sábado, 31 de janeiro de 2015

Dentro da sua solidão

Para Sara Pires, o encontro, completamente inesperado, aconteceu numa esplanada. Encontro literário, já se vê, que emergiu num fio de palavras desatadas pela imaginação poética e plena de sensibilidade que se adivinha neste belo conto. O primeiro de muitos, esperamos nós. MG
 
 
Dentro da sua solidão

E ali estava ele na esplanada, apreciando e olhando. Só a sua presença arrancava suspiros a qualquer mulher. Bem vestido, cabelo grisalho, encaracolado, penteado para trás, fato azul-escuro e camisa branca sem um vinco que fosse, a sua figura imponente, 1,80m, não passava despercebida.

Gostava de ficar tardes e tardes apreciando tudo e todas. Demorava-se nos pormenores de cada uma, olhava-as fixamente, e não tentava disfarçar. Sabia que o seu olhar provocava sorrisos e rubores. Eram estas sensações que o nutriam, espicaçavam e mantinham vivo. Após o “abandono” da sua mulher prometera a si mesmo que nunca mais iria ter vergonha de olhar, provocar e ceder às emoções. Sabia que já não tinha idade para estes jogos, mas era tão divertido! E aqui entre nós: será que há idade específica para estes jogos?

Com a ex-mulher nunca tomara as rédeas da relação. Pior ainda, abdicara dos sonhos e dos desejos. E agora, ali estava ele em mais um final de tarde, quando todas, apressadamente, regressavam a casa. Mas em frente daquela esplanada, o passo não era assim tão apressado. Aqui, o olhar maroto, provocador deixava-as desprevenidas e ele alimentava-lhes o ego que tão bem lhes fazia à alma.

Mas havia uma que, dentro da sua solidão, o nutria especialmente. Uma a quem todas as tardes servia o mesmo chá, à mesma hora e na mesma mesa. Esta, provocava-lhe os mesmos sentimentos que ele arrancava às mulheres que passavam pela esplanada. Dela apenas conhecia o cheiro a jasmim, os longos dedos, o cabelo ruivo apanhado de forma austera, o olhar de soslaio com que ela o vislumbrava na sua farda impecavelmente passada a ferro. E o seus passos silenciosos. Ele sabia, ou melhor, sentia, que ela que não tinha a pretensão de interromper o seu ritual de final da tarde.

Ela ainda não esquecera os maus tratos sofridos durante anos e anos às mãos do ex-marido, e não queria repetir os mesmos erros. O melhor era manter-se afastada... O seu ex-marido também era assim, bem-parecido e encantador. Não lhe batia, mas os maus tratos psicológicos podem causar danos mais profundos do que os físicos. Obcecava-o a ideia de que todos os homens olhavam para ela, e ela tivera de aprender a deslocar-se silenciosamente, como um fantasma, até ao dia em que fugiu, pondo fim aquela angústia. Mudou de cidade e conseguiu erguer-se, mas a confiança, essa nunca mais a recuperou.

Agora, tinham-se passado duas semanas que ele não aparecia na esplanada. Todos os finais de tarde as mulheres que passavam por ali abrandavam o passo e miravam as mesas, como que procurando alguém. Mas ela sabia onde ele vivia, e um dia, quase ao anoitecer, bateu-lhe à porta, uma, duas vezes. À terceira ouviu um gemido, as trancas rangeram e a porta abriu-se. O imponente 1,80m apareceu prostrado e impecavelmente desgrenhado. Sem trocarem uma palavra, ela amparou-o, aconchegou-o na cama e chamou um médico que lhe diagnosticou uma pneumonia. Teria de repousar e alimentar-se bem. Ela recebeu a receita foi aviá-la à farmácia, no regresso passou por casa fez uma canja, colocou-a num tupperware que embrulhou num jornal para manter o caldo bem quente.

Pela primeira vez ele conseguiu ver os seus olhos castanhos mel. Sempre sem falar, ela pôs a mesa, serviu-lhe a canja, olhou-o fixamente, deu-lhe o medicamento e saiu porta fora. Durante semanas, o ritual manteve-se: à hora das refeições ela chegava, servia-o, olhavam-se e, por fim, saía. Não eram necessárias palavras, o olhar dizia tudo. Ele sabia que tinha de respeitar aquele silêncio e ela não queria estabelecer qualquer outro contacto mais profunda. Era ainda muito cedo. Aquele ritual que ela cumpria diariamente desde que o encontrara doente, dizia ela a si própria, tê-lo-ia feito por qualquer outra pessoa. Na verdade, a presença constante daquele homem na sua esplanada fazia-lhe falta.

