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terça-feira, 29 de outubro de 2013

O fantasma de Laika

Há uns tempos um artista plástico resolveu usar o meu rosto numa das suas composições. Fê-lo em segredo e depois enviou-me a fotografia do quadro
- Reconheces? – perguntou.
Fiquei perplexa, não tanto por ver o meu rosto naquela obra sua, mas pelo significado que ela me transmitia. «Como pode ele saber?» pensei. No meio daquela composição e talvez imperceptível a muita gente, eu não conseguia tirar os olhos de um olho que me fitava. Ei-lo! Só me aparecia em sonhos, ou melhor, em pesadelos, mas agora estava ali, acusatório e perdido. Aquele olhar que me perseguia desde sempre e fazia tão parte do meu ser que já não imaginava a minha vida sem ele.

Não sei bem como veio ali parar, possivelmente alguém a abandonou, ou então, perdeu-se de casa. Rondava a rua para baixo e para cima, e dormia à entrada das portas dos prédios. Era preta e branca, ou branca e preta, pois tinha umas manchas pretas que lhe adornavam o corpo. Tinha também os olhos mais meigos que alguma vez me tinham olhado. Um dia fiz-lhe uma festa, e aquele ser aninhou se aos meus pés de criança. Já não devia ser muito nova mas também duvido que fosse muito velha, devia portanto estar na meia-idade dos cães. Segundo a minha avó, notava-se que tinha sido mãe, o peito saliente e descaído era sinal disso mesmo, e, pobrezinha, estava sozinha.
– Oh pudemos ficar com ela? Perguntei eu ansiosa.-
– Não! – responderam me. – Está fora de questão, vamos mudar de casa e os novos senhorios não querem animais.
Não ficaram com ela, mas baptizaram-na de Laika.
– Laika! – chamava o meu pai quando a noite saia.

Alimentava-a e depois ela seguia-o até ao café. Ficava cá fora, à espera, enquanto ele lia o jornal e depois seguia-o até casa. Ele subia a escada e ela ficava em baixo aninhada, a dormir. Ele achava-lhe piada creio. Dizia:
– Parece uma pessoa, de tão esperta!
Mas nada fez para lhe procurar dono, ou pelo menos foi essa a ideia com que fiquei.
Estávamos de mudança. Eu, da varanda de um segundo andar, observava os homens que faziam todo aquele ritual de ir e vir carregando caixas e móveis. Carregavam as nossas coisas para a carrinha que me parecia enorme e estava estacionada à porta de casa. Não me apetecia nada mudar de casa e de cidade, mas lá teria de ser. Laika também observava.
Já era noite quando entramos todos no carro. E o animal também queria vir.
– Oh não! Ela vai correr atrás do carro – disse o meu pai.
Então, Laika entrou e aninhou-se aos meus pés, no banco de trás.
– Por que a deixas-te entrar se não a vamos levar? – perguntou a mãe.

Eu devia de ter uns cinco anos, pois sei que foi com essa idade que mudamos daquela casa, e o meu coração batia muito forte de nervosismo e antecipação, como se houvesse uma luz de esperança que Laika ficasse connosco. Não me lembro o que o meu pai respondeu, só me recordo que uns metros a frente o carro parou e ele convidou-a a sair.
– Porquê, papá? Onde é que ela vai?
– Está ali um amigo meu que vai ficar com ela. Nós não pudemos, ela é muito querida e tal e eu também queria muito... mas a vida... ahh a vida nem sempre é como queremos, tu não entendes ainda, mas um dia vais entender.
Laika saiu então do carro e eu olhei em redor aflita.
– Mas eu não estou a ver ninguém a chamá-la, as pessoas passam e ninguém a chama! Papá! Oh não! Laika! Laika! – e desatei a chorar!
O carro começou a andar e Laika ficou para traz.
– Sónia, não chores, assim como eu gostei dela alguém mais irá gostar, esta cadela parece uma pessoa de tão esperta... mas nós... nós não podemos ficar com ela.
Laika ficou para trás, os seus olhos meigos e perdidos olhando o carro. Eu olhava-a a chorar enquanto o carro se afastava. Sentia-me mal, muito mal. Como podia eu admitir uma coisa daquelas?

 


– Chama se Laika em memória da primeira cadela que foi à Lua! – explicou-me.
– Foi à Lua papá? Sozinha? Deixaram a cadelinha sozinha ir à lua?
– Deixaram claro, em nome da ciência! Era a primeira vez, não podiam ainda enviar um homem ou uma mulher, pois não havia garantias que regressassem a Terra!
– E a Laika voltou? – perguntei ansiosa.
Fez-se um silêncio, como se ele estivesse talvez a ponderar se havia ou não de poupar a criança àquela verdade.
– Não! – respondeu o meu pai. – A Laika ficou em órbitra no espaço, nunca mais voltou!
Tal e qual a da minha infância. Que nome tão maldito fora escolhido para o animal. Eu ansiava que alguém mais tarde lhe tivesse dado outro nome que não Laika, algum com melhor presságio. Ainda hoje, quando conheço um animal com esse nome sinto um misto de arrepio e ternura, mas na verdade esta recordação perdeu-se e só há uns quatro anos irrompeu pelas brumas, qual D Sebastião numa eternidade de nevoeiro que um dia reaparece, trazendo as Laikas da minha infância à deriva no espaço da minha memória

Sónia Alves, Estocolmo, Setembro/Outubro 2013


domingo, 6 de outubro de 2013

«A infância dura mais que a vida inteira»

Numa colagem de memórias, Sónia Alves evoca o passado e vai à raiz do nome, em textos corajosos, de uma grande e comovedora sensibilidade.




