segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Mas sei que tenho uma mãe

Assinado por Slaimen, e com data de 2015 este conto apocalíptico e futurista, ultrapassa, pela beleza da própria narrativa, e pelo seu ritmo quase poético, os limites do que se convencionou chamar «ficção científica», que, de resto, tanta obra maior nos tem dado. É mais um contributo das nossas oficinas de escrita, desta vez sob o lema Liberdade Incondicional.
Manuela Gonzaga.






Mas sei que tenho uma mãe

Três anos? Quatro anos? Mais? Não sei. Por mais que tente não consigo recordar-me há quanto tempo estou neste sítio. Às vezes até tenho dificuldade em perceber onde realmente estou. O José diz que este sítio é uma prisão, mas eu questiono-me todos os dias sobre qual o significado dessa palavra e qual o sentido deste sítio. Ultimamente, não tenho certezas de nada. Nem do espaço, nem do tempo, nem de mim. Como se na realidade estivesse suspenso nesta sala sem nunca conseguir tocar o chão.

Não sei se algum dia afirmei algo com toda a certeza e o abracei com todas as minhas forças. Não sei se algum dia já soube qual a minha cor favorita. Não sei se algum dia soube outra língua para além desta que falo. Não sei se algum dia gostei genuinamente de pintar, fotografar, cozinhar ou até mesmo falar em público. Não sei se algum dia tive alguém por quem daria a minha própria vida, ou tão pouco se tinha vida para dar, porque neste momento não tenho nada para oferecer.

José traz-me livros às vezes. Gosto de ler, acho. Se calhar só penso que gosto. Porque ou vejo o meu reflexo no espelho ou leio. E entre olhar para o meu reflexo, que desdenho e olhar para o reflexo de uma pessoa que não conheço através das suas palavras, a segunda opção ganha sempre. Mas depois não me desdenho.

Acho.

Se calhar desdenho só aquela imagem presa na circunferência dos reflexos. Os cabelos pretos misturados com os brancos, que se vão apoderando, dia após dia, de toda a minha cabeça e barba. Os olhos castanhos, que não sei se em alguma altura mudariam de cor com a luz do sol, porque os raios de sol que entram por esta janela com grade em cruz nunca são suficientes. Mas não desdenho as minhas superficialidades. Desdenho a postura curvada, tristonha e o olhar cheio de um vazio que me atormenta todas as horas dos dias. Desdenho o que fizeram de mim. Ou então desdenho aquilo que fiz com o que fizeram de mim. Ou só desdenho aquilo que me faço todos os dias.

O José traz-me música também. Mas nem sempre me deixavam ouvir música. Antes só podia ler e nessa altura lia três livros por semana. Agora só leio um, porque todos os fins-de-semana ele me traz música nova e confesso que gosto mais do que me contam os álbuns de música do que as páginas dos livros. O último foi A Insustentável leveza do ser. Digo o último porque o José não me visita faz agora um mês. Já o li quatro vezes e esta última muito devagar, para não ter de repetir ainda mais. Decidi também não ouvir mais o meu álbum favorito I am a bird now dos Anthony and the Johnsons, para preservar o meu amor por esta peça. O meu amor. Acredito que esta é a única forma de amor que me consigo sentir.

A Teresa. A Teresa não é amor. A Teresa é diferente. A Teresa é vida. É a única forma de vida que conheço neste mundo. É leveza e peso, é calor e frio e é mais tristeza que alegria. Mas é a única forma de vida que me imagino respirar com prazer todos os dias da minha vida. Se algum dia tivesse uma de verdade. Faria meus os olhos dela e habitaria a mente dela em todo e qualquer momento, porque é a única coisa que me faz sentido. A Teresa já não vem visitar-me há uma semana e para não morrer de desespero, não espero que o faça. Nunca espero por ela. O vigilante noturno disse que estávamos em guerra e que parte da população já tinha fugido para outras partes do mundo á espera de encontrar paz.

