sábado, 12 de outubro de 2013

O que dizem os participantes

Não resisto em publicar alguns comentários às anteriores Oficinas e as expectativas dos participantes e a sua vontade de prosseguir, para além do tempo e da distância. Ou como diz o Zé, não é preciso «ser-se perto para se estar junto». Obrigada, muito.

Comentários [retirados da página da Alêtheia]

Clara Ferrão:
Estou ansiosa por ir fazer este curso!!! Tendo como experiência o curso anterior de oficinas de escrita, não posso estar mais entusiasmada!
Mais do que um mero exercício para nos pôr a escrever, é um mergulho às nossas entranhas, com um efeito catártico nas nossas vidas.
Muito obrigada Manuela pelo teu maravilhoso trabalho e generosidade com que te empenhas.
October 09 2013 at 12:10 PM

Sónia Alves:
Gostei muito de ter participado do curso anterior de oficinas de escrita! Concordo com a Clara , alem de um exercício que nos convida a escrita tem tb um efeito muito terapêutico. Um abraço grande Manuela e obrigada por tudo!
October 09 2013 at 05:10 PM

José Saraiva:
De África, de olho arregalado à escrita, mas circunspecto quanto à «profundidade» que este curso exigirá. Encher as palavras com emoções e memórias, será um «intenso desafio», a subscrever, na íntegra, a última frase da Clara. Lá estarei, até porque não é preciso ser-se perto para se estar junto. Z

Comentário retirado do Face Book:
Elda Aguilar Rainho Manuela muito obrigada por tudo, pela disponibilidade, pelo carinho, pela paciência, pelas palavras de coragem, alento e persistência que teve com cada uma de nós! Consegue com que cada um se sinta especial e importante na sua história e naquilo que transmite. Adorei e espero continuar na próxima oficina. Para mim foi uma terapia da alma! Obrigada a todas as colegas de Oficina. Adorei conhecer-vos. Bjnhs

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

As palavras que sempre te quis dizer

Muitas vezes, arrependemo-nos das nossas palavras. Porque as palavras quando saem da boca, deixam de nos pertencer. Não há como voltar a recolhê-las. Porém... há muitos silêncios que nos esmagam.  Tanta coisa por dizer. Tanta voz silenciada.
 
Como daquela vez em que gostaríamos tanto de ter respondido à letra, mas éramos demasiadamente pequenos, frágeis ou indefesos para erguer a voz perante o outro; ou como quando à agressão respondemos nada; e que dizer do dia em que, por timidez ou cobardia, calámos a voz dos sentimentos e vimos partir para sempre alguns anjos que cruzaram os nossos destinos?

Essas palavras que gostaríamos de ter dito e nunca dissemos, perseguem-nos? Pesam-nos no coração e na alma? Doem-nos no garganta? Vamos soltá-las até ao fim da memória.
 
Juntem-se à nova oficina de escrita 'Elegias do Amor e do Ódio'. No lindíssimo e acolhedor espaço da Livraria Alêtheia.
 

Livraria Alêtheia
Rua do Século, 13, 1200-433 Lisboa
(Estacionamento no silo da Calçada do Combro)
Telefone (+ 351) 210939748 * Email: aletheia@aletheia
 

domingo, 6 de outubro de 2013

«A infância dura mais que a vida inteira»

Numa colagem de memórias, Sónia Alves evoca o passado e vai à raiz do nome, em textos corajosos, de uma grande e comovedora sensibilidade.




As partidas da memória

Tive alguma relutância em escrever sobre mim e isto por vários factores. Um deles é certamente o facto de, ao escrevermos sobre nós ou melhor acerca daquilo que se passou no decorrer das nossas vidas, envolvermos outras pessoas. Quer queiramos quer não, faz parte do processo. Uma vez, quando estava na biblioteca de Estocolmo para devolver alguns livros, assisti por mero acaso a uma entrevista com a escritora Rebecca Walker. Eu nunca tinha ouvido falar nela, mas sim na sua mãe, Alice Walker, pelo que a presença de Rebecca, que viajava a dar cursos de escrita após o lançamento do seu livro autobiográfico, despertou-me a atenção. De acordo com a escritora, a mãe tinha deixado de lhe falar por uns tempos porque ficou bastante perturbada quando a sua autobiografia foi publicada, bem como outros membros da família que acabaram por acusá-la, entre outras coisas, de injusta e mentirosa.
 
