sábado, 4 de janeiro de 2014

O espelho dourado da minha avó

Sempre que me olho ao espelho e vejo esta cara enrugada, sem o brilho que todos encontravam antes no meu olhar, um sentimento de impotência, a percepção do estado quase terminal, deste meu final de vida, submerge-me. Tenho oitenta e cinco anos, sou velha e sinto um vazio imenso dentro de mim.

Há dois anos, após a morte do Alberto, os meus filhos decidiram que viesse morar nesta casa, um pouco mais pequena que a outra, o que me facilitaria na mobilidade e, também, com o intuito de me aliviar do peso das recordações da longa vida no nosso lar comum. Foi um período muito doloroso! Por diversas vezes, considerei a morte, como solução para tanta dor, mas percebi que seria uma solução egoísta, e, que o ónus se iria tornar insuportável para os meus filhos e netos.

Agora, nestes dias sem futuro, tento ocupar o tempo entre o escritório, onde leio, escrevo e, por vezes, ainda pinto, e o quarto, onde descanso durante horas: os médicos dizem que não posso fazer esforços, que o meu coração está muito cansado. Aos fins-de-semana, este espaço gélido de solidão, enche-se de calor e de vida, quando chegam os meus filhos e os netos, que vêm deliciar-se com todos os pratos que sempre fiz e que todos apreciam tanto.

Hoje, uma sexta-feira de Dezembro, com um céu muito azul, mas um frio cortante, já arrumei a cozinha e preparei tudo para amanhã. Vou fazer-lhes o célebre bacalhau à Gomes de Sá e uma tarte de peras à alsaciana que todos adoram. Dou uma volta pela casa, para ver se está tudo em ordem. Na sala, a bela toalha vermelha já está sobre a mesa e as minhas orquídeas continuam lindas e a florescer!

Então, o cansaço apodera-se mais uma vez de mim. Vou para o meu quarto, sento-me na cama, olho à minha volta e sinto-me impotente perante tanto vazio. Subitamente, o meu olhar é atraído para o tampo da cómoda, onde se encontra o espelho da minha avó, que ninguém queria, e que eu aproveitei. É um espelho antigo, pequeno, de moldura dourada, que após a morte da minha avó ficou abandonado no fundo de uma gaveta. A sua face está toda salpicada de manchas, mas continua a reflectir fielmente as nossas imagens e o mundo à sua volta.
 
 

Pego nele, extasiada. É uma maravilhosa peça de arte, plena de histórias da família. Quem terá feito esta obra tão bela, tão cheia de pormenores que me despertou o interesse, a mim, que, na altura era considerada uma mulher moderna? Porque terei exigido tamanha relíquia?

Na altura, e já lá vão perto de quarenta anos, possuía um pequeno atelier, onde trabalhava nas minhas horas livres. Tinha tido aulas de pintura e aprendera algumas técnicas de pintura a acrílico e a óleo, mas, o que mais me fascinava era poder criar e utilizar vários materiais, tais como serradura, gesso, areia, desperdícios, que colava, sobrepunha, criando diversas texturas. E foi assim que descobri este espelho e, que me apropriei dele, para fazer algumas experiências: desmontava-o, utilizava cópias em tela, na sua face colava ou pintava imagens de uma menina curiosa, que era uma montagem feita a partir de uma fotografia minha de criança. Por vezes, as imagens atravessavam o espelho, como que em busca do que se encontraria mais além.

Agora, olho-me nessa mesma superfície que reflecte o meu rosto enrugado que há muito perdeu o brilho que todos encontravam no meu olhar. Subitamente, sinto uma dor no peito… volto a olhar-me, mas a minha imagem surge desfocada, como se eu me estivesse numa figura liliputiana. Como se me estivesse a transformar numa partícula que está a atravessar aquela face polida e manchada onde já não me encontro.

Então, a dor no meu peito torna-se lancinante e eu deixo cair o espelho, ouvindo, como se fosse de muito longe, o ruído dos seus estilhaços a espalharem-se no chão.

Deito-me.
 
Alda Rosa, Lisboa, Dezembro de 2013

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