Se calhar o José foi embora também, e se calhar a Teresa foi obrigada a ir junto. Um dia ela jurou-me com o olhar que nunca fugiria e que era ali que ficaria para o seu sempre, mas poderiam obrigá-la. A verdade é que ultimamente tem chegado cada vez menos comida e a água tem agora um sabor estranho. Se calhar está próximo o fim que todos falam, que o vigilante o anunciou enquanto falava ao telefone com a família.

O fim do planeta tal como o conhecemos.

Só espero, se o fim for agora, que deixem a Teresa ficar onde quer, o José fugir e o vigilante noturno juntar-se à família. Eu vou ficar aqui. Porque nunca fiquei em outro lugar que não aqui. Não posso afirmar querer estar em outro lugar que não aqui. Não posso, tão pouco, querer voltar atrás no tempo ou avançar para um futuro, porque não tenho nenhum dos dois. Não sei se sou culpado ou se haveria de culpar alguém. Mas sei que tenho uma mãe. E este rasgo de consciência em forma de palavras é para ti, ser que me trouxe aqui.


Slaimen, 2025. 

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Bom dia Vida… Bom dia Amor

É um texto de Fátima Gabriel, fruto da Oficina de Escrita que realizámos no Porto. É um conto muito denso, muito forte, que resulta numa viagem interior de alguém que, na sua perplexidade e solidão, procura e encontra a resposta que tanto buscava. Orientei esta Oficina sob o lema  da minha campanha: «Liberdade Incondicional. Manuela Gonzaga.


Estou presa, confinada a quatro paredes, Este espaço deixa-me em pânico. Sou claustrofóbica. Parece que acordei de um sonho. Sinto-me abafar. Sinto que vou morrer, e não quero. Amo a vida e vou lutar por ela. Porque estou aqui?! Há quanto tempo e quanto mais estarei? Nem me sinto só, tal é o turbilhão de sentimentos e pensamentos. Penso: «E agora?» Olho pela janela pequena, acima da cama estreita e vejo o sol. Paro, admirando esta liberdade que ele tem e me transmite. Percebendi que a vida está fora, à minha espera. Vou reencontrá-la.

No pequeno espaço da cela há um espelho. Desvio o olhar, porque não quero confundir o que sou fora, com o que sou no meu interior. Percebo que tenho dois livros à mão, mas não me apetece ler. Deixo-os para depois, para momentos de solidão. Vou buscar papel e uma caneta e escrevo as frases que me vêm à cabeça. A minha roupa é malcheirosa e fria, quase húmida. Não gosto do cheiro do espaço, e cheiro o meu corpo que ainda tem o aroma da liberdade.

De repente, entram na cela duas pessoas que desconheço. Apresentam-se como guardas prisionais. Não gosto do seu aspecto. Mantenho-me em silêncio e respondo apenas ao essencial. Um deles parece-me transparente, o outro rude e falso. Entretanto, juntam-se-nos mais duas pessoas. São os novos companheiros de cela. Mal-humorados, vociferam e rogam pragas. Eu, sempre em silêncio, aguardo que a minha mente me abençoe com augúrios de luz e serenidade para saber como continuar sem me machucar mais. A alma sofre. O corpo sente esse sofrimento.

Depois, um dos guardas fez uma série de ameaças. Percebi que se destinavam a quem acabara de entrar. Senti que estava a proteger-me dos novos companheiros de cela. Um deles abeirou-se e fez-me perguntas. Não me apeteceu responder. Apenas lhe disse que me deixasse em paz. O outro pressionou-o para que não se metesse na vida de cada um. Se estávamos ali, por algum motivo seria, e certamente nenhum era bom.

Mas, e por mais que me esforçasse, não entendia o porquê de estar ali. Enfim, um dia saberia as razões. Um dia havia de sair. O importante era manter a lucidez como aliada da minha sobrevivência. Tranquilizei-me.

De novo o espelho. Agora já pude ver-me e observar a minha postura, rectilínea e firme. Respirei melhor. Precisava encontrar quem me pudesse dizer porque me encontrava naquele lugar. Anoitecera. Deitei-me, e de cansaço, adormeci. Sonhei que tinha lutado e que, nessa luta, feri alguém. Portanto, era culpada. Afinal a minha prisão estava dentro de mim própria. Era prisioneira das emoções, que aprisionavam o meu livre arbítrio e acorrentavam o meu ego.