Creio que isso deve acontecer com certa regularidade.

Outro dos motivos da minha renitência prende-se com o facto de a memória nos pregar rasteiras. Nos seus recantos, as recordações assumem outros contornos e cores que, uma vez invocados e transcritos, parecem perder a forca que antes tinham aos nossos olhos.

Finalmente, e até há bem pouco tempo, julgava que não tinha quase nenhumas memórias de infância, pois só me recordava de pequenas imagens fragmentadas e incoerentes como nos sonhos. Depois, quando comecei a pegar nas poucas fotografias e objectos antigos que restaram – mudámos muitas vezes de casa e a minha mãe tinha por hábito desfazer se das coisas –, elas foram voltando de mansinho.
 

O meu nome é Sónia

O meu nome é Sónia e nasci em Lisboa. Sou filha de pais Portugueses. Foi a minha mãe que o escolheu, inspirada numa das personagens de um livro que leu quando estava gravida de mim, Crime e Castigo de Fyodor Dostoyevsky. Creio que estava mesmo destinada a ter um nome russo, pois mais tarde, ela disse-me que também se chamava Sónia a mulher de Tosltoy que deu igualmente esse nome a uma das personagens do seu Guerra e Paz. A minha mãe também me contou que, quando estava grávida de mim, teve alguns problemas políticos. Afinal, eu ainda nasci em ditadura, um ano antes da chamada Revolução dos cravos.

Uma vez, no jardim do Príncipe Real, chorou tanto que disse ao vento:

– A minha filha há-de nascer com a bandeira vermelha.

Nunca lhe fiz perguntas acerca deste episódio talvez porque soubesse qual era, na época, a sua ideologia. Mais tarde, ela própria admitiu a sua desilusão com algumas políticas soviéticas, ou pelo menos pelo modo como foram, e nas suas próprias palavras, «usadas, aplicadas, confundidas, alteradas». A ironia disto tudo é que, no decorrer da minha vida já viajei sozinha para vários destinos, mas sempre senti a maior relutância em aventurar-me sozinha pela Rússia, para não falar pelas antigas Republicas Soviéticas. Porquê? Não consigo explicar isto, racionalmente. Contudo, na minha cabeça, imagino-me com alguma frequência a viajar no comboio transiberiano, a embarcar em São Petersburgo, a parar varias vezes no decorrer do percurso, a sentar-me junto de um lago algures na Mongólia, de termo de chá na mão e a sair uns dias depois em Pequim.

 

A infância dura mais que a vida inteira

Há uns meses, aconselhada por uma amiga, fui a uma reunião dos alcoólicos anónimos para familiares e amigos de pessoas que sofrem ou sofreram de alcoolismo. «Não importa que já tenha passado», disse-me ela. «O que tu viveste, pensaste e sentiste na infância molda mais e condiciona mais o teu presente e futuro do que possas imaginar». Foi então que me lembrei também de uma frase da escritora espanhola Ana Maria Matute durante uma entrevista:

– A infância dura mais que a vida inteira.

Então, agarrei na minha vergonha, coloquei a numa gaveta imaginaria e lá fui com a minha amiga ao tal primeiro encontro. No grupo, estava uma rapariga de cabelo escuro como o meu.Senti que o rosto dela me era familiar e pensei, «talvez seja portuguesa ou espanhola»:

– Olá, o meu nome é Sónia – disse ela –, sou de São Petersburgo e estou aqui porque o meu pai é alcoólico.

