quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O espelho da verdade

De Ana Mateus Marques, um poderoso e pungente registo ficcional. Um prisioneiro contempla a sua imagem pela última vez. A morte aguarda-o... ou não? MG
 
Prisão ilícita
Sou um condenado à morte. Vejo-me ao espelho pela última vez na vida. Tenho uma expressão cansada, olheiras profundas e um rosto amargurado. O pequeno espelho prateado que seguro nas mãos foi a minha única companhia durante estes três penosos anos de cárcere.

A solidão fazia com que conversasse com ele, como se esperasse dali respostas às minhas múltiplas emoções à solta. Perdi o contacto com o mundo. Fiquei com a vida suspensa. À espera de uma sentença que me absolvesse ou condenasse para sempre.

Quem sou eu? Já não sei.

A imagem que vejo no espelho não se parece comigo. É um reflexo sombrio do meu EU. Reflecte o vazio em que vivo. Não tenho nada. Nem família nem bens, nem dignidade. Um escravo, torturado e condenado por ideais. Agora sou apenas um número  4-66.

Neste dia fatídico, não quero pensar na morte mas na intensidade da vida e na paixão com que lutei pelas minhas ideias. Para me preparar, agarro com força e contra o peito, na única coisa que possuo. O espelho. Dou um grito lancinante de dor e de revolta.

O espelho parte-se em pedaços muito pequeninos nas minhas mãos, ferindo-me nos dedos, no peito e no rosto. Fico com pequenos fragmentos em mim. Sinto uma sensação estranha, como se o espelho tivesse entrado em mim e agora fossemos um só, em osmose.
Uma sensação de êxtase, de paz e de luta invade-me. Já não estou na cela. Estou livre, LIVRE, num espaço físico e num tempo diferentes, desconhecidos, completamente novos.
Não sei onde estou. A cela fria, húmida e cinzenta parece muito longínqua. Começo a correr em direção aos sons que não consigo identificar. No ar, sinto o odor cálido da fruta fresca: morangos e pêssegos.

Ana Mateus Marques, Lisboa, Janeiro de 2014


Créditos: o link da legenda remete para a página de onde a imagem foi retirada.

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