Publico com o maior prazer mais um conto saído das nossas últimas oficinas, assinado por Elizabeth Carreira. É uma narrativa pungente, apocalíptica, muito bela. Acima de tudo, é um conto credível que se materializou esplendorosamente. Blind Date foi realmente uma belíssima surpresa para todos nós, participantes e orientadora. MG
Hoje, abri a penúltima lata de atum. Vai dar para três, quatro dias. Mastigo cada pedacinho. Mastigo e remastigo. O pior é que me faz sede. Olha, Luísa, afinal não precisei de ir ao ginásio, perdi a barriga por completo! As calças é que me caem, preciso de calças novas, vou fazendo furos no cinto, mas já não dá para fazer mais.
Já que isto pode ser um testemunho à la Anne Frank, devo contar como tudo aconteceu. De um dia para outro, sem qualquer previsão ou declaração de guerra -- ainda estou para saber como tudo isto escapou aos serviços secretos de todo o mundo ocidental -- operações de sabotagem concertadas deixaram todo o ocidente a morrer à míngua, sem água, comunicações, combustíveis... de que vale um exército sem pão nem comunicações? Carros, barcos, aviões sem combustível, bancos “sem sistema”- e de que nos serviria o dinheiro nestas circunstâncias?, a insegurança gerada pela fome, tudo a agravar-se dia a dia, até nos trancarmos em casa, tentando passar por invisíveis com medo de assaltos aos escassos bens que nos vão possibilitando a existência... Foram usadas bombas, armas químicas, violência? Invadiram o nosso território? Não, nada disso. Pelo menos por enquanto, que eu saiba. Devem estar à espera que, pura e simplesmente, morramos todos. É a mais sofisticada, a mais clean das guerras, esta. Toda despoletada através dos sistemas informáticos. Passámos a depender deles, facilitaram-nos a vida, entregámos-lhes as nossas vidas.
Literalmente.
O pior de tudo é ignorarmos o que realmente se passa. Limitamo-nos a esperar. E um dia destes já não queremos saber porque, estando ainda vivos, já deixámos de viver. Escurece, já não vejo o que escrevo. Que horas serão, que dia? Horas de molhar os lábios - delícia suprema dos meus dias - e de me enfiar na cama. Adormecer a reviver momentos bons da nossa vida, Luísa. A reviver as nossas noites de amor. As nossas viagens. A infância do nosso filho.Também pensas nisso? Era boa a nossa vida. Era vida.
Não foi amor à primeira vista, o nosso. Vivíamos em mundos diferentes, apesar de frequentarmos o mesmo café. Ah, a importância dos cafés na vida social dos anos 60, 70! Eram a nossa sala de visitas comum, o nosso facebook, o nosso telemóvel. Quem me queria encontrar, era passar na Roma depois de jantar. Podia dizer-se “Diz-me a que café vais, dir-te-ei quem és”. Na Roma, porém, havia grupos distintos. Em zonas distintas. À entrada, os “betinhos” da avenida de Roma, era assim que nos catalogavam, grupo a que claramente pertencia. Classe média confortável, gente conservadora, seguindo os ditames da moda. Lá para trás ficavam os outros, muitos deles estudantes do Técnico, cabeludos, barbudos, ar contestatário de maio de 68. Não deixavam de ser burgueses, por mais que lhes custasse admitir isso, já que naquele tempo as classes trabalhadoras não estudavam na universidade. Só que não eram dali, como nós, e não viviam em casa dos pais. Vinham muitas vezes “da província” ou dos “territórios ultramarinos”. Viviam em quartos alugados ou em residências.
As miúdas, como dizíamos, também se dividiam pelos dois grupos, as mais ou menos hippies, cabelos longos, roupa étnica ou casual, e as embonecadas, que não saíam de casa sem se mirarem dezenas de vezes ao espelho. Como a minha namorada. Melhor dizendo, quase-noiva. Não se pode negar que fosse bonita. Eu sentia algum orgulho quando ela entrava no café, fresca e elegante. Estava empenhado naquela relação, que me parecia absolutamente certa.
Um dia senti uns olhos trocistas fixados em mim. Os teus. Nunca te tinha visto, pertencias claramente ao grupo lá de trás, longos cabelos desalinhados, saia comprida colorida, camisa amarrotada. Olhos muito pintados. Davas nas vistas, mas não me passaria pela cabeça meter conversa contigo. Ao fim de poucos meses deixaste de aparecer, terás mudado de café. Curiosamente, dei por isso. E foi com um sobressalto que deparei contigo, cerca de um ano depois, na biblioteca da Gulbenkian. «Olá, António!» disseste tu naquele tom de voz que usamos nas bibliotecas. Aquele sorriso trocista enervante. Que passei a amar perdidamente. Mas isso foi mais tarde.
É bom ter tantas memórias para ocupar o meu tempo, devia ter começado a escrever há mais tempo, quando tinha mais energia. Agora canso-me depressa. Seria mais fácil se tivesse café. Tenho cápsulas, tenho máquina, mas falta tudo o resto. Às vezes corto uma cápsula para cheirar e lamber o café. E não é que me revigora?