Já tínhamos duas coisas em comum, além do cabelo escuro.
 

Ai Mouraria!

Nasci no bairro da Mouraria. Fui lá só para nascer, pois nunca ali vivi, mas mudei tantas vezes de casa que dei por mim a pensar, no Verão passado, que não conseguia imaginar nenhum outro bairro em Lisboa onde pudesse ter nascido. Não por pensar que viver na Mouraria é fácil. As casas são pequenas e há falta de privacidade, coisas, para mim, difíceis de suportar. Mas há algo neste bairro que tem a ver comigo, pelo que, no último Verão quando estive em Portugal, visitei demoradamente a Mouraria que eu conhecia tão mal. Numa dessas visitas, num final de tarde, sentei-me nas escadas de pedra de uma daquelas ruas tão antigas, e senti as lágrimas correrem-me pela cara abaixo. Percebi então e finalmente, que tudo na minha vida tem a ver com sobrevivência. Nao a duríssima sobrevivência que alguns sobreviventes referem, mas a minha tentativa de resistir num espaço fisico que considero agreste e bárbaro, o mundo, tentando ao mesmo tempo tentar manter uma certa dignidade, e conservar os princípios que considero essenciais, sem os quais nem eu própria me suportaria.

Sónia Alves, Setembro 2013, Estocolmo

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Entre o riso e o choro

O belo texto poético de Carla Lemos


I - DEZASSETE
 
Sou adolescente.

Adulta pelas contas da natureza humana.

Espero que alguém perceba a razão pela qual o meu corpo adoeceu em pouco tempo e rapidamente me atirou para uma cama, sem força para viver a vida que me pertence.

Um instante mudou a minha vida, e com ele a possibilidade de não sobreviver.

Aproveito esse momento de solidão para rever dezassete anos de vida.

Curiosamente parece-me uma eternidade de vida, o que me deixa feliz por perceber que foi de alguma forma bem vivida.

É impressionante a lucidez com que revejo cada dia.

E de repente sinto uma enorme necessidade de analisar a vida e todo o seu sentido, e chegam-me os “porquês”  que não tive em criança.

Começo a perder uma certa identidade física, aquela que há tão pouco julgava ter criado.

Por outro lado revela-se uma percepção de tudo o que me rodeia, da integridade do ser que sou, e do que faço parte, que brilha dentro de mim como eu nunca tinha imaginado possível.

E aqui estou, um nada de mão em mão, entregue a todas as possibilidades, à espera de mais vida.

Sobrevivo.

À última chamada, eventualmente...

Talvez sobreviva à importância da vida.

Àquela vida que não sei o que seria por não a ter vivido, restando-me a outra à qual resisto desde então, que me mostrou o plano que eu nem sequer tinha traçado.

Que plano é esse que nos pergunta a toda a hora se escolho entre o riso e o choro?

Ah que pergunta...

O riso, claro!



II - ODEMIRA

Odemira é o Alentejo para onde já muito pouca gente vai.

Terra bonita, arranjada, que me recorda aventurosas viagens de juventude, quando os transportes não eram  muitos, mas esperávamos pelo que havia e lá íamos vivendo a vida, sem grandes exigências, sem carros, nem comboios de alta velocidade, e as viagens para a Europa não tinham valores low-cost.

A vida era para ir passando e ir vivendo e ir sonhando.

Então saí de Carcavelos em bicicleta.

Com um mapa e um caderno de apontamentos, duas bolsas laterais de mantimentos e pouca roupa, parti convicta.

O caminho foi sendo percorrido à beira-mar, num esforço descomunal, apenas seduzida pela aventura e pelo entusiasmo daquela liberdade que sentia bater-me na cara em forma de brisa.

Toda aquela natureza verdejante da serra de S. Luís, e um silêncio apenas quebrado pela corrente da bicicleta e algumas pedaladas, me levavam para uma viagem interior palpitante, e deixava-me um sorriso preso na cara.