As partidas da memória

Tive alguma relutância em escrever sobre mim e isto por vários factores. Um deles é certamente o facto de, ao escrevermos sobre nós ou melhor acerca daquilo que se passou no decorrer das nossas vidas, envolvermos outras pessoas. Quer queiramos quer não, faz parte do processo. Uma vez, quando estava na biblioteca de Estocolmo para devolver alguns livros, assisti por mero acaso a uma entrevista com a escritora Rebecca Walker. Eu nunca tinha ouvido falar nela, mas sim na sua mãe, Alice Walker, pelo que a presença de Rebecca, que viajava a dar cursos de escrita após o lançamento do seu livro autobiográfico, despertou-me a atenção. De acordo com a escritora, a mãe tinha deixado de lhe falar por uns tempos porque ficou bastante perturbada quando a sua autobiografia foi publicada, bem como outros membros da família que acabaram por acusá-la, entre outras coisas, de injusta e mentirosa.
 
Creio que isso deve acontecer com certa regularidade.

Outro dos motivos da minha renitência prende-se com o facto de a memória nos pregar rasteiras. Nos seus recantos, as recordações assumem outros contornos e cores que, uma vez invocados e transcritos, parecem perder a forca que antes tinham aos nossos olhos.

Finalmente, e até há bem pouco tempo, julgava que não tinha quase nenhumas memórias de infância, pois só me recordava de pequenas imagens fragmentadas e incoerentes como nos sonhos. Depois, quando comecei a pegar nas poucas fotografias e objectos antigos que restaram – mudámos muitas vezes de casa e a minha mãe tinha por hábito desfazer se das coisas –, elas foram voltando de mansinho.
 

O meu nome é Sónia

O meu nome é Sónia e nasci em Lisboa. Sou filha de pais Portugueses. Foi a minha mãe que o escolheu, inspirada numa das personagens de um livro que leu quando estava gravida de mim, Crime e Castigo de Fyodor Dostoyevsky. Creio que estava mesmo destinada a ter um nome russo, pois mais tarde, ela disse-me que também se chamava Sónia a mulher de Tosltoy que deu igualmente esse nome a uma das personagens do seu Guerra e Paz. A minha mãe também me contou que, quando estava grávida de mim, teve alguns problemas políticos. Afinal, eu ainda nasci em ditadura, um ano antes da chamada Revolução dos cravos.

Uma vez, no jardim do Príncipe Real, chorou tanto que disse ao vento:

– A minha filha há-de nascer com a bandeira vermelha.

Nunca lhe fiz perguntas acerca deste episódio talvez porque soubesse qual era, na época, a sua ideologia. Mais tarde, ela própria admitiu a sua desilusão com algumas políticas soviéticas, ou pelo menos pelo modo como foram, e nas suas próprias palavras, «usadas, aplicadas, confundidas, alteradas». A ironia disto tudo é que, no decorrer da minha vida já viajei sozinha para vários destinos, mas sempre senti a maior relutância em aventurar-me sozinha pela Rússia, para não falar pelas antigas Republicas Soviéticas. Porquê? Não consigo explicar isto, racionalmente. Contudo, na minha cabeça, imagino-me com alguma frequência a viajar no comboio transiberiano, a embarcar em São Petersburgo, a parar varias vezes no decorrer do percurso, a sentar-me junto de um lago algures na Mongólia, de termo de chá na mão e a sair uns dias depois em Pequim.

 

A infância dura mais que a vida inteira

Há uns meses, aconselhada por uma amiga, fui a uma reunião dos alcoólicos anónimos para familiares e amigos de pessoas que sofrem ou sofreram de alcoolismo. «Não importa que já tenha passado», disse-me ela. «O que tu viveste, pensaste e sentiste na infância molda mais e condiciona mais o teu presente e futuro do que possas imaginar». Foi então que me lembrei também de uma frase da escritora espanhola Ana Maria Matute durante uma entrevista:

– A infância dura mais que a vida inteira.

Então, agarrei na minha vergonha, coloquei a numa gaveta imaginaria e lá fui com a minha amiga ao tal primeiro encontro. No grupo, estava uma rapariga de cabelo escuro como o meu.Senti que o rosto dela me era familiar e pensei, «talvez seja portuguesa ou espanhola»:

– Olá, o meu nome é Sónia – disse ela –, sou de São Petersburgo e estou aqui porque o meu pai é alcoólico.

Já tínhamos duas coisas em comum, além do cabelo escuro.
 

Ai Mouraria!

Nasci no bairro da Mouraria. Fui lá só para nascer, pois nunca ali vivi, mas mudei tantas vezes de casa que dei por mim a pensar, no Verão passado, que não conseguia imaginar nenhum outro bairro em Lisboa onde pudesse ter nascido. Não por pensar que viver na Mouraria é fácil. As casas são pequenas e há falta de privacidade, coisas, para mim, difíceis de suportar. Mas há algo neste bairro que tem a ver comigo, pelo que, no último Verão quando estive em Portugal, visitei demoradamente a Mouraria que eu conhecia tão mal. Numa dessas visitas, num final de tarde, sentei-me nas escadas de pedra de uma daquelas ruas tão antigas, e senti as lágrimas correrem-me pela cara abaixo. Percebi então e finalmente, que tudo na minha vida tem a ver com sobrevivência. Nao a duríssima sobrevivência que alguns sobreviventes referem, mas a minha tentativa de resistir num espaço fisico que considero agreste e bárbaro, o mundo, tentando ao mesmo tempo tentar manter uma certa dignidade, e conservar os princípios que considero essenciais, sem os quais nem eu própria me suportaria.

Sónia Alves, Setembro 2013, Estocolmo

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Entre o riso e o choro

O belo texto poético de Carla Lemos


I - DEZASSETE
 
Sou adolescente.

Adulta pelas contas da natureza humana.

Espero que alguém perceba a razão pela qual o meu corpo adoeceu em pouco tempo e rapidamente me atirou para uma cama, sem força para viver a vida que me pertence.

Um instante mudou a minha vida, e com ele a possibilidade de não sobreviver.

Aproveito esse momento de solidão para rever dezassete anos de vida.

Curiosamente parece-me uma eternidade de vida, o que me deixa feliz por perceber que foi de alguma forma bem vivida.