Ao fim de um mês ele recuperou completamente, olhou-a e pela primeira vez quebrou o silêncio:

– Obrigada! – disse.

Ela assentiu com a cabeça e saiu.

E tudo voltou ao que era dantes. O serviço de chá na esplanada, a romaria de final da tarde, as mulheres abrandando o passo e ele sorrindo-lhes. Mas a ela, ele respeitava-a como nunca respeitara outra mulher, e o seu silêncio era a sua bênção.

Para ela, ainda era muito cedo. A ele só lhe restava esperar.

O tempo, que tudo cura não se esquece, mas permite seguir em frente.

 

Sara Pires
Lisboa, 6 de Janeiro de 2015

 

 

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Encontros Inesperados


E quando um desconhecido ou uma desconhecida...
Oficina de escrita que pretende despertar a narrativa torrencial por resposta a um desafio inesperado, cujo teor não revelaremos para manter intacta a energia da surpresa e a magia do encontro.
A mente é inútil, quando a mente é cega
[cortesia de Favim]


O titulo desta proposta literária partiu de um pressuposto «Blind Date» ou, em tradução muito livre «Encontros Inesperados». Em síntese, a expressão «Fiquei sem palavras» - é provavelmente o que vai acontecer aos participantes desta oficina  nos primeiros momentos em que encontrarem o desafio apresentado.

Uma reação seguida de entusiasmo e escrita compulsiva, a avaliar pelo que tem acontecido nas outras oficinas do mesmo teor, cujos contos, magníficos, têm vindo a ser publicados neste blogue.
Como? Ao longo de três aulas propomos a construção de narrativas com base no convite ou na proposta que cada um escolher. Literalmente às cegas.

Quando? As oficinas decorrem às terças-feiras, com início pelas 18.30, nos dias 3, 10 e 24 de Fevereiro. 

Na primeira sessão será equacionada a construção da narrativa (3 de Fevereiro);
Na segunda o seu aperfeiçoamento (dia 10 de Fevereiro);
Na terceira a sua conclusão (dia 24 de Fevereiro).

Cada aula tem a duração de uma hora presencial, com uma tolerância adicional de meia hora, entre o começo e o fim, para quem quiser esclarecimentos mais personalizados.

Onde é? no lindíssimo espaço da Livraria Alêtheia, à rua do Século, nº 13 (metro Chiado).
Os contos serão, posteriormente, inseridos neste blogue e na nossa página das Oficinas de Escrita, no facebook. Como tem vindo a acontecer com todos os outros.

Contactos:
manuelagonzaga@gmail.com
Telefone (+ 351) 210939748 * Email: aletheia@aletheia.pt
Preço total da oficina: 60 euros.

Adicional: Ao longo do tempo em que durar a Oficina, os participantes podem colocar questões à orientadora, por email, ou pessoalmente. As anotações sobre a escrita serão  sempre conduzidas no sentido de orientar a eficácia do discurso. Tanto quanto possível, essas considerações serão pessoais – de orientadora a orientando/a.

 

domingo, 25 de janeiro de 2015

O Armário de Priscos

O João Miguel Teodoro é um quase residente das oficinas - mas de todas as vezes, o mínimo que e pode dizer dos seus textos é que nos surpreendem sempre ao máximo. Como este seu conto, surreal e labiríntico, no seu jogo de palavras, ideias e sonoridades de muito poderoso e sedutor apelo.  MG


