que já estava na cama, levantava-me para ir espreitar aquele “homem” sentado no nosso sofá com uma faca à cintura. Na altura tinha medo daquela figura e o medo criava-me a curiosidade suficiente para arriscar sair da cama e levar um castigo. Uma outra recordação carinhosa traz-me de volta as vezes em que os meus avós iam passar uns dias à Beira Baixa. Nessas alturas, a avó, sempre prática e despachada, contornava-nos os pés sobre numa folha branca com uma caneta, para, da próxima vez que voltasse, nos trazer sapatos. Mal sabíamos então que poucos anos depois o destino aproximaria muito mais ainda os nossos corações para que nos amássemos como mãe e filha.
Estas e outras lembranças, mais penosas e ainda por aprimorar até poderem ser registadas com a dignidade que merecem, são algumas das muitas que a criança que eu fui, até ao dia 13 de Dezembro de 1991, guarda a sete chaves no segredo do coração. Por agora, deixo aqui algumas.
Haverá outras, tantas e tantas, das várias fases da minha vida, que irão serão registadas, talvez em forma de romance, talvez fantasiadas. Para poder introduzir-lhes as presenças maravilhosas das fadas e dos duendes do mundo mágica a que todas, ou pelo menos quase todas, as crianças têm acesso.
Lisboa, Setembro 2013
Por Maria Teresa Figueiredo
Nunca pensei que fosse tão difícil escrever sobre mim. Deixar preto no
branco, sem floreados e personagens, a minha origem, a complexidade das minhas
memórias de infância, a base do que sou hoje. Não me darei a conhecer na
totalidade e nem mesmo todas as minhas memórias de infância porque nem todas
estão devidamente relembradas e trabalhadas no meu íntimo ao ponto de as
transpor e escrever. Nem darei a conhecer as outras, não por vergonha, mas pelo
medo de não as conseguir dignificar e homenagear como pretendo. E como as
recordo. Irei sim, dar a conhecer o que tanto procuro amarrar e colar no coração todos os dias, com medo que se perca. As memórias da minha infância até aos cinco anos. A recordação dos que me trouxeram a este mundo até ao dia que um deles optou por mos retirar!
Ticas! Alcunha que resultou da dificuldade de minha irmã mais velha apenas um ano e meio, em dizer o meu nome, Maria Teresa. Depois, fui-me apercebendo da existência do nome de família “Graciosa”, pelas vezes em que tias me agarravam as bochechas sardentas e me diziam que só podia ser Graciosa! E assim fiquei até hoje, a Ticas Graciosa para os amigos. Haverá outra razão que me ajudou a acentuar o Ticas e desligar do Teresa, mas serão outros contos de memórias mais avançadas.
Adrião - Escadaria de acesso ao castelo de Belver, no concelho de Gavião, em Portugal |
Perdi os meus pais mas ganhei uma ligação especial com os avós, tios e primos. Cada um acabou por ter no meu coração um lugar especial. Ainda relembro com prazer quando nos chamavam a mim e à minha irmã, por nesse tempo sermos unha com carne, as “Ticas” ou “As manas catatuas, quem leva uma leva as duas”.
Da minha infância e sem grande esforço de memória, facilmente recordo o Natal em que recebi a minha bicicleta azul e branca com rodinhas atrás. Lembro-me de estar no Páteo grande da quinta envolvido pelas casas, picadeiro, boxes para os cavalos e com larga vista para as pastagens repletas de sobreiros com o cabeço em segundo plano recheado de penedos. Foi neste Páteo, onde ainda se conseguia avistar uma das barragens, a mais pequena, que, empurrada e ajudada pelo meu pai dei as primeiras pedaladas na bicicleta que tanto me acompanhará nos anos seguintes. Mais tarde, e já na nova vida, mesmo sem travões desbravava caminhos e acelerava nas corridas entre primos. Rio-me e volto a ter a mesma sensação de medo e borboletas na barriga quando recordo a brincadeira que fazíamos com os primos mais velhos, de correr atrás de um pónei no meio do descampado, até este se zangar e cavalgar atrás de nós para nos morder. Tinha o seu feitio muito especial... E a sensação de ser puxada pela minha prima Maria – mais velha que eu, com a peculiaridade de ter um olho azul e outro verde –, ainda hoje se faz sentir.