É impressionante a lucidez com que revejo cada dia.

E de repente sinto uma enorme necessidade de analisar a vida e todo o seu sentido, e chegam-me os “porquês”  que não tive em criança.

Começo a perder uma certa identidade física, aquela que há tão pouco julgava ter criado.

Por outro lado revela-se uma percepção de tudo o que me rodeia, da integridade do ser que sou, e do que faço parte, que brilha dentro de mim como eu nunca tinha imaginado possível.

E aqui estou, um nada de mão em mão, entregue a todas as possibilidades, à espera de mais vida.

Sobrevivo.

À última chamada, eventualmente...

Talvez sobreviva à importância da vida.

Àquela vida que não sei o que seria por não a ter vivido, restando-me a outra à qual resisto desde então, que me mostrou o plano que eu nem sequer tinha traçado.

Que plano é esse que nos pergunta a toda a hora se escolho entre o riso e o choro?

Ah que pergunta...

O riso, claro!



II - ODEMIRA

Odemira é o Alentejo para onde já muito pouca gente vai.

Terra bonita, arranjada, que me recorda aventurosas viagens de juventude, quando os transportes não eram  muitos, mas esperávamos pelo que havia e lá íamos vivendo a vida, sem grandes exigências, sem carros, nem comboios de alta velocidade, e as viagens para a Europa não tinham valores low-cost.

A vida era para ir passando e ir vivendo e ir sonhando.

Então saí de Carcavelos em bicicleta.

Com um mapa e um caderno de apontamentos, duas bolsas laterais de mantimentos e pouca roupa, parti convicta.

O caminho foi sendo percorrido à beira-mar, num esforço descomunal, apenas seduzida pela aventura e pelo entusiasmo daquela liberdade que sentia bater-me na cara em forma de brisa.

Toda aquela natureza verdejante da serra de S. Luís, e um silêncio apenas quebrado pela corrente da bicicleta e algumas pedaladas, me levavam para uma viagem interior palpitante, e deixava-me um sorriso preso na cara.

Era uma altura em que dar parte fraca era desistir, era arranjar uma cabina telefónica e chamar a pagar no destino para pedir que me viessem buscar porque não aguentava mais

E parte fraca nunca foi o meu forte, por isso seguia em direcção ao esgotamento mais gostoso do mundo.

Sentia-me perfeitamente fundida neste espaço físico e psicológico que me acompanhou por muitas milhas percorridas.

A liberdade só é boa quando conseguimos integrá-la.

Assim seja sempre.

Carla Lemos, Lisboa, Setembro 2013



Créditos de imagem: Rota Vicentina, Serra do Cercal/São Luís.

domingo, 22 de setembro de 2013

Elda não quer ser grande...

Por Elda Aguilar Rainho
 
Quando tinha quatro anos a caminho dos cinco, pois só fazia anos no final de Setembro, os meus pais, recém-chegados a Angola, acharam por bem colocar-me na pré-primária para melhor me inserir e socializar. Detestei a ideia. Achei que não era ainda altura para sair de uma casa aonde acabara praticamente de chegar, e não me apetecia nada deixar a companhia da minha Alice, a empregada que tomava conta de mim desde que era bebé.

 
Então, pus-me a olhar para o meu irmão mais novo do que eu dois anos, sentadinho na sua cadeirinha de passeio e sem ter que ser grande para ir para a escola, e pensei que se ainda andasse de cadeirinha como ele também não precisaria de ir á escola. Continuava a ser pequena e a poder ficar em casa. Então, disse á minha mãe que só iria para a escola se fosse na cadeirinha do  meu irmão!

"But Mother I don't want to grow up"

Claro está que esperava que a minha mãe me dissesse que não...mas surpresa das surpresas respondeu-me que sim! Com certeza que podia ir á escola como queria, e assim sendo lá fui eu de bata amarela às riscas toda encolhida na cadeirinha do Ruca, mas sem dar parte de fraca, com a empregada de cor a empurrar-me. Quando por fim chegámos ao Colégio lá tentei sair duma forma mais ou menos digna e direita, mas foi quase impossível de tão encaixada estava. Não tive sorte nenhuma no artifício que escolhi para me baldar ao primeiro dia de aulas e de obrigações dos grandes. Ainda por cima, a partir desse dia estas nunca mais pararam!

sábado, 21 de setembro de 2013

"As manas catatuas, quem leva uma leva as duas”.

Universos mágicos e memórias avassaladoras.

Por Maria Teresa Figueiredo
Nunca pensei que fosse tão difícil escrever sobre mim. Deixar preto no branco, sem floreados e personagens, a minha origem, a complexidade das minhas memórias de infância, a base do que sou hoje. Não me darei a conhecer na totalidade e nem mesmo todas as minhas memórias de infância porque nem todas estão devidamente relembradas e trabalhadas no meu íntimo ao ponto de as transpor e escrever. Nem darei a conhecer as outras, não por vergonha, mas pelo medo de não as conseguir dignificar e homenagear como pretendo. E como as recordo.

Irei sim, dar a conhecer o que tanto procuro amarrar e colar no coração todos os dias, com medo que se perca. As memórias da minha infância até aos cinco anos. A recordação dos que me trouxeram a este mundo até ao dia que um deles optou por mos retirar!

Ticas! Alcunha que resultou da dificuldade de minha irmã mais velha apenas um ano e meio, em dizer o meu nome, Maria Teresa. Depois, fui-me apercebendo da existência do nome de família “Graciosa”, pelas vezes em que tias me agarravam as bochechas sardentas e me diziam que só podia ser Graciosa! E assim fiquei até hoje, a Ticas Graciosa para os amigos. Haverá outra razão que me ajudou a acentuar o Ticas e desligar do Teresa, mas serão outros contos de memórias mais avançadas.


