De Alda Rosa, a segunda parte da sua viagem pelos Universos Paralelos. É um conto escrito à boa e antiga maneira das histórias de fadas, muito sedutor e intrigante.
A Princesa Ariana
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Havia um, na torre, que me fascinava. Chamavam-lhe o quarto da Rainha Eleanora e era proibido entrar ali |
Tanto ruído, mas que gritaria. Há
um grande entusiasmo no ar. O bebé da Rainha Azara está prestes a nascer! E eu,
minúscula, no meio de todo aquele alarido, a sair das entranhas da minha mãe para
os braços firmes da velha e sábia mulher que me ajudou a vir ao Mundo, e que me
acolheu, limpou e embrulhou em lindas cambraias e rendas, estendendo-me depois
à rainha:
- Majestade, eis a vossa linda
princesinha.
Oiço a minha mãe a dizer:
- É tão linda!
E depois, uma voz masculina,
muito meiga:
- A minha princesinha Ariana
parece uma laranjinha! Amem-na muito, pois virá a ser a vossa rainha.
- Sim, Majestade, responderam as
aias, que a seguir me levaram para o berço cheio de rendas e debruado a ouro,
onde adormeci.
E por todo o reino tocaram sinos
em honra do meu nascimento, e foram decretadas festas, e organizados banquetes
e bailes para onde todos, sem distinção de nascimento ou de fortuna eram
convidados, para que o povo partilhasse da alegria dos seus monarcas.
E eu fui crescendo, entre afagos,
mimos, alegrias, correndo pelos enormes corredores do palácio, cobertos de
tapeçarias e de retratos dos meus antepassados, alguns com aspecto tenebroso. Eu
não conhecia o palácio todo. Havia salas, salões, câmaras, recâmaras, pequenos
aposentos, caves, aonde acedia com maior ou menor facilidade. Mas também havia
outros aposentos misteriosos sempre fechados com grossos ferrolhos. Havia um,
na torre, que me fascinava particularmente. Chamavam-lhe o quarto da Rainha
Eleanora e era proibido entrar ali, por causa de um espelho que pertencera a
essa minha avó. A minha mãe, dizia que, quando o mirávamos, deparávamos com a
cara horrenda de uma bruxa. Assim, esse espelho estava guardado numa gaveta e o
quarto mantinha-se sempre fechado.
Sempre que podia fugir ao
controle das minhas aias, e conseguia subtrair a chave que a Rainha guardava
numa pequena arca na sua câmara real, subia à torre, abria o quarto da minha
avó, pegava no espelho, olhava-me, fazia caretas, imaginava-me já crescida a
fazer penteados com o meu cabelo negro e comprido, que entrançava e prendia no
cimo da cabeça. Este espelho, que nunca me devolveu a imagem de uma bruxa
horrenda, mas era para mim algo de mágico. Como poderia a minha mãe não gostar
dele?
Enquanto era muito pequena, uma boa
parte da minha vida era passada nos jardins do palácio, onde, por vezes, as minhas
aias me deixavam brincar com os filhos das numerosas servas e açafatas, algumas
das quais eram casadas com oficiais e mesteres ao serviço da corte, e viviam em
instalações anexas, junto das hortas ou dos pomares ou das oficinas. Também
adorava percorrer as cozinhas, onde eram confeccionados pratos deliciosos que
emanavam aromas maravilhosos e tentava distrair as criadas para ir
até aos salões, onde o meu pai se reunia com, ministros, conselheiros,
dava audiências a embaixadores de outros países ou acolhia as petições do seu
povo. Escondia-me atrás dos reposteiros e ouvia as conversas. Não percebia
muito do que diziam, mas entendia que o meu pai era apreciado no Reino e amada
por todos.
Por vezes, quando ia cavalgar
para o bosque com o seu séquito de guardas, escudeiros e pajens, levava-me à
garupa do seu cavalo e fazia-me conhecer a natureza, ensinando-me o nome dos
pássaros, das árvores, das plantas e de todos os animais que corriam livremente
em redor do palácio. Lembro-me do dia em que ele me falou do freixo:
- Sabes Ariana, esta bela árvore
que aqui vês chama-se freixo e pertence à mesma família da oliveira. Tem a copa
arredondada e cresceu rapidamente, porque se desenvolveu aqui, perto do
ribeiro. As folhas também têm uma particularidade, quando chega o frio, caem,
ainda verdes, sem alterar a sua cor, como acontece com a maioria das árvores.
