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terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

E isso é que é sedutor

Na última aula, pedi: «apresentem-se de uma forma sedutora», no arranque da escrita de uma pequena história de vida para «a minha vida dá um livro». A M. Eugénia manifestou a sua perplexidade e fundamentou-a. Estava cheia, coberta de razão.


Charles Dickens, Oliver Twist (1837)

Mas em escrita, quando falo de 'sedução' invoco outros patamares. Não são os nossos pseudo-triunfos, as nossas medalhas de bom comportamento social, ou forma mais ou menos adequada como nos inserimos, desde muito pequenos, no espaço emocional e afectivo que nos coube em destino: nada disso, se for só isso,suscitará empatias, mas sim as nossas perplexidades, falhas, medos, anseios e sonhos, e quedas. Tudo, o que nos torna realmente humanos e que é tudo o que todos temos em comum.

Isso é que é sedutor.

Não se trata de fazer o apelo à «desgraça», hoje em dia tão banalizada ao serviço da comunicação de entretenimento fácil. É o modo com enfrentamos o caminho, as pedras em que tropeçamos e os montes que subimos, e o que vamos fazendo até conseguir ir ver o Mar. É o caminho e a forma como caminhamos, corremos, caímos, levantando-nos uma vez e outra, voando por vezes, que importa. E o caminho é sempre irregular e assombroso, no segredo das nossas vivências. Conseguirmos partilhá-lo, em primeiro lugar, é arranjarmos muita iluminação extra para nós próprios. Inevitavelmente, a luz espalha-se.

E isso é que é sedutor. 

 

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Chamo-me Clara mas queria ter sido Teresa

O 'Bilhete de identidade' da Clara, num registo encantador. Continuamos assim a publicar textos da anterior oficina, e a preparar o livro antológico dos participantes.
 

Nasci no dia 24 de abril há muitos anos atrás, no seio de uma família que sempre acreditei não ser a minha. Chamo-me Clara, mas sempre achei que o meu nome deveria ser Teresa, motivo pelo qual, nas minhas brincadeiras de faz de conta com as minhas amiguinhas, as obrigava a chamarem-me como tal. Sou a mais nova de três irmãos e sou a única rapariga. Os meus pais, pessoas maravilhosas, nunca foram dados a grandes manifestações de afectos. O seu amor por nós, de que não tenho dúvidas, era assim ocultado por uma teia de gestos convencionais e muita secura.  

O meu irmão mais velho era um rapaz muito acertadinho, excelente aluno, sempre no quadro de honra, o que fazia o meu pai, professor catedrático de agronomia, exultar de orgulho. Cresceu assim, sempre muito estudioso, tímido e bem comportado. O meu outro irmão, também era muito bem comportado, e, apesar de não ser tão dotado para os estudos como o meu irmão mais velho, teve o mérito de se esforçar homericamente para estar à altura dos elogios do meu pai. Nunca gostou de ficar em segundo lugar e fazia de tudo para poder sobressair.

Tínhamos uma relação muito cúmplice, devido à proximidade de idades, (14 meses de diferença), mas a realidade é que eu era de facto o rapaz da casa e queria sempre mandar nos meus irmãos, principalmente neste. E como sentia um enorme desgosto por não ter uma irmã, cheguei a obrigá-lo a vestir as minhas roupas para o fazer passar por menina. É óbvio que só o consegui fazer enquanto éramos muito pequenos. Depois ele começou a insurgir-se violentamente contra as minhas tentativas, recusando vestidos, folhos, e outros adornos indignos do rapazinho que ele era, pelo que a partir de certa altura já não consegui mais transformá-lo na irmã com que tanto sonhava.

Mas apesar da nossa cumplicidade, ele irritava-me pois era muito mariquinhas e queixinhas. Nunca queria alinhar comigo nas propostas de fazer malandrices e chegava mesmo a ir ter com os pais, para denunciar os meus planos, ficando eu de castigo vezes sem fim. É que, e ao contrário dos meus irmãos, eu não era nenhum exemplo de filha, nem sequer uma brilhante como aluna, poi fui sempre mediana, recusando-me a ceder um segundo que fosse do meu tempo de brincadeira para o estudo. Nunca chumbei nenhum ano, mas as minhas notas raramente subiam acima de um 15. Normalmente andavam entre o 12 e o 13, para grande desgosto do meu pai.