Era uma altura em que dar parte fraca era desistir, era arranjar uma cabina telefónica e chamar a pagar no destino para pedir que me viessem buscar porque não aguentava mais

E parte fraca nunca foi o meu forte, por isso seguia em direcção ao esgotamento mais gostoso do mundo.

Sentia-me perfeitamente fundida neste espaço físico e psicológico que me acompanhou por muitas milhas percorridas.

A liberdade só é boa quando conseguimos integrá-la.

Assim seja sempre.

Carla Lemos, Lisboa, Setembro 2013



Créditos de imagem: Rota Vicentina, Serra do Cercal/São Luís.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O coração de cristal

Por Maria Pinto de Araújo

«Já te viste ao espelho? Gostas do que vês?»
Estas foram as frases que me fizeram olhar para dentro de mim. E na realidade, as duas perguntas feitas com a intenção de magoar e de humilhar foram as melhores que me fizeram na vida porque me levaram a tomar decisões importantíssimas para a minha mudança de rumo.
 «Já te viste ao espelho? Gostas do que vês? Porque não é só a beleza espiritual que conta, a beleza física também!»
 
Esta pergunta e esta afirmação foram proferidas pelo homem a quem eu tinha dado três filhos, o último dos quais há um ano e meio. Aumentei vinte e um quilos, e ainda não tinha recuperado. Faltava-me perder sete.  
Picasso, Mulher que chora, 1937, Londres,Tate Modern
 
Esta pergunta e esta afirmação, estavam a ser-me dirigidas pelo meu marido de há dez anos, os dois sentados numa esplanada, a discutirmos o nosso casamento e a nossa relação.
Esta pergunta e esta afirmação, eram proferidas por alguém que estava fora de casa cerca de treze horas por dia e que chegava sempre muito cansado depois de ter ido trabalhar, jogar golfe e ir ao ginásio. E que entrava a contar que o jantar estivesse feito, as crianças de banho e refeição tomadas, de preferência na cama. Alguém que esperava que tudo girasse à sua volta e que tudo fosse feito para o satisfazer.

Qualquer falha, qualquer contrariedade, qualquer desvio nestes ‘regulamentos’, motivavam críticas mordazes, comentários sádicos, berros a despropósito e sem razão, humilhações, murros… nas coisas. E eu fazia tudo para evitar essas explosões!
 
Eu também trabalhava. Com reuniões em Bruxelas várias vezes por mês, quando estava cá, para além de trabalhar nos dossiers, ia ao supermercado, tratava dos filhos, ajudava a empregada interna que não tinha tempo para tudo, tratava dos seguros, das acções, dos bancos, dos médicos. Cumpria toda a rotina extenuante dos quotidianos de uma família. Sobrava o quê? Cansaço. Tempo e vontade para ir fazer ginásio na realidade não tinha. E assim, ele tinha razão pois na altura preocupava-me muito mais em procurar respostas para a minha infelicidade, sobretudo lendo e lendo, do que em manter-me em boa forma física. Bem sei que deveria levar a minha perfeição até aí, mas as forças faltavam-me para isso e para tanto mais... Sentia-me à beira de uma depressão. Na fronteira de um precipício de onde já não sabia como sair.

Então, ao ouvir esta pergunta tão simples mas feita com o intuito de magoar e de humilhar, senti uma facada no coração e ouvi-o estilhaçar-se em mil bocadinhos de cristal. Tão bonito, luminoso, amoroso, amigo, prestável, este coração de cristal partiu-se. Foi atirado ao chão. E depois, calcado, esmagado, reduzido a pó cintilante. Vivo, mas pó. A dor foi enorme e a tristeza imensa, pois naquele dia fez-se luz na minha alma. Aquele ser que dizia amar-me, jamais iria mudar, jamais deixaria de me ferir deliberadamente, e eu nunca conseguiria deixar de ter medo dele enquanto estivesse ao seu lado, mas luz da luz.... A libertação acompanhou a tomada de consciência. Percebi que já não o amava, apenas o temia. Já nem gostava dele como pessoa, pois o ser enamorado, sedutor, cavalheiro, atento ao meu bem-estar que eu tinha conhecido e pelo qual me tinha apaixonado e casado em cinco meses, nunca tinha existido, senão como engodo para me garantir e agarrar.
 