Sentia-me livre naquele ambiente. Os dias passavam-se entre bezerros, passeios a cavalo na Toma, égua do meu pai, que era tão mansa que nos deixava montar para sermos passeadas à trela. Os cães eram nossos amigos, sempre cheios de paciência, e com eles partilhava outras brincadeiras. Agarrava-os, trocava os chupa-chupas, punha-lhe óculos de sol, tirava-lhe os óculos de sol. Não tinha problemas com a roupa, se sujava ou não sujava. Lembro-me apenas que brincava. Recordo com carinho e saudade o aconchego de me enroscar à noite no sofá, entre os meus pais, e a vontade que ainda hoje sinto de voltar atrás para voltar a ser a intrusa entre os dois, naqueles momentos mágicos. Recordo ainda as viagens no Citroen encarnado, com os meus pais e a minha irmã, e de adormeceremos a ouvir as músicas dos Gipsy Kings que ainda hoje me emocionam porque me trazem um bocadinho deles, e porque sei que em tempos as ouvimos todos juntos!
Depois, havia os piqueniques entre os sobreiros e a pastagens, com os meus pais e amigos. As correrias e brincadeiras e mais uma vez a sensação de liberdade! Os jantares nas mesas circulares de pedra unidas entre si que, em conjunto fazem uma mesa enorme. Num deles e já depois de escurecer, ao tentar ir buscar fio dental para limpar os dentes, inclinei o armário fino e alto da casa de banho, sem me aperceber que no topo deste estava um autoclismo de loiça e que foi directo à minha cabeça. Chorei e chorei e, nessa altura, o pátio ainda me pareceu maior, pois de repente o meu lugar seguro deixou de o ser até conseguir reencontrar, entre a pouca luz e os muitos convidados, o colo, o conforto, os braços da minha mãe! Evidentemente, fui para o hospital, levei muitos pontos e chorei imenso. Ao meu lado, estava um rapaz também com os seus cinco anos que enfiara um amendoim numa das narinas e não conseguia retirá-lo! Aquela visão ainda me fez chorar mais e, de barriga para baixo com uma mão dada ao meu pai e a outra à minha mãe, chorei e chorei. A cicatriz ainda continua e quando a sinto é bom relembrar aquelas mãos comigo.
O que gostei da noite em que, suponho devido ao calor que se faz sentir naquela zona da Beira Baixa no verão, 40ºC, secos e sem qualquer aragem de ar fresco, fui com os meus pais, irmã e mais alguém que não me recordo, colar placards de uma tourada pelas paredes da vila. O cheiro da tinta, a adrenalina de estarmos ali de noite, o vento que apanhávamos na carrinha de caixa aberta, o delírio e o encanto daqueles momentos, devem ser outros tantos motivos para ter retido esta memória. E outras, como as noites em que o meu primo José Maria, depois de caçar aparecia em nossa casa. E eu, que já estava na cama, levantava-me para ir espreitar aquele “homem” sentado no nosso sofá com uma faca à cintura. Na altura tinha medo daquela figura e o medo criava-me a curiosidade suficiente para arriscar sair da cama e levar um castigo. Uma outra recordação carinhosa traz-me de volta as vezes em que os meus avós iam passar uns dias à Beira Baixa. Nessas alturas, a avó, sempre prática e despachada, contornava-nos os pés sobre numa folha branca com uma caneta, para, da próxima vez que voltasse, nos trazer sapatos. Mal sabíamos então que poucos anos depois o destino aproximaria muito mais ainda os nossos corações para que nos amássemos como mãe e filha.
Estas e outras lembranças, mais penosas e ainda por aprimorar até poderem ser registadas com a dignidade que merecem, são algumas das muitas que a criança que eu fui, até ao dia 13 de Dezembro de 1991, guarda a sete chaves no segredo do coração. Por agora, deixo aqui algumas.
Haverá outras, tantas e tantas, das várias fases da minha vida, que irão serão registadas, talvez em forma de romance, talvez fantasiadas. Para poder introduzir-lhes as presenças maravilhosas das fadas e dos duendes do mundo mágica a que todas, ou pelo menos quase todas, as crianças têm acesso.
Lisboa, Setembro 2013
à espera do livro...
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