Nesta matéria, a minha mãe era mais benevolente. Mas quando o tema era religião e quando o assunto era o catecismo, aí é que eram elas!!!! A sua benevolência desaparecia e dava lugar a uma severa vigilante da fé, cheia de tabus, onde por exemplo, falar de pernas, só por motivos de doença, e grave!!!

Sentia, naquela família, que todos me eram estranhos e não eram raras as vezes em que imaginava que a minha verdadeira família iria entrar porta dentro a reclamar-me como a filha extraviada. Isso nunca veio a acontecer e o sentimento de desadequação foi uma constante no meu percurso. É sempre difícil crescermos e movermo-nos numa realidade com a qual não nos identificamos e foi isso que me aconteceu... Tinha de seguir regras e padrões de comportamento que nada tinham a ver com a minha verdade. Vivia espartilhada por uma educação que não me fazia qualquer sentido. Os valores morais e sociais sobrepunham-se aos afectos e isso era algo que não conseguia compreender. Tive de aceitar, mas fui crescendo coxa, com um sentimento de que um dia mais tarde iria encontrar o meu verdadeiro lugar no mundo.  Como não podia fazer nada par mudar esta realidade, refugiava-me no meu próprio mundo paralelo, onde era eu que ditava as regras e podia ser quem eu de facto me sentia.


 
Os jardins onde vivemos

Os jardins tiveram um papel fundamental neste meu mundo. Em casa dos meu pais tinha um jardim relativamente pequeno, onde existia uma zona de horta e outra de jardim, mas onde eu arranjava recantos que representavam estradas, casas, lugares, espaços à minha escala. Havia uma garagem, separada da casa, onde eu trepava ao telhado, proeza homérica para uma criança de cinco, seis anos, pois sentia-me no topo do mundo, tendo desafiado o medo de cair dali abaixo. Isso dava-me poder!

Adorava fazer  papas com lama e flores, (as queridas flores dos meus pais, ambos agrónomos), o que me custou vários dias de castigo fechada à chave no meu quarto.  Mas nem assim deixei de fazer as papas com as flores dos meus pais. Em vez de arranjar alternativa para as papas, arranjei alternativa para sair do castigo; ou seja, do quarto. Não teria mais que quatro ou cinco anos, mas resolvi arriscar e descer pela janela abaixo, apoiando-me num alpendre que ficava logo em baixo da minha janela e aí então já podia de novo viver a minha liberdade. Claro que logo que era descoberta, voltava para o quarto, mas entretanto fugir passou a ser uma rotina… O importante é que eu conseguia impor a minha vontade.

Outro jardim muito importante para mim foi o jardim de casa dos meus avós em Braga. É um jardim francês muito grande, cheio de canteiros de bucho e flores. Como eu era muito pequena, os canteiros representavam para mim caminhos, recantos mágicos onde e aí, sim, eu sentia-me protegida. Aquele era o meu mundo, onde existiam fadas e gnomos e todo um imaginário que me deleitava. Ainda hoje recordo os cheiros intensos desse jardim onde, profunda e intensamente podia expressar a minha liberdade e soltar a minha imaginação porque aquele mundo era só meu! Esta sensação era tão poderosa que, desde que me lembro de ser gente, os meus desenhos reproduziam invariavelmente fadas e casas em forma de cogumelos como as dos gnomos.

Um dia, quando descobri a maravilhosa aventura dos livros, a par dos tradicionais conto de encantar, devorava avidamente os Tio Patinhas, onde as histórias que mais me fascinavam eram as da Madame Min e da Maga Patalógica. Tudo em mim me encaminhava para o mundo das fadas e das florestas nem que fosse pelo trilho das «histórias de quadradinhos».

Até a realidade mais banal me remetia para esse mundo.

Clara Ferrão, Lisboa, Outubro de 2013

[créditos da imagem: http://juliedillon.deviantart.com/art/Forest-City-38174791
 

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O jardim onde vivemos

A Clara só se sentia completamente em casa quando, em criança, inventava o seu mundo nos jardins de casa dos pais ou dos avós. Nem sequer precisava de grandes espaços. De um pequeno recanto, desde que tivesse arbustos, erva e flores, fazia um reino mágico, povoado de fadas e de gnomos que só ela via.

A Maria ainda hoje precisa dos penedos formidáveis das terras da Beira Baixa, onde fica a quinta dos avós, para ganhar novas forças e se sentir embalada sob o céu de estrelas imutável que lhe devolve a infância tão particular.