Isto ajuda a nutrir o solo e a alimentar os animais. Os antigos também diziam
que as folhas ajudavam a baixar a febre. E a madeira, por ser flexível e
resistente, tem sido usada, desde longa data, na construção de arcos e flechas.
As coisas maravilhosas que o meu
pai sabia!
Um dos pajens que nos acompanhava
nesses passeios por bosques e florestas era o Alberto, apenas um pouco mais
velho do que eu. Os seus pais tinham morrido durante uma trovoada, fulminados
por um raio. O meu pai tinha um carinho especial por ele, porque o Alberto
cuidava extraordinariamente dos cavalos, parecia que tinha uma relação mágica
com eles. Foi ele que, a mando do meu pai me ensinou a cavalgar. Quer a
proximidade de idades, quer o cuidado que Alberto tinha comigo, criou em nós
uma amizade profunda.
A minha mãe confiava-me às aias e
prestava-me pouca atenção, apesar de estar sempre a dar-lhes instruções sobre a minha educação, pois temia que não viesse a tornar-me na boa rainha como o
reino precisava. Eu adorava vê-la a receber os joalheiros que expunham aos
nossos olhares joias deslumbrantes, anéis, pulseiras, as
gargantilhas que ela tanto gostava de usar. Ou os mercadores, que traziam
tecidos lindíssimos e preciosos de tão remotas paragens. Sedas, musselinas,
cetins, algodões finíssimos, rendas, que
me deixavam fascinada a imaginar os belos vestidos executados em tão ricos
tecidos.
E chegou a altura em que me
começaram a ser ministrados os conhecimentos necessários à posição que eu viria a desempenhar, num futuro remoto... Tive aulas com o professor Luciano,
um sábio nas áreas da literatura, filosofia, pintura, a quem a minha mãe tinha
incumbido sobretudo a missão de me ensinar música. Mas enquanto o professor tocava
cravo ou harpa, eu lia algumas das obras que existiam na
biblioteca do palácio, a maioria com histórias fantásticas, que me fascinavam
e, por vezes, até sentia semelhanças com algumas das personagens.
Nos dias de festa e por ordem da
Rainha minha mãe, eu era obrigada a vestir vestidos pesados e profusamente
ornamentados, recebendo ordens severas para me manter imóvel e majestosa como o
exigia a minha qualidade de herdeira e futura monarca. Então, e após ter feito
14 anos, o meu pai morreu subitamente, provocando uma enorme consternação em
todo o Reino. Uma infindável tristeza abateu-se sobre mim. E, agora, o que iria
ser de mim, de nós todos? Nesses momentos de maior solidão e amargura, o
Alberto tornou-se uma presença reconfortante e preciosa. Com ele, ia dar
longos passeios a cavalo. E um dia, pouco após a morte do meu pai, a minha mãe
informou-me que pretendia voltar a casar-se e que desejaria ter um filho varão,
situação essa que me iria retirar a possibilidade de algum dia vir a ser
rainha, contrariamente ao desejo do meu pai. Disse, também, que caso essa
decisão não se realizasse, no dia em que ela morresse, cairia uma maldição sobre o
palácio que seria devorado por um enorme fogo o qual também faria desaparecer
todo o Reino.

Senti-me tão angustiada que, e
com a ajuda da minha ama-de-leite, que me adorava e temia pela minha vida desde
que o rei morrera, reuni algumas roupas, as mais modestas, algumas joias e o
espelho da minha avó, dentro de um pequeno baú, e fui ter com o Alberto. Ele
estava a par de quase tudo o que se passava, mas as ameaças da minha mãe foram
decisivas. Então, nessa mesma noite, decidimos partir, com os nossos haveres,
para outro Reino distante, onde iríamos casar, ter filhos e viver felizes para
sempre.
Alda Rosa, Lisboa, Janeiro de 2014
Créditos imagens: Ghost Stories: The Tower of London
Aernout van der Neer (1604-1677), Burning castle before a city [detalhe]