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Singapore Ruins, by JonasDeRo |
Lembro-me de ti, Luísa. Lembro-me sempre de ti. Tudo me traz
recordações de ti, de nós, porque tu eras parte de mim e eu sem dar conta,
tantas vezes. Minha mulher militante de todas as causas. Leio, escrito por ti à
pressa, em letra descuidada, no bloco que deixaste aberto sobre a secretária:
Sou partidário.
Eu odeio quem não
participa,
Eu odeio os
indiferentes.
António Gramsci, Scritti giovanili.
Usaste-a na
última intervenção, como sempre acalorada, no congresso da organização verde de
que eras dirigente? Esse congresso que te levou ao norte do país, justamente
quando a guerra, ou lá o que é isto, rebentou. Ainda falámos ao telemóvel,
mensagens breves, tranquilizadoras... enquanto houve energia. «Estás bem?»
-- Sim. Falei com o Pedro, estão todos bem, mas confirmou que em
Londres estão
como nós.
Temos de ter paciência, isto vai ser resolvido, mais dia, menos dia a situação vai
resolver-se. Tem cuidado, não saias. Assim que puder vou para casa, hei-de
arranjar
maneira.
-- Não vais cruzar os braços, bem sei. Eu espero-te, não saio daqui.
-- Não vais cruzar os braços, bem sei. Eu espero-te, não saio daqui.
Queria dizer “meu amor” mas a chamada caiu. E agora, pressinto-te em
todos os ruídos e em todas as sombras e assim meço a verdade do meu amor por
ti. Tento andar aprumado
e manter a casa digna para quando chegares, apesar da falta de água e de luz.
Aparo a barba e o cabelo com uma tesoura. Levo horas nisso. Arejo a roupa na
varanda, à socapa, não vá alguém ver-me, e penduro-a em cabides.
Estou só, numa casa cheia de objetos que foram essenciais até que se
tornaram inúteis. Frigorífico, televisão, computador. Fogão elétrico. Micro-ondas!
Lavatórios, torneiras, banheiras... Ah, e o carro na garagem! Ao princípio,
estava certo que era uma questão de um, dois dias. Uma semana... depois outra...
quantas se passaram já? Perdi-lhes a conta.
Ocorreu-me isto da escrita, como um escape. Felizmente coleccionei
lápis atrás de lápis ao longo da vida, quando já nem escrevíamos à mão, tudo no
computador. E papel não falta. Nem tempo. Preencho os dias e esta ausência de
comunicação que me enlouquece. Agora, lembro-me de Anne Frank e do seu diário.
Visitei em jovem a sua casa-museu, em Amsterdão, longe de imaginar que décadas
depois iria enfim compreender tudo por que passou, ela e muitos outros.
Tomo pois consciência de que corro o risco de me
transformar na Anne Frank do século XXI. Tinha a sua graça. O testemunho de um
homem, entre milhares, que digo eu?, milhões, dezenas, centenas de milhões, pateticamente
condenados a morrer de fome, sede e solidão após uma vida de abundância,
festança e consumo desenfreado. É uma grande anedota. De morrer a rir...
Quantos não terão morrido já? Abro a janela e fecho-a de seguida, tão
pestilento está o ar. Graças ao teu cuidado, tínhamos a despensa bem recheada, e
tantos tantos garrafões de água na garagem... para uma eventualidade, uma mania
tua que eu ridicularizava! Dizias que tinhas estado duas semanas sem água
canalizada quando tinhas vivido em África e assim tinhas aprendido o valor do
bem mais precioso do que tudo o que possamos guardar! E eu a reclamar
que aquilo era uma inutilidade e ocupava muito espaço... Consumo pouco, o menos
possível. Olho para os garrafões e sei exatamente o tempo que a água vai durar.
O meu tempo de vida? Ao princípio ainda usava alguma para me lavar. Agora nem
pensar, que morra sujo mas o mais tarde possível!
O que eu dava para poder ouvir música! Reorganizei os
nossos muitos CDs. Luísa, Luísa, não tens o instinto da organização, por isso
passas a vida à procura das tuas coisas. Estava tudo misturado, alguns fora da
caixa, outros em caixas erradas... Se estivesses cá ouvias das boas. Quem dera,
quem dera que um dia voltes a remexer tudo, a tirar tudo do lugar!
Tenho essa
esperança, uma quase certeza de que tudo volte ao lugar. “A esperança é a
última a morrer!” “Enquanto há vida há esperança!” Expressões populares que até
incomodava ouvir, de tão ditas e reditas, a maior parte das vezes sem quererem
dizer nada. Frases de circunstância, ocas, quase sempre hipócritas, ditas da
boca para fora. Ah, mas tão verdadeiras na condição em que me encontro! Mais do
que a falta de água e de luz, a tua ausência diminui-me. Resisto porque sei que
virás, movida pela tua implacável determinação. A qualquer momento ouvirei o
som da tua voz e ela soará imperturbável:
Olá, António.