Eu aprendi tanto com a Sereiazinha que nunca lhe poderei agradecer o suficiente a companhia que me fez e o amor que lhe devotei. De resto, era nos contos de fadas que me reconhecia enquanto ser, porque era lá que se encontravam o meu universo e as minhas pessoas.

A cabeça de uma criança é uma nave espacial. Guardemos com um tesouro sem preço, o legado da nossa infância. Porque mesmo quando viver é muito difícil, e todas as crianças conhecem essa dor por mais amadas e protegidas que sejam, a capacidade de criar, recriar e voar que temos, ajuda-nos a enfrentar todos os desafios.

E é um passaporte para a vida.  

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A pequena luz branca




Por: Carlota da Luz

Era eu uma luzinha no todo branco. Eu era tudo e tudo era eu, como uma célula auto-consciente num imenso corpo, quando uma força me puxou, nada de agressivo, mas intensa e bem direcionada. Como um avião quando descola, só que lá dentro ia só eu. Tão depressa avancei como me detive, numa nuvem de confusão a vislumbrar ao fundo um sim, uma afirmação, uma escolha.

Tinha eu uns seis anos de idade, quando dou por mim no meu quarto, a olhar para o interruptor da luz, que ficava tão lá em cima, bem fora do meu alcance, e a interrogar-me: o que estou a fazer aqui!? Sendo que aqui era no planeta Terra, naquela ilha, naquela casa, naquela família. A sentir o incómodo de quem escolheu e se arrependeu.
Alguns anos mais seriam precisos para ouvir o princípio da história da minha vida. Era a minha mãe uma enfermeira obstetra, casada e com dois filhos, uma rapaz e uma rapariga. Gémeos. A vida corria-lhe bem. Estava apaixonada pelas crianças, pelo trabalho, pelo marido e tudo acontecia como quem anda de bicicleta e não pensa em dar aos pedais.

Certo dia acontece o impensado e o mundo parece parar: «Estou grávida!». A minha mãe estava grávida de mim, sem me desejar. Rapidamente liga ao marido. Conta-lhe de mim, e nesta história há um choro escondido, que ele depressa acalma. «Quem cria dois cria três!» Fomos ao médico, saber se eu estava bem e se a minha mãe bem estava, se tudo tinha voltado a correr mais uma vez como quem anda de bicicleta, quando um buraco se abre no chão sem aviso. Trava! Trava! A minha mãe tinha uma infeção no útero. Na altura, sem acesso aos medicamentos e sem os testes que existem hoje. Consciente das consequências, o médico propõe o inaudito: «Maria, talvez seja melhor abortares…»

O silêncio e o medo instalaram-se como que ocupando todo os espaços: o espaço do ar, o espaço da vida. Nesses minutos, toda uma vida decorreu em imagens e emoções. Via-se a levar os filhos à escola, viu-os a correrem na rua, a brincarem, a chorarem, a rirem, a crescerem, namorarem, casarem e a terem filhos. Viu-se a ser avó. Daí saiu a resposta: «Não! Não vou abortar, sei que vai correr tudo bem!»

Estou eu no universo desconhecido, às escuras, quando oiço a escolha, e tal como o avião descolou, ali aterrei eu, e passou a existir a minha vida.

Nasci numa Sexta-feira santa, ironicamente no dia em que Jesus Cristo morreu. A caminho do hospital, a minha mãe repetia: «vai correr tudo bem, Deus vai querer que tudo corra bem!» E correu, e eu nasci bem, sem nenhuma deficiência (pelo menos aparente) e durante os anos que se seguiram tudo foi normal, ou pelo menos mais ou menos normal, para os dias de hoje.

Lembro-me de ir para as Babás, o nome que dávamos as senhoras que tomavam conta de nós. Nós, eu e os meus irmãos, tínhamos os berços lá em cima. O meu ficava à direita de quem entrava no quarto. O teto era inclinado quase como se fosse o telhado da casa, talvez até fosse. Havia um quintal, onde só podíamos andar no corredor, ladeado de canteiros. Lembro-me de coisas verdes. Às vezes estavam penduradas no meio do caminho e atrapalhavam os nossos passos. Cheirava a terra e a roupa lavada. Contudo, o que nunca me vou esquecer de toda aquela casa, é de um baralho de cartas brancas com caricaturas azuis. Tinha uns três anos quando as vi e pedi à Bábá para me explicar o que eram, e para me ensinar a jogar. Ela disse que sim, que noutro dia me iria ensinar, e guardou o baralho das cartas brancas com caricaturas azuis no fundo do armário do bar da sala de estar. No lado esquerdo do fundo do armário, para ser mais precisa. Ainda hoje as vejo. Infelizmente esse dia nunca chegou e ainda hoje, parte de mim continua à espera.