 
Quando andava louca, numa caminhada pelos arcebispos em busca de uns pontos cardeais que me levassem ao Abade de Priscos, já tinha deixado o Viana para trás e puxava pelo Timóteo, que, com sofreguidão, acompanhava o meu ritmo atrás do atraso.
O Carlos no seu nulo ser, mas na sua notável instrução, deveria estar à minha espera como sempre, sem saber muito bem se estava atrasado ou adiantado. Eu, com menos instrução, sabia que estava. Seguramente pontual é que não estava.
Este seu jeito deu-me inúmeras oportunidades para treinar uns Timoteos. Continuo a treinar. Espero é que quando o Timóteo se sincronizar com o meu caminhar consiga chegar perto do Carlos e da fome que eu já pressentia nos seus arrufos. Como ainda estavamos apressados para o almoço, pensava que o Carlos no seu rosto já não tivesse restos do creme de desfazer barba, feita de manhã, e que a assimetria facial não fosse, mais uma vez, uma qualidade escondida no seu despiste. É tão despistado que muitas vezes se esquecia de mim...e que jeito tal me deu nos treinos.
Já não via o Pedro há imenso tempo. Nem mesmo quando estava combinado um encontro com o Timóteo, e a Maria era tramada.
Ah! Lá estava o Carlos previsível como apelido. Calmo, a julgar que estava adiantado e com a imagem que eu imaginava. Fiz de conta que estava com a pontualidade no auge e com o estômago a dar horas, em sintonia com o choro do Timóteo. O silêncio foi servido durante o almoço. Definitivamente, tinha dois estranhos comigo. Tudo terminou com o doce que deu nome à casa onde o nosso repasto, atrasado, não se prolongou por muito tempo. Já não me lembro muito bem, mas nas despedidas do Carlos, o meu olhar puxado pelo Timóteo, identificou a Maria. Despachei o Carlos com uma pressa cobarde. Uma saudade da Maria invadiu todo o meu corpo.
Fiquei cheia de dúvidas e o filme da vida terminou com o primeiro choro do Timóteo. Talvez fosse a minha forma de repelir o que tinha feito à minha amiga, mas estar com o Pedro foi tão bom. Ela encarou o nascimento do Timóteo como uma experiência, leia-se lição para vidas futuras. Do meu sofrimento à experiência adquirida da Maria, foi crescendo uma linda retrospectiva de uma vida a quatro e que subitamente terminou com o Timoteo a sair do meu ventre. Afinal, a cinco a história não tinha piada.
De facto não tinham passado muitos anos desde o nosso afastamento, mas aquela visita da Maria às festas da senhora da Agonia foi uma lufada de ar fresco e terminou com a minha agonia. Já me tinha esquecido do Carlos, do Pedro e até do pequeno Timóteo.
Naquele tempo a velhice podia ser “maravilhada”, mas não corrigida. Agora, de mão dada com a Maria, o Timóteo de visita à nossa casa, vai-me dizendo que sim. Dando o desconto que os filhos acham sempre as mães os seres mais lindos do mundo, agora tinha duas, esforço a dobrar. O Timóteo, que nunca teve um armário, demorou algum tempo a entender o armário destas mães: uma delas pediu emprestada o marido da outra para o ter.
A minha vida em Braga depois daquele almoço no Abade de Priscos ficou sem orientação, por uns tempos. Parece que fiquei com a minha história interrompida. Sentimentos que eu achava menores, invadiram o meu coração e quando o coração é invadido por sentimentos até respirar custa. Nada parece funcionar.
 
João Miguel Teodoro
Lisboa, 28 de Outubro 2014
 
 
 
 

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

QUE HORAS SERÃO, QUE DIA?

Publico com o maior prazer mais um conto saído das nossas últimas oficinas, assinado por Elizabeth Carreira. É uma narrativa pungente, apocalíptica, muito bela. Acima de tudo, é um conto credível que se materializou esplendorosamente. Blind Date foi realmente uma belíssima surpresa para todos nós, participantes e orientadora. MG

Singapore Ruins, by JonasDeRo


Lembro-me de ti, Luísa. Lembro-me sempre de ti. Tudo me traz recordações de ti, de nós, porque tu eras parte de mim e eu sem dar conta, tantas vezes. Minha mulher militante de todas as causas. Leio, escrito por ti à pressa, em letra descuidada, no bloco que deixaste aberto sobre a secretária:

Sou partidário.
Eu odeio quem não participa,
Eu odeio os indiferentes.
António Gramsci, Scritti giovanili.

Usaste-a na última intervenção, como sempre acalorada, no congresso da organização verde de que eras dirigente? Esse congresso que te levou ao norte do país, justamente quando a guerra, ou lá o que é isto, rebentou. Ainda falámos ao telemóvel, mensagens breves, tranquilizadoras... enquanto houve energia. «Estás bem?»