Decidi não discutir, o que o irritava profundamente, pois era ao conflito que ia buscar energia. Falei-lhe em separação. Pôs-me imediatamente à vontade «para fazer o que quisesse, desde que que não lhe telefonasse daí a um mês a dizer que não sabia o que fazer». Bom conselho! Fui a uma psicóloga para me preparar para o embate do divórcio, que pedi quatro meses depois, muito calmamente e  sem dúvidas nenhumas. Sabia que o prolongamento daquele casamento me ia atirar para o precipício da depressão, do consequente aumento de peso, da infindável tristeza e da escalada de violência psicológica e física que o meu marido exercia sobre mim.
 
Consegui e tenho orgulho nisso. Paguei a factura desta independência com dez processos em tribunal para diminuir a pensão de alimentos ou pelo seu não pagamento; com a diminuição de rendimentos, e, consequentemente, com uma quebra apreciável no meu nível de vida, que me levou, inclusivamente, a recorrer à ajuda dos pais. E por fim, a fatura maior. Um cancro na mama, felizmente, e até ver, curado, já lá vão doze anos.  Por tudo isto, agradeço aquela pessoa que tanto me magoou, me ensinou, e que, por fim, me libertou com a pergunta fatal:

Já te viste ao espelho? Gostas do que vês?  

Agora, já não me calo e grito com todas as minhas forças: Vejo-Me Ao Espelho todos os Dias, Adoro o Que Vejo e Sinto, e, acima de tudo, o QUE SOU!
 

Maria Pinto de Araújo, Lisboa, Setembro 2013

domingo, 22 de setembro de 2013

Elda não quer ser grande...

Por Elda Aguilar Rainho
 
Quando tinha quatro anos a caminho dos cinco, pois só fazia anos no final de Setembro, os meus pais, recém-chegados a Angola, acharam por bem colocar-me na pré-primária para melhor me inserir e socializar. Detestei a ideia. Achei que não era ainda altura para sair de uma casa aonde acabara praticamente de chegar, e não me apetecia nada deixar a companhia da minha Alice, a empregada que tomava conta de mim desde que era bebé.

 
Então, pus-me a olhar para o meu irmão mais novo do que eu dois anos, sentadinho na sua cadeirinha de passeio e sem ter que ser grande para ir para a escola, e pensei que se ainda andasse de cadeirinha como ele também não precisaria de ir á escola. Continuava a ser pequena e a poder ficar em casa. Então, disse á minha mãe que só iria para a escola se fosse na cadeirinha do  meu irmão!

"But Mother I don't want to grow up"

Claro está que esperava que a minha mãe me dissesse que não...mas surpresa das surpresas respondeu-me que sim! Com certeza que podia ir á escola como queria, e assim sendo lá fui eu de bata amarela às riscas toda encolhida na cadeirinha do Ruca, mas sem dar parte de fraca, com a empregada de cor a empurrar-me. Quando por fim chegámos ao Colégio lá tentei sair duma forma mais ou menos digna e direita, mas foi quase impossível de tão encaixada estava. Não tive sorte nenhuma no artifício que escolhi para me baldar ao primeiro dia de aulas e de obrigações dos grandes. Ainda por cima, a partir desse dia estas nunca mais pararam!

sábado, 21 de setembro de 2013

"As manas catatuas, quem leva uma leva as duas”.

Universos mágicos e memórias avassaladoras.