Adrião - Escadaria de acesso ao castelo de Belver, no concelho de Gavião, em Portugal
Os meus pais morreram quando eu tinha apenas cinco anos. Nessa altura, vi-me obrigada a trocar o ar seco e a paisagem vasta e agreste da Beira Baixa em tons amarelados, recheada de magníficos penedos e imponentes sobreiros, pelo clima ameno e menos campestre da Beira Litoral, onde fui viver para um palácio cujos muros nem sempre conseguiam esconder outras casas mais pequenas, mas também com a sua beleza, embora distinta. Aí, vivíamos num casarão onde podia correr para ir à casa de banho e esconder da minha avó todos os pães que não conseguia comer, até ao dia em que era apanhada e tinha de os comer a todos em sopas de leite, como castigo. Tive a graça de nascer e crescer no seio de uma família enorme, dez filhos (os nossos tios), vinte cinco primos e já bastantes bisnetos que, entre quintas e cavalos, cães e touros, bicicletas e cavalgadas, nos fomos conhecendo, entendendo e entrelaçando!

Perdi os meus pais mas ganhei uma ligação especial com os avós, tios e primos. Cada um acabou por ter no meu coração um lugar especial. Ainda relembro com prazer quando nos chamavam a mim e à minha irmã, por nesse tempo sermos unha com carne, as “Ticas” ou “As manas catatuas, quem leva uma leva as duas”. 

Da minha infância e sem grande esforço de memória, facilmente recordo o Natal em que recebi a minha bicicleta azul e branca com rodinhas atrás. Lembro-me de estar no Páteo grande da quinta envolvido pelas casas, picadeiro, boxes para os cavalos e com larga vista para as pastagens repletas de sobreiros com o cabeço em segundo plano recheado de penedos. Foi neste Páteo, onde ainda se conseguia avistar uma das barragens, a mais pequena, que, empurrada e ajudada pelo meu pai dei as primeiras pedaladas na bicicleta que tanto me acompanhará nos anos seguintes. Mais tarde, e já na nova vida, mesmo sem travões desbravava caminhos e acelerava nas corridas entre primos. Rio-me e volto a ter a mesma sensação de medo e borboletas na barriga quando recordo a brincadeira que fazíamos com os primos mais velhos, de correr atrás de um pónei no meio do descampado, até este se zangar e cavalgar atrás de nós para nos morder. Tinha o seu feitio muito especial... E a sensação de ser puxada pela minha prima Maria – mais velha que eu, com a peculiaridade de ter um olho azul e outro verde –, ainda hoje se faz sentir.

Sentia-me livre naquele ambiente. Os dias passavam-se entre bezerros, passeios a cavalo na Toma, égua do meu pai, que era tão mansa que nos deixava montar para sermos passeadas à trela. Os cães eram nossos amigos, sempre cheios de paciência, e com eles partilhava outras brincadeiras. Agarrava-os, trocava os chupa-chupas, punha-lhe óculos de sol, tirava-lhe os óculos de sol. Não tinha problemas com a roupa, se sujava ou não sujava. Lembro-me apenas que brincava. Recordo com carinho e saudade o aconchego de me enroscar à noite no sofá, entre os meus pais, e a vontade que ainda hoje sinto de voltar atrás para voltar a ser a intrusa entre os dois, naqueles momentos mágicos. Recordo ainda as viagens no Citroen encarnado, com os meus pais e a minha irmã, e de adormeceremos a ouvir as músicas dos Gipsy Kings que ainda hoje me emocionam porque me trazem um bocadinho deles,  e porque sei que em tempos as ouvimos todos juntos!

Depois, havia os piqueniques entre os sobreiros e a pastagens, com os meus pais e amigos. As correrias e brincadeiras e mais uma vez a sensação de liberdade! Os jantares nas mesas circulares de pedra unidas entre si que, em conjunto fazem uma mesa enorme. Num deles e já depois de escurecer, ao tentar ir buscar fio dental para limpar os dentes, inclinei o armário fino e alto da casa de banho, sem me aperceber que no topo deste estava um autoclismo de loiça e que foi directo à minha cabeça. Chorei e chorei e, nessa altura, o pátio ainda me pareceu maior, pois de repente o meu lugar seguro deixou de o ser até conseguir reencontrar, entre a pouca luz e os muitos convidados, o colo, o conforto, os braços da minha mãe! Evidentemente, fui para o hospital, levei muitos pontos e chorei imenso. Ao meu lado, estava um rapaz também com os seus cinco anos que enfiara um amendoim numa das narinas e não conseguia retirá-lo! Aquela visão ainda me fez chorar mais e, de barriga para baixo com uma mão dada ao meu pai e a outra à minha mãe, chorei e chorei. A cicatriz ainda continua e quando a sinto é bom relembrar aquelas mãos comigo.

O que gostei da noite em que, suponho devido ao calor que se faz sentir naquela zona da Beira Baixa no verão, 40ºC, secos e sem qualquer aragem de ar fresco, fui com os meus pais, irmã e mais alguém que não me recordo, colar placards de uma tourada pelas paredes da vila. O cheiro da tinta, a adrenalina de estarmos ali de noite, o vento que apanhávamos na carrinha de caixa aberta, o delírio e o encanto daqueles momentos, devem ser outros tantos motivos para ter retido esta memória. E outras, como as noites em que o meu primo José Maria, depois de caçar aparecia em nossa casa. E eu, que já estava na cama, levantava-me para ir espreitar aquele “homem” sentado no nosso sofá com uma faca à cintura. Na altura tinha medo daquela figura e o medo criava-me a curiosidade suficiente para arriscar sair da cama e levar um castigo. Uma outra recordação carinhosa traz-me de volta as vezes em que os meus avós iam passar uns dias à Beira Baixa. Nessas alturas, a avó, sempre prática e despachada, contornava-nos os pés sobre numa folha branca com uma caneta, para, da próxima vez que voltasse, nos trazer sapatos. Mal sabíamos então que poucos anos depois o destino aproximaria muito mais ainda os nossos corações para que nos amássemos como mãe e filha.