Hoje, abri a penúltima lata de atum. Vai dar para três, quatro dias. Mastigo cada pedacinho. Mastigo e remastigo. O pior é que me faz sede. Olha, Luísa, afinal não precisei de ir ao ginásio, perdi a barriga por completo! As calças é que me caem, preciso de calças novas, vou fazendo furos no cinto, mas já não dá para fazer mais.
Já que isto pode ser um testemunho à la Anne Frank, devo contar como tudo aconteceu. De um dia para outro, sem qualquer previsão ou declaração de guerra -- ainda estou para saber como tudo isto escapou aos serviços secretos de todo o mundo ocidental -- operações de sabotagem concertadas deixaram todo o ocidente a morrer à míngua, sem água, comunicações, combustíveis... de que vale um exército sem pão nem comunicações? Carros, barcos, aviões sem combustível, bancos “sem sistema”- e de que nos serviria o dinheiro nestas circunstâncias?, a insegurança gerada pela fome, tudo a agravar-se dia a dia, até nos trancarmos em casa, tentando passar por invisíveis com medo de assaltos aos escassos bens que nos vão possibilitando a existência... Foram usadas bombas, armas químicas, violência? Invadiram o nosso território? Não, nada disso. Pelo menos por enquanto, que eu saiba. Devem estar à espera que, pura e simplesmente, morramos todos. É a mais sofisticada, a mais clean das guerras, esta. Toda despoletada através dos sistemas informáticos. Passámos a depender deles, facilitaram-nos a vida, entregámos-lhes as nossas vidas.
Literalmente.
O pior de tudo é ignorarmos o que realmente se passa. Limitamo-nos a esperar. E um dia destes já não queremos saber porque, estando ainda vivos, já deixámos de viver. Escurece, já não vejo o que escrevo. Que horas serão, que dia? Horas de molhar os lábios - delícia suprema dos meus dias - e de me enfiar na cama. Adormecer a reviver momentos bons da nossa vida, Luísa. A reviver as nossas noites de amor. As nossas viagens. A infância do nosso filho.Também pensas nisso? Era boa a nossa vida. Era vida.
Não foi amor à primeira vista, o nosso. Vivíamos em mundos diferentes, apesar de frequentarmos o mesmo café. Ah, a importância dos cafés na vida social dos anos 60, 70! Eram a nossa sala de visitas comum, o nosso facebook, o nosso telemóvel. Quem me queria encontrar, era passar na Roma depois de jantar. Podia dizer-se “Diz-me a que café vais, dir-te-ei quem és”. Na Roma, porém, havia grupos distintos. Em zonas distintas. À entrada, os “betinhos” da avenida de Roma, era assim que nos catalogavam, grupo a que claramente pertencia. Classe média confortável, gente conservadora, seguindo os ditames da moda. Lá para trás ficavam os outros, muitos deles estudantes do Técnico, cabeludos, barbudos, ar contestatário de maio de 68. Não deixavam de ser burgueses, por mais que lhes custasse admitir isso, já que naquele tempo as classes trabalhadoras não estudavam na universidade. Só que não eram dali, como nós, e não viviam em casa dos pais. Vinham muitas vezes “da província” ou dos “territórios ultramarinos”. Viviam em quartos alugados ou em residências.
As miúdas, como dizíamos, também se dividiam pelos dois grupos, as mais ou menos hippies, cabelos longos, roupa étnica ou casual, e as embonecadas, que não saíam de casa sem se mirarem dezenas de vezes ao espelho. Como a minha namorada. Melhor dizendo, quase-noiva. Não se pode negar que fosse bonita. Eu sentia algum orgulho quando ela entrava no café, fresca e elegante. Estava empenhado naquela relação, que me parecia absolutamente certa.
Um dia senti uns olhos trocistas fixados em mim. Os teus. Nunca te tinha visto, pertencias claramente ao grupo lá de trás, longos cabelos desalinhados, saia comprida colorida, camisa amarrotada. Olhos muito pintados. Davas nas vistas, mas não me passaria pela cabeça meter conversa contigo. Ao fim de poucos meses deixaste de aparecer, terás mudado de café. Curiosamente, dei por isso. E foi com um sobressalto que deparei contigo, cerca de um ano depois, na biblioteca da Gulbenkian. «Olá, António!» disseste tu naquele tom de voz que usamos nas bibliotecas. Aquele sorriso trocista enervante. Que passei a amar perdidamente. Mas isso foi mais tarde.
É bom ter tantas memórias para ocupar o meu tempo, devia ter começado a escrever há mais tempo, quando tinha mais energia. Agora canso-me depressa. Seria mais fácil se tivesse café. Tenho cápsulas, tenho máquina, mas falta tudo o resto. Às vezes corto uma cápsula para cheirar e lamber o café. E não é que me revigora?
Elisabeth Carreira, Lisboa, 28-10-2014
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