Por Maria Teresa Figueiredo
Nunca pensei que fosse tão difícil escrever sobre mim. Deixar preto no branco, sem floreados e personagens, a minha origem, a complexidade das minhas memórias de infância, a base do que sou hoje. Não me darei a conhecer na totalidade e nem mesmo todas as minhas memórias de infância porque nem todas estão devidamente relembradas e trabalhadas no meu íntimo ao ponto de as transpor e escrever. Nem darei a conhecer as outras, não por vergonha, mas pelo medo de não as conseguir dignificar e homenagear como pretendo. E como as recordo.

Irei sim, dar a conhecer o que tanto procuro amarrar e colar no coração todos os dias, com medo que se perca. As memórias da minha infância até aos cinco anos. A recordação dos que me trouxeram a este mundo até ao dia que um deles optou por mos retirar!

Ticas! Alcunha que resultou da dificuldade de minha irmã mais velha apenas um ano e meio, em dizer o meu nome, Maria Teresa. Depois, fui-me apercebendo da existência do nome de família “Graciosa”, pelas vezes em que tias me agarravam as bochechas sardentas e me diziam que só podia ser Graciosa! E assim fiquei até hoje, a Ticas Graciosa para os amigos. Haverá outra razão que me ajudou a acentuar o Ticas e desligar do Teresa, mas serão outros contos de memórias mais avançadas.


Adrião - Escadaria de acesso ao castelo de Belver, no concelho de Gavião, em Portugal
Os meus pais morreram quando eu tinha apenas cinco anos. Nessa altura, vi-me obrigada a trocar o ar seco e a paisagem vasta e agreste da Beira Baixa em tons amarelados, recheada de magníficos penedos e imponentes sobreiros, pelo clima ameno e menos campestre da Beira Litoral, onde fui viver para um palácio cujos muros nem sempre conseguiam esconder outras casas mais pequenas, mas também com a sua beleza, embora distinta. Aí, vivíamos num casarão onde podia correr para ir à casa de banho e esconder da minha avó todos os pães que não conseguia comer, até ao dia em que era apanhada e tinha de os comer a todos em sopas de leite, como castigo. Tive a graça de nascer e crescer no seio de uma família enorme, dez filhos (os nossos tios), vinte cinco primos e já bastantes bisnetos que, entre quintas e cavalos, cães e touros, bicicletas e cavalgadas, nos fomos conhecendo, entendendo e entrelaçando!

Perdi os meus pais mas ganhei uma ligação especial com os avós, tios e primos. Cada um acabou por ter no meu coração um lugar especial. Ainda relembro com prazer quando nos chamavam a mim e à minha irmã, por nesse tempo sermos unha com carne, as “Ticas” ou “As manas catatuas, quem leva uma leva as duas”. 

Da minha infância e sem grande esforço de memória, facilmente recordo o Natal em que recebi a minha bicicleta azul e branca com rodinhas atrás. Lembro-me de estar no Páteo grande da quinta envolvido pelas casas, picadeiro, boxes para os cavalos e com larga vista para as pastagens repletas de sobreiros com o cabeço em segundo plano recheado de penedos. Foi neste Páteo, onde ainda se conseguia avistar uma das barragens, a mais pequena, que, empurrada e ajudada pelo meu pai dei as primeiras pedaladas na bicicleta que tanto me acompanhará nos anos seguintes. Mais tarde, e já na nova vida, mesmo sem travões desbravava caminhos e acelerava nas corridas entre primos. Rio-me e volto a ter a mesma sensação de medo e borboletas na barriga quando recordo a brincadeira que fazíamos com os primos mais velhos, de correr atrás de um pónei no meio do descampado, até este se zangar e cavalgar atrás de nós para nos morder. Tinha o seu feitio muito especial... E a sensação de ser puxada pela minha prima Maria – mais velha que eu, com a peculiaridade de ter um olho azul e outro verde –, ainda hoje se faz sentir.