-- Sim. Falei com o Pedro, estão todos bem, mas confirmou que em Londres estão como nós. Temos de ter paciência, isto vai ser resolvido, mais dia, menos dia a situação vai resolver-se. Tem cuidado, não saias. Assim que puder vou para casa, hei-de arranjar maneira.

-- Não vais cruzar os braços, bem sei. Eu espero-te, não saio daqui.

Queria dizer “meu amor” mas a chamada caiu. E agora, pressinto-te em todos os ruídos e em todas as sombras e assim meço a verdade do meu amor por ti. Tento andar aprumado e manter a casa digna para quando chegares, apesar da falta de água e de luz. Aparo a barba e o cabelo com uma tesoura. Levo horas nisso. Arejo a roupa na varanda, à socapa, não vá alguém ver-me, e penduro-a em cabides.

Estou só, numa casa cheia de objetos que foram essenciais até que se tornaram inúteis. Frigorífico, televisão, computador. Fogão elétrico. Micro-ondas! Lavatórios, torneiras, banheiras... Ah, e o carro na garagem! Ao princípio, estava certo que era uma questão de um, dois dias. Uma semana... depois outra... quantas se passaram já? Perdi-lhes a conta.

Ocorreu-me isto da escrita, como um escape. Felizmente coleccionei lápis atrás de lápis ao longo da vida, quando já nem escrevíamos à mão, tudo no computador. E papel não falta. Nem tempo. Preencho os dias e esta ausência de comunicação que me enlouquece. Agora, lembro-me de Anne Frank e do seu diário. Visitei em jovem a sua casa-museu, em Amsterdão, longe de imaginar que décadas depois iria enfim compreender tudo por que passou, ela e muitos outros.

Tomo pois consciência de que corro o risco de me transformar na Anne Frank do século XXI. Tinha a sua graça. O testemunho de um homem, entre milhares, que digo eu?, milhões, dezenas, centenas de milhões, pateticamente condenados a morrer de fome, sede e solidão após uma vida de abundância, festança e consumo desenfreado. É uma grande anedota. De morrer a rir... Quantos não terão morrido já? Abro a janela e fecho-a de seguida, tão pestilento está o ar. Graças ao teu cuidado, tínhamos a despensa bem recheada, e tantos tantos garrafões de água na garagem... para uma eventualidade, uma mania tua que eu ridicularizava! Dizias que tinhas estado duas semanas sem água canalizada quando tinhas vivido em África e assim tinhas aprendido o valor do bem mais precioso do que tudo o que possamos guardar! E eu a reclamar que aquilo era uma inutilidade e ocupava muito espaço... Consumo pouco, o menos possível. Olho para os garrafões e sei exatamente o tempo que a água vai durar. O meu tempo de vida? Ao princípio ainda usava alguma para me lavar. Agora nem pensar, que morra sujo mas o mais tarde possível!


O que eu dava para poder ouvir música! Reorganizei os nossos muitos CDs. Luísa, Luísa, não tens o instinto da organização, por isso passas a vida à procura das tuas coisas. Estava tudo misturado, alguns fora da caixa, outros em caixas erradas... Se estivesses cá ouvias das boas. Quem dera, quem dera que um dia voltes a remexer tudo, a tirar tudo do lugar!

 

Tenho essa esperança, uma quase certeza de que tudo volte ao lugar. “A esperança é a última a morrer!” “Enquanto há vida há esperança!” Expressões populares que até incomodava ouvir, de tão ditas e reditas, a maior parte das vezes sem quererem dizer nada. Frases de circunstância, ocas, quase sempre hipócritas, ditas da boca para fora. Ah, mas tão verdadeiras na condição em que me encontro! Mais do que a falta de água e de luz, a tua ausência diminui-me. Resisto porque sei que virás, movida pela tua implacável determinação. A qualquer momento ouvirei o som da tua voz e ela soará imperturbável:
 
Olá, António.


Hoje, abri a penúltima lata de atum. Vai dar para três, quatro dias. Mastigo cada pedacinho. Mastigo e remastigo. O pior é que me faz sede. Olha, Luísa, afinal não precisei de ir ao ginásio, perdi a barriga por completo! As calças é que me caem, preciso de calças novas, vou fazendo furos no cinto, mas já não dá para fazer mais.