Ao acordar, agradeci ao companheiro de cela. Ele sorriu. O guarda prisional veio buscar-me. Conduziu-me junto de alguém que me aguardava numa sala. Sorriu também. Eu respondi-lhe do mesmo modo. Esperei. O visitante entrou. Abraçámo-nos. Era a minha consciência, iluminada pelo sol, que entrava pela janela da prisão que eu, naquele momento, abandonava. Afinal, tinha sido vítima de um engano. Fui liberta. Acordei a minha sensação de estar no interior do meu ser onde posso sempre voltar, acompanhada pelos amigos da minha vida: o coração e a razão.

Ninguém me condenou. Então, não vou condenar-me também. Bom dia Vida… Bom dia Amor, na companhia de todos os seres. Afinal não foi preciso ler os livros. Hoje, li na própria vida e voltei a apreciar o cheiro do meu corpo, que afinal é um templo onde a não matéria vem orar. O motivo da minha auto-prisão encontrava-se na minha mente.

Fátima Gabriel
14-11-2015 (Espaço PAN Porto)




segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A luz da liberdade

O primeiro texto que me foi entregue - na sequência de uma nova Oficina de Escrita, justamente intitulada Liberdade Incondicional (lema da minha candidatura às Presidenciais 2016), é assinado por Frederico Cotta. É um conto muito belo, que vos convido a ler com muita atenção. Merece
Manuela Gonzaga

Anã branca, reconstituição gráfica
crédito: Casey Reed/NASA

Acordo e não sei onde estou. Olho à minha volta e nada reconheço. Que faço aqui? 

Numa das paredes há um espelho. Levanto-me, e lentamente aproximo-me. Mas não me conheço a imagem  refletida. Afinal, quem sou? Há quanto tempo estou aqui?

Escrevo. Passo o tempo entre papel e caneta. E a espreitar o céu por um minúsculo quadrado gradeado que me permite ver o mundo lá fora e me faz sonhar com a liberdade dos pássaros, que passam diante de mim, a voar. O meu melhor amigo é a solidão, sendo ao mesmo tempo o meu maior inimigo. A solidão enche o meu espírito de liberdade, pois estando só, aqui, nada desejo, de nada preciso. Mas ao mesmo tempo, e reconheço a minha contradição!, a falta de contato com a natureza, os animais e outros humanos como eu, deixa-me vazio e desoladamente só. Tão só que temo por perder o que me resta, a minha sanidade, a minha humanidade.

A imaginação, porém, é a minha grande aliada. Leva-me aos confins do universo. Permite-me observar estrelas nascerem e morrerem. Contemplo a explosão de energia e matéria, os seus elementos a espalharem-se pelo tecido do espaço e do tempo. Pelo universo.

A mesma matéria de que são feitas as estrelas, é a que compõe o meu corpo. Os mesmos elementos que me permitem existir e pensar, estão presentes nestas quatro paredes que me confinam. São os tijolos do próprio universo. A matéria-prima de astros e galáxias. Sinto-me minúsculo, igual em composição a todos os seres com quem partilho esta existência. E se sou igual, não posso ser superior, a humanos ou não humanos. Porém, esta mesma imaginação é minha inimiga, reduzindo-me, aliciando-me, dando-me vontades e, pior ainda, anseios e desejos.

É neste momento que o meu espírito se deixa, novamente, prender! O desejo torna-se a minha prisão, aprisionando-me a esta realidade, com correntes tão pesadas que até conseguem amarrar o meu espírito.

Olho de novo ao espelho. Uma vez mais, não reconheço a imagem que vejo, mas agora, deixo que o papel e a caneta me definam e desenhem de modo a que me possa reconhecer. E, por fim, consigo ver refletido na superfície espelhada um brilho que reconheço.

Aquele brilho nos olhos, eu conheço. É a luz da liberdade.

Frederico Cotta
Porto, 14 Novembro, 2014