Sentia-me livre naquele ambiente. Os dias passavam-se entre bezerros, passeios a cavalo na Toma, égua do meu pai, que era tão mansa que nos deixava montar para sermos passeadas à trela. Os cães eram nossos amigos, sempre cheios de paciência, e com eles partilhava outras brincadeiras. Agarrava-os, trocava os chupa-chupas, punha-lhe óculos de sol, tirava-lhe os óculos de sol. Não tinha problemas com a roupa, se sujava ou não sujava. Lembro-me apenas que brincava. Recordo com carinho e saudade o aconchego de me enroscar à noite no sofá, entre os meus pais, e a vontade que ainda hoje sinto de voltar atrás para voltar a ser a intrusa entre os dois, naqueles momentos mágicos. Recordo ainda as viagens no Citroen encarnado, com os meus pais e a minha irmã, e de adormeceremos a ouvir as músicas dos Gipsy Kings que ainda hoje me emocionam porque me trazem um bocadinho deles,  e porque sei que em tempos as ouvimos todos juntos!

Depois, havia os piqueniques entre os sobreiros e a pastagens, com os meus pais e amigos. As correrias e brincadeiras e mais uma vez a sensação de liberdade! Os jantares nas mesas circulares de pedra unidas entre si que, em conjunto fazem uma mesa enorme. Num deles e já depois de escurecer, ao tentar ir buscar fio dental para limpar os dentes, inclinei o armário fino e alto da casa de banho, sem me aperceber que no topo deste estava um autoclismo de loiça e que foi directo à minha cabeça. Chorei e chorei e, nessa altura, o pátio ainda me pareceu maior, pois de repente o meu lugar seguro deixou de o ser até conseguir reencontrar, entre a pouca luz e os muitos convidados, o colo, o conforto, os braços da minha mãe! Evidentemente, fui para o hospital, levei muitos pontos e chorei imenso. Ao meu lado, estava um rapaz também com os seus cinco anos que enfiara um amendoim numa das narinas e não conseguia retirá-lo! Aquela visão ainda me fez chorar mais e, de barriga para baixo com uma mão dada ao meu pai e a outra à minha mãe, chorei e chorei. A cicatriz ainda continua e quando a sinto é bom relembrar aquelas mãos comigo.

O que gostei da noite em que, suponho devido ao calor que se faz sentir naquela zona da Beira Baixa no verão, 40ºC, secos e sem qualquer aragem de ar fresco, fui com os meus pais, irmã e mais alguém que não me recordo, colar placards de uma tourada pelas paredes da vila. O cheiro da tinta, a adrenalina de estarmos ali de noite, o vento que apanhávamos na carrinha de caixa aberta, o delírio e o encanto daqueles momentos, devem ser outros tantos motivos para ter retido esta memória. E outras, como as noites em que o meu primo José Maria, depois de caçar aparecia em nossa casa. E eu, que já estava na cama, levantava-me para ir espreitar aquele “homem” sentado no nosso sofá com uma faca à cintura. Na altura tinha medo daquela figura e o medo criava-me a curiosidade suficiente para arriscar sair da cama e levar um castigo. Uma outra recordação carinhosa traz-me de volta as vezes em que os meus avós iam passar uns dias à Beira Baixa. Nessas alturas, a avó, sempre prática e despachada, contornava-nos os pés sobre numa folha branca com uma caneta, para, da próxima vez que voltasse, nos trazer sapatos. Mal sabíamos então que poucos anos depois o destino aproximaria muito mais ainda os nossos corações para que nos amássemos como mãe e filha.

Estas e outras lembranças, mais penosas e ainda por aprimorar até poderem ser registadas com a dignidade que merecem, são algumas das muitas que a criança que eu fui, até ao dia 13 de Dezembro de 1991, guarda a sete chaves no segredo do coração. Por agora, deixo aqui algumas.

Haverá outras, tantas e tantas, das várias fases da minha vida, que irão serão registadas, talvez em forma de romance, talvez fantasiadas. Para poder introduzir-lhes as presenças maravilhosas das fadas e dos duendes do mundo mágica a que todas, ou pelo menos quase todas, as crianças têm acesso.

Lisboa, Setembro 2013