Já que isto pode ser um testemunho à la Anne Frank, devo contar como tudo aconteceu. De um dia para outro, sem qualquer previsão ou declaração de guerra -- ainda estou para saber como tudo isto escapou aos serviços secretos de todo o mundo ocidental -- operações de sabotagem concertadas deixaram todo o ocidente a morrer à míngua, sem água, comunicações, combustíveis... de que vale um exército sem pão nem comunicações? Carros, barcos, aviões sem combustível, bancos “sem sistema”- e de que nos serviria o dinheiro nestas circunstâncias?, a insegurança gerada pela fome, tudo a agravar-se dia a dia, até nos trancarmos em casa, tentando passar por invisíveis com medo de assaltos aos escassos bens que nos vão possibilitando a existência... Foram usadas bombas, armas químicas, violência? Invadiram o nosso território? Não, nada disso. Pelo menos por enquanto, que eu saiba. Devem estar à espera que, pura e simplesmente, morramos todos. É a mais sofisticada, a mais clean das guerras, esta. Toda despoletada através dos sistemas informáticos. Passámos a depender deles, facilitaram-nos a vida, entregámos-lhes as nossas vidas.

Literalmente.

O pior de tudo é ignorarmos o que realmente se passa. Limitamo-nos a esperar. E um dia destes já não queremos saber porque, estando ainda vivos, já deixámos de viver. Escurece, já não vejo o que escrevo. Que horas serão, que dia? Horas de molhar os lábios - delícia suprema dos meus dias - e de me enfiar na cama. Adormecer a reviver momentos bons da nossa vida, Luísa. A reviver as nossas noites de amor. As nossas viagens. A infância do nosso filho.Também pensas nisso? Era boa a nossa vida. Era vida.

Não foi amor à primeira vista, o nosso. Vivíamos em mundos diferentes, apesar de frequentarmos o mesmo café. Ah, a importância dos cafés na vida social dos anos 60, 70! Eram a nossa sala de visitas comum, o nosso facebook, o nosso telemóvel. Quem me queria encontrar, era passar na Roma depois de jantar. Podia dizer-se “Diz-me a que café vais, dir-te-ei quem és”. Na Roma, porém, havia grupos distintos. Em zonas distintas. À entrada, os “betinhos” da avenida de Roma, era assim que nos catalogavam, grupo a que claramente pertencia. Classe média confortável, gente conservadora,  seguindo os ditames da moda. Lá para trás ficavam os outros, muitos deles estudantes do Técnico, cabeludos, barbudos, ar contestatário de maio de 68. Não deixavam de ser burgueses, por mais que lhes custasse admitir isso, já que naquele tempo as classes trabalhadoras não estudavam na universidade. Só que não eram dali, como nós, e não viviam em casa dos pais. Vinham muitas vezes “da província” ou dos “territórios ultramarinos”. Viviam em quartos alugados ou em residências.

As miúdas, como dizíamos, também se dividiam pelos dois grupos, as mais ou menos hippies, cabelos longos, roupa étnica ou casual,  e as embonecadas, que não saíam de casa sem se mirarem dezenas de vezes ao espelho. Como a minha namorada. Melhor dizendo, quase-noiva. Não se pode negar que fosse bonita. Eu sentia algum orgulho quando ela entrava no café, fresca e elegante. Estava empenhado naquela relação, que me parecia absolutamente certa.

Um dia senti uns olhos trocistas fixados em mim. Os teus. Nunca te tinha visto, pertencias claramente ao grupo lá de trás, longos cabelos desalinhados, saia comprida colorida, camisa amarrotada. Olhos muito pintados. Davas nas vistas, mas não me passaria pela cabeça meter conversa contigo. Ao fim de poucos meses deixaste de aparecer, terás mudado de café. Curiosamente, dei por isso. E foi com um sobressalto que deparei contigo, cerca de um ano depois, na biblioteca da Gulbenkian. «Olá, António!» disseste tu naquele tom de voz que usamos nas bibliotecas. Aquele sorriso trocista enervante. Que passei a amar perdidamente. Mas isso foi mais tarde.
 

É bom ter tantas memórias para ocupar o meu tempo, devia ter começado a escrever há mais tempo, quando tinha mais energia. Agora canso-me depressa. Seria mais fácil se tivesse café. Tenho cápsulas, tenho máquina, mas falta tudo o resto. Às vezes corto uma cápsula para cheirar e lamber o café. E não é que me revigora?
 
Elisabeth Carreira, Lisboa, 28-10-2014