26 de Setembro, 2012



quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O meu ‘Bilhete de Identidade’ fui eu que o criei


Por Carlos Scarllaty

É único. Intransmissível. Ou não será? Poderemos ter mais do que um ‘bilhete de identidade’? Assumo a provocação: é "proibido", mas podemos. Aquele que nos é atribuído, e aquele ‘outro’ que construímos. E um pode não ter nada a ver com o outro. Poderemos ter duas identidades? Podemos. E sem sermos loucos. A oficial, atribuída pela lei. E a real, fruto da aprendizagem e vivência de cada um de nós.

O meu BI, em papel plastificado, não tem nada a ver com o meu BI, formato genético e expressão da minha singularidade. Tenho um nome que não foi escolhido por mim; uma altura enorme nada a condizer com a realidade; uma cor de olhos que entretanto desbotou; e uma idade errada que não reflete a minha realidade emocional e mental. O meu BI de papel, no seu laconismo redutor, só está certo juridicamente. Pessoalmente acho que é um “bluf”! Não é eu.

Do latim identĭtas, a identidade é o conjunto de características e traços próprios de um indivíduo (ou de uma comunidade). Esses traços caracterizam o sujeito ou a coletividade perante os outros. Por exemplo: “a Francesinha faz parte da identidade portuense”; “os carapaus alimados têm a ver com a cultura gastronómica algarvia”; “os figos secos com a Costa Mediterrânica”. E por aí fora. Identidades genuínas, gastronómicas, culturais, verídicas.

Uma pessoa tem de primeiro conhecer o seu passado para defender a sua identidade. Que criou e aperfeiçoou. Com que se realizou. Embora muitos dos traços que constituem a “nossa” identidade possam ser hereditários ou inatos, esta é também a consciência que cada um tem de si próprio, e que nos torna diferentes uns dos outros. Porém, o meio envolvente exerce sempre influência sobre a especificidade de cada indivíduo. Por isso, se costuma dizer que uma tal pessoa “anda em busca da sua identidade”, ou expressões semelhantes.

Neste sentido, a ideia de identidade está associada a uma realidade interior que pode ficar oculta atrás de atitudes ou comportamentos que não são próprios da “nossa” pessoa: “Coloquei de parte a minha identidade, e comecei a aceitar trabalhos que não me agradavam, e que não têm nada a ver comigo”. Em suma: luto pela sobrevivência trabalhando, e prostituo-me psicologicamente. E finalmente temos o conceito de identidade de género, que se prende com o autoconceito sobre a sua sexualidade, e o género para que deseje desenvolver a sua vida social. A noção vincula a dimensão biológica do ser humano, tal como o aspeto cultural e a liberdade de escolha. 

O meu BI oficial atribui-me um nome. Mas devia ser eu próprio a escolher o meu nome. Por exemplo, Joachim Bonaparte de Mediccis! Sentia-me muito melhor. A minha altura é acima da média, mas grandes, grandes foram Mandela, Gandhi, Martin Luther King, Bob Marley, Brechet, Pessoa, Confúcio, Galileu, Camões... e tantos, tantos outros. Enormes. Comparados com estes, não passo de um pigmeu. E na idade? Bem, nisso então é melhor nem referir o que penso. Tenho somente 30 anos. No papel plastificado estão 30 anos a mais que o meu cérebro recusa. Uma injustiça este 'Bilhete de Identidade' que me foi atribuído! 

E os meus sonhos e fantasias, onde estão eles no BI oficial? E a minha história de vida? E a consciência de mim próprio que me torna, que nos torna únicos? 

Partindo do pressuposto que a obra de arte se consagra graças ao princípio da nossa identidade, o meu ‘Bilhete de Identidade’ fui eu que o criei. O ‘outro’, esse só serve para pagar multas!
 
Guida Scarllaty em grande plano, 2012
Lisboa, 2012, 25/Set.