Estas e outras lembranças, mais penosas e ainda por aprimorar até poderem ser registadas com a dignidade que merecem, são algumas das muitas que a criança que eu fui, até ao dia 13 de Dezembro de 1991, guarda a sete chaves no segredo do coração. Por agora, deixo aqui algumas.

Haverá outras, tantas e tantas, das várias fases da minha vida, que irão serão registadas, talvez em forma de romance, talvez fantasiadas. Para poder introduzir-lhes as presenças maravilhosas das fadas e dos duendes do mundo mágica a que todas, ou pelo menos quase todas, as crianças têm acesso.

Lisboa, Setembro 2013

Aprender a ler, a escrever e a contar

A infância tropical, numa escrita envolvente, cheia de imagens que cativam, pequenas ironias, e de leitura irresistível...
por José Saraiva

Entrávamos em 1971 e, em Portugal, a imprensa do mês Janeiro dava nota da falta de vacinas para o sarampo e do reforço de mais 500 táxis para a cidade de Lisboa. O ano correu célere e o verão não terminaria sem que eu iniciasse mais uma etapa de renome. Com efeito, alguns dias antes de cumprir os sete anos de idade, dei os primeiros passos na senda dos estudos e do conhecimento. O ano lectivo de 1971 - 72, marcava, assim, o início da minha actividade académica, registando-se como o meu primeiro dia de aulas, a segunda-feira, de 13 de Setembro de 1971.

Ao mando da voz paterna, apresentei-me na escola primária, em Luanda, junto ao Quartel-General [onde costumava assistir à circunspecta cerimónia do içar da bandeira nacional], aos olhos vivos e pequeninos da «senhora professora D. Isilda», a «mãe educadora» que, provavelmente pelo facto de nunca ter tido filhos, pela falta de paciência e pela idade avançada, adoptou, para «civilizar os ignorantes e a mestiçagem», uma eloquência de pendor maioritariamente castrense, autopromovendo-se, por distinção, nas atitudes e na retórica – a sargento. Dei, portanto, por mim consagrado à indústria das ideias e – à recruta. Nas aulas, exigia-se, para bem do espírito e do corpo, silêncio, cabeça aprumada e atenção ao quadro.

 
Assim, submisso, de bata branca de gola deitada, calções azuis pelo joelho e unhas cortadas pelo sabugo, depois de cantado o hino nacional e inscrito no mapa escolar, comecei, «a toque de caixa», a aprender a ler, a escrever e a contar.

Entrava-se na escola depois de passar pelos ferrolhos austeros de um pesado portão de ferro, cujas setas pontiagudas lhe acentuavam a sinusóide da sua linha superior, a que se sucedia uma passagem longitudinal até às escadas, que, subindo, afunilavam até à porta principal. Para a direita, as secretarias, as arrecadações, a sala de professores, a biblioteca e os gabinetes da Direcção. Para a esquerda, as salas de aula. A minha, caiada e limpa, ornava-se com um grande quadro de loisa cinza, sobre o qual a professora fazia deslizar, ciciosamente, os coloridos paus de giz, fazendo aparecer e desaparecer desenhos e alfabetos. Dois enormes mapas rectangulares, um de Portugal e outro do esqueleto humano, atapetavam equidistantes a parede oposta à das duas largas janelas, por onde se arremessavam copiosamente os reflexos do sol, as vozes da rua e os ruídos do trânsito. As cadeiras perfiladas com as mesas de estudo de tampo inclinado, as enormes molduras de massa, a imitar madeira entalhada, com as fotografias de Salazar e de Américo Tomás, ladeando o crucifixo ao alto da parede, centrado com o quadro de loisa, e o estrado elevado, que reforçava a autoridade da cátedra, e onde se estabeleciam a secretária e a cadeira, o ponteiro e a régua, completavam o resto da fisionomia daquela austera «casa da ciência».

O recreio, às traseiras, com um acesso central e outros dois pelas duas largas portas, nascidas, cada uma, do seu respectivo corredor interior, era constituído por um espaçoso recinto de cimento, vedado lateralmente por uma rede de arame grosso, terminando, abruptamente, ao topo, num muro de tijolo caiado, com cerca de 2 metros de altura e que servia, ao mesmo tempo, de encosto para os pés e de meta para as corridas. Contíguo à área das salas de aula, um telheiro estendia-se a todo o comprimento do alçado, abrigando uma correnteza de bancos de madeira castanha, com espaldas de ferro, que serviam ao alívio dos cansaços, à protecção da canícula e à sentinela das contínuas.

No segundo dia de aulas, quando se tratou da distribuição dos lugares para o ano inteiro, por uma insondável inclinação natural, disputei acerrimamente com o Osvaldo, já «companheiro e amigo», a última carteira, da última fila, junto à última janela – perdi, calhando-me ficar sentado à sua direita. Fixados os assentos, iniciámos, para preencher o fastio das lições, outra actividade, particularmente indicada para o desenvolvimento da visão e dos reflexos – apanhar moscas. Ganharia quem apresentasse mais insectos antes do almoço, apurando-se o vencedor antes de ir para casa, depois de acumuladas as quantidades, cuidando cada contendor de se certificar de que o adversário não fazia transitar as mesmas moscas, da manhã para a tarde. As varejeiras, os tavões e os moscardos valiam por duas. No entanto, a avidez dos gestos para abater alguns dípteros, cujas imprevistas e caprichosas evoluções implicavam um maior ímpeto capturador, traiu-nos, e a professora Isilda, de sobrancelha circunflexa e dedo inquisidor, quis saber o que se passava «lá atrás». Acabou o «campeonato» e nós, quais vendilhões do Templo, expulsos da sala de aula. Começávamos bem.
 
Uns dias depois, a festa de anos do meu sétimo aniversário, a 22 de Setembro de 1971, ficou marcada por uma actividade inesperada. A minha mãe organizava sempre um lanche recheado de apetites variados, com sumos de fruta naturais, folhados, bolos sortidos, salames, mousses e outras iguarias, que, numa mesa rectangular, colocada no quintal à sombra da palmeira, permitia que nos divertíssemos de barriga cheia. Seríamos, ao todo, uns vinte, constituindo os matraquilhos uma das principais atracções do evento, com vários campeonatos a decorrer em simultâneo, com os vencidos a produzirem várias acções de protesto. A tarde esvaía-se, assim, pela sua morna calidez, quando, de súbito, o meu irmão dá o alarme:

O Jacó desapareceu!

Confirmada a sua deserção do poleiro e de casa, saímos todos, em préstito, para a rua, à procura do papagaio, acompanhando o movimento colectivo de busca por um sem número de assobios, chamamentos e outras onomatopeias, destinadas a cativar a ave desertora. Naturalmente, o desusado ajuntamento de crianças e o frenesim dos sons, fizeram acudir vários vizinhos à porta, que, depois de saberem do sucedido, também se foram juntando ao grupo de voluntários. Cerca de hora e meia depois, foi o ingrato encontrado a depenicar zelosamente bagos de arroz cozido, num quintal próximo. Reconduzido à origem, ficou, nessa noite, preso ao poleiro e no dia seguinte a minha mãe tratou de lhe cortar um pouco mais as asas. Para compensar o empenho de todos, ficou agendada uma 2.ª edição da festa de anos, e do lanche, a realizar no sábado seguinte, dia 25 de Setembro.
 
Entretanto, na escola, enquanto progredia nas letras e nos números, o meu comportamento arredio e a imaginação incontida para a traquinada, chegavam-me, quase dia sim, dia não, à palmatória educativa da professora Isilda e ao bofetão admoestador da D. Lucinda e da D. Conceição, contínuas vigilantes do recreio. Supostamente, a acção directa destinava-se a refrear a minha solta impudência da mocidade e o apego fervoroso às cenas de pontapé e pedrada certeira com que presenteava, no recreio, os filhos do capitão Samuel, militar em comissão de serviço. Do acto ao boato, sucedeu o esperado: em fins de Novembro [de 1971], a Direcção da escola convocou formalmente os meus pais para um «encontro». À altura, os pais acompanhavam os filhos no primeiro dia de aulas e ao exame da 4.ª classe. Fora destas ocasiões, apenas situações excepcionais ou problemas graves os faria lá comparecer. Assim, confundindo os meus elevados dotes de espírito e sobra de energia, com a condenável propensão para a diabrura, declararam-me, sem direito a contraditório, «indomável e terrível», cuja irreverência díscola reclamava urgentemente «mais educação». Presumo que não seja difícil adivinhar o que aí vem. De imediato, fui severamente prometido ao castigo inflexível e à sova rigorosa, se voltasse a repetir, – uma única vez que fosse!, qualquer uma das insolências e zaragatas de que tinha sido acusado. O meu pai, apopléctico, explodia,

– Uma vergonha! Um meliante! Um malandro! Onde já se viu termos um selvagem cá em casa!

Fiquei capaz de esganar aquela súcia de miseráveis esbirros delatores e de os enrolar em papel de mortalha, mas pareceu-me mais razoável levar a sério a advertência paterna, mormente no que dizia respeito ao articulado da sua segunda parte, onde claramente se referida «sova rigorosa», pelo que a minha índole de alegado rufia cedeu bruscamente a um comportamento mais prudente e subtil, presumivelmente para meu bem e, de certeza, para descanso dos imbecis descendentes do capitão Samuel. Embainhei, portanto, a espada.
[continua...]

Luanda, Setembro, 2013

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Clarinha vai para a escola


Por Clara F.
 

Entrei com quatro anos para “O Mundo Infantil”. Era um colégio até à 4ª classe. Ficava numa moradia na avenida Gago Coutinho, muito perto de casa dos meus pais.

O meu irmão mais velho – já era tão grande! andava ali na 4ª classe; o meu outro irmão entrou ao mesmo tempo que eu, mas foi para a infantil dos cinco anos, a dos crescidos.... E eu sentia-me razoavelmente segura pois os meus dois irmãos andavam no mesmo colégio. No entanto fomos logo separados por turmas e salas, e assim sendo, não tinha grande contacto com eles. Nas aulas não nos víamos e como o recreio era relativamente pequeno, os horários dos intervalos eram escalonados por classes.

Foi logo algo que não me agradou.... Qual era o problema de estar com os meus irmãos? Como é que algo que me parecia tão natural, se tornava proibido? Infelizmente, do alto dos meus quatro aninhos anos, nada pude fazer...

Por outro lado, achei desde logo que as minhas colegas me eram impostas e como tal olhava-as como umas estranhas e não lhes dava grande confiança, preferindo manter o meu ar de “orgulhosamente só”. Não havia o direito de me impedirem de estar com o meu irmão, só porque era mais velho. Como tinha de mostrar o meu descontentamento e já que não podia fazer mais nada, pelo menos não colaborava.
 
Então, as minhas pequenas condiscípulas começaram a fazer grupos entre si, enquanto eu ia sendo posta de parte, e pondo-me de parte também, aferrada à minha teimosia. Um dia, porém, resolvi ir brincar com elas, pois estavam a saltar à corda e também me apeteceu muito brincar. Mas como sempre me exclui do seu convívio, responderam-me prontamente que não. Zangada, agarrei na corda com as duas mãos e não as deixei saltar. Se eu não saltava, elas também não! Depois, sentei-me triunfante no muro do recreio com a corda nas mãos em ar de desafio.

 
Espantadas, nem estavam a acreditar no que se passara, e visto que não havia forma de me demoverem sem briga, foram chamar a autoridade. Neste caso, a vigilante. Mas a vigilante não teve mais sucesso do que as minhas pequenas companheiras porque eu continuei a insistir que não largava a corda pois achava que elas teriam de ser penalizadas por não me terem deixado brincar com elas. Desesperada, a vigilante foi chamar uma autoridade superior, a tia Lurdes que era a minha professora. Com esta tive de ceder. Até porque ela se aproximou de mim e amarrou-me as mãos com a mesma corda que tanta agitação estava a provocar. E assim fiquei de mãos amarradas durante o recreio inteiro.

Para as outras meninas o meu castigo foi o delírio, mas no meu íntimo sentia que, apesar delas estarem tão vitoriosas, a vencedora tinha sido eu. Afinal, elas também não tinham podido brincar!
 
Cheguei a casa e remeti-me ao silêncio, consciente de que se os meus pais soubessem o que se passara, seria alvo de novo castigo e para mim já chegava de castigos para um dia só. E como das outras vezes, fui para o meu quarto onde mergulhei num mundo só meu, onde me sentia protegida, compreendida e amada. Nunca questionei a atitude da professora. Acreditava que, sendo ela mais velha agia correctamente, de acordo com os padrões do mundo em que eu vivia e no qual me sentia profundamente desajustada.
 
Cerca de um ano mais tarde, no decorrer de uma feia briga com o meu irmão do meio, ele foi contar o que acontecera aos pais, na esperança de estar a revelar algo de muito grave que me custaria o castigo da vida afectando também gravemente a minha reputação perante os nossos progenitores. Dessa forma, julgava ele, seria exemplarmente vingado. Fiquei muito sentida, pois tínhamos feito um pacto de silêncio sobre esse triste episódio que ele tinha quebrado. Eu nunca ousaria contar o segredo dele. Foi um golpe muito baixo!!!
 
Mas então, surpresa das surpresas!!!!, a minha mãe, quando ouviu a história, reagiu de uma forma completamente surpreendente. Profundamente indignada com o que se tinha passado, foi ao colégio e exigiu falar com a professora. Que coisa mais estranha, pensei. Afinal não estava sozinha no meu mundo. Afinal, tinha uma aliada na minha mãe, que até aí nunca a tinha sentido como tal! E assim, pela mão dela entrei na escola,  sentindo-me segura e invencível. Ia finalmente poder explicar as minhas razões. Nesta altura, já tinha feito algumas amizades, mesmo entre as minhas colegas a quem eu tinha tirado a corda, por isso o meu confronto direcionava-se quase em exclusivo à professora que me castigara de forma tão cruel. Tudo o que queria era enfrentá-la. Aflita, ela tentou desculpar-se, procurando desvalorizar o sucedido, mas quando sentiu a minha força passou a tratar-me com mais respeito, não fosse eu voltar a queixar-me aos meus pais ... amigos da directora do colégio.
 
A minha entrada para a escola não representa, portanto, um marco feliz. Passar um dia inteiro fechada numa sala, sujeita a horários rígidos para entrar e para sair, era para mim um verdadeiro suplício. Para reforçar estes sentimentos, os muros e as grades apresentavam-se como outras tantas barreiras a condicionar enormemente a minha liberdade provocando-me um sentimentos de asfixia. Não foram poucas as vezes em que atirei os sapatos para fora dos muros, alegando com o ar mais inocente, que me tinham caído, apenas para poder sair do colégio sozinha e acenar, do lado de fora, às minhas condiscípulas que me olhavam com um olhar de admiração que eu simplesmente adorava. Era o êxtase!
 
Sentindo-me diferente pois OUSAVA, comecei a ser admirada pelos meus colegas, rapazes e raparigas, já que fazia coisas que, para eles, eram impensáveis. Comecei assim a ter muitos amigos rapazes, que alinhavam comigo nas brincadeiras mais radicais, como trepar às árvores, dar cambalhotas nos baloiços andar simplesmente de baloiço não tinha graça nenhuma e muitas outras diabruras. Se havia alguma cena de pancadaria, lá estava eu a demarcar a minha posição. Chegava a bater em rapazes, (embora escolhesse sempre os mais fraquinhos) o que me dava um estatuto de durona e fazia com que os meus pequenos companheiros me olhassem como uma deles.

Isto dava-me uma extasiante sensação de poder...


Créditos de imagem: "MENINAS PULANDO CORDA", Óleo sobre telaAtelier de Orlando, Rogério e Luciana Teruz

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Como escrever um livro?

Como escrever um livro, dois livros, muitos livros?

Lendo. Lendo muito. Lendo todos os dias. Lendo como quem precisa de ler para respirar. Lendo como quem precisa de ler para estar vivo.

Isso, e escrever. Escrever todos os dias, como um oficio. Ter um caderno à mão, uma folha solta, ou um artefacto electrónico qualquer que conserve as nossas palavras. Depois, e de puro exercício sem esperar retorno, reuni-las em frases, em pequenos contos, a partir dos diálogos soltos que apanhamos no ar e na espuma dos dias para construir através deles uma história que já não é de ninguém, nem sequer nossa, porque nos foge do pensamento e temos de correr para a capturar com a rede das nossas palavras.

Um escritor faz-se disto e de muito mais. Da atenção plena e amorosa ao que nos rodeia. De instantes que se carregam no saco sem fundo das nossas erráticas recordações. Do oficio de escrever por obrigação de vida. Da paixão intoxicante pela palavra. Da dor que nos autoinfligimos quando, por inépcia, não a conseguimos moldar. Da caminhada sem descanso pelos mais recônditos lugares do pensamento.

Escrever é estar acordado mesmo quando se dorme. É recordar o que mais quisemos esquecer. É voltar à infância para  soltar pássaros aflitos que esvoaçam nas gaiolas escuras no interior da montanha onde garimpamos o ouro da palavra. É enfrentar monstros. Monstros de verdade, as nossas assombrações, as nossa feridas, as nossas vergonhas, os nossos medos.

 

Escrever  até às entranhas, é, muitas vezes, ir ao encontro do nosso inimigo maior. Aquele de quem fugimos desde o princípio dos tempos. E depois, deitar-mo-nos com ele, abraçando-o e beijando-o na boca, para além de todo o horror, até vermos que o seu rosto informe e o seu corpo de pesadelo são o nosso próprio reflexo no espelho da vida a dissolver-se num jorro de luz.


Créditos da imagem: Gustave Doré, lithographie de Barbe Bleue (1862), Contos de Pérrault,
retirado de http://commons.wikimedia.org/wiki/File%3ABarbebleue.jpg

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Memórias de infância: o peru de 1970

Por José Saraiva Augusto
[...]

Em Portugal, a primeira metade do mês de Dezembro de 1970, foi particularmente fria, com muitas localidades do território nacional a registarem temperaturas negativas e queda de neve. Do outro lado do Atlântico, em Angola, prosseguia a luta armada e apesar dos dias ensolarados, chovia copiosamente, fazendo jus à sua época, que duraria até Abril. Foi, mais ou menos, por meados daquele Dezembro que, convictamente, defendi a minha primeira causa.
Uns meses antes, por iniciativa da minha mãe, e concordância do chefe-de-família, foi decidido, ao jantar, experimentar a criação doméstica de aves. Havia vontade, ânimo, apetite e espaço de sobra no quintal e, portanto, parecia ser uma boa ideia poder passar a contar com boas refeições caseiras de frango e com ovos frescos para as gemadas e para as omeletas.

A família pensa, a obra nasce. Assim, planeadas e desembaraçadamente construídas as necessárias instalações, recorrendo à madeira de pinho, à rede de arame, à chapa de lusalite, a pregos com fartura e a marteladas generosas, estrearam o novo espaço três galinhas, um galo, um garnisé e um peru. Ora, à semelhança do que já tinha acontecido com o «Jacó», também a população do galinheiro foi brindada com um processo de identificação semelhante, exaustivamente debatido, ficando as galinhas, o galo e o garnisé, indistintamente, como os «Piupiu’s», e o peru, de forma perfeitamente inusitada, o «Gluglu». A capoeira ganhava, assim, um forte apego à 5.ª vogal do alfabeto.

Por razões, até hoje, ainda pouco esclarecidas, dos seis pioneiros «inquilinos» do restrito zoológico doméstico, ganhei especial afeição pelo peru. De penugem cinza, papada de avermelhadas verrugas carúnculas, monco descaído e um andar de saltimbanco desengonçado, não constituía aquilo que vulgarmente se pode designar por uma «ave bonita». Não obstante, estabeleceu-se entre nós uma ligação afectiva de cumplicidade e empatia, bastando, a prová-lo, que eu batesse com o amolgado e velho tacho da comida no chão, para que, pausando a sua ingestão diária de insectos, corresse, lesto, na minha direcção, preparando-se, submisso para o afago e insaciável para o repasto.

No dia 17 de Dezembro, quinta-feira, exactamente 67 anos depois de os irmãos Orville e Wilbur Wright terem logrado voar no seu aeroplano durante 59 minutos, iniciei as minhas primeiras férias escolares de Natal. Era o primeiro período de lazer depois de ter ingressado na escola e, portanto, estavam a ser muito apreciadas. A seguir ao pequeno-almoço, numa pausa da chuva, saí para jogar à bola, na rua, em frente ao portão de casa, com os amigos do costume, que ia chegando em catadupa. Num intervalo, por mero acaso, entrando, sujo e esbaforido, em casa para beber água, dei, de rompante, com a minha mãe num suspeito conluio com a nossa vizinha da frente, senhora africana de voz potente e seio farto, numa combinação secreta para «matar o peru para o Natal». Matar o peru?! Não podia ser! Perpetrava-se uma aleivosia infame.

Procurei, de imediato, tirar satisfações de ambas sobre a torpe combinação, subitamente descoberta, e sobre o maquiavélico plano para degolar o desgraçado do animal, «muito meu amigo e quase da família». De convicção estampada no rosto, pelejei, assim, intrépido e com afinco, para salvar o peru da pena capital a que tinha sido condenado, incluindo, nos meus argumentos, choros, súplicas e soluços. Em vão. Dois dias depois o peru desapareceu.


Acontece, com alguma frequência, ser a morte de um animal de estimação, um dos primeiros acontecimentos que confronta as crianças com a questão do «fim da vida». Nos primeiros anos, aquelas não assumem o nexo de causalidade entre o sofrimento e o carácter definitivo da morte, julgando-a reversível. Cumulativamente, por ser um assunto complexo, muitos pais, embora bem-intencionados, têm a tendência para preferir a utilização de eufemismos circunstanciais, procurando «protegê-los da dor». No entanto, as crianças, a partir dos 5, 6 anos, com a inteligência sensitiva que lhes é inata, adivinham facilmente quando se lhes está a mentir, sentindo-se, por vezes, traídas por aqueles em quem confiam. Neste sentido, adequando, naturalmente, a linguagem ao nível etário, é bom dizer-se a verdade, assegurando-se de que a criança fique sem dúvidas que não possa partilhar, levando o tempo que for necessário.

Deste modo, abreviando a história, a minha mãe, depois de amainada a excitação, calma e pacientemente, explicou-me a relação íntima que, desde o início, existiu entre os «habitantes do galinheiro», o lume, as panelas, o forno e a cozinha e, assim, ali, abrigado da chuva miudinha, que começara a cair, entre o longínquo cantarolar lamuriento da D. Domingas, a palmeira e os resplandecentes matraquilhos, aprendi uma importante lição de vida – o inevitável destino da capoeira, era o prato. Foi um momento pungente, o da interiorização da perda e do desaparecimento do «Gluglu» para sempre. No entanto, por via das excepcionais qualidades de imitação do «Jacó», ficou aquele ainda perpetuado por muito tempo lá em casa. C’est la vie.

Por volta dos sete anos, felizmente, contraí tosse convulsa.
[...]

créditos da imagem: Wagner Belmonte jornalismo, «A festa do Peru»

terça-feira, 9 de outubro de 2012

A minha primeira bicicleta




Por Carlos Scarllaty

Vivi a minha infância e juventude, entre as Avenidas Novas de Lisboa e o Campo Grande, que era um lugar maravilhoso, um verdadeiro campo, muito grande e muito verde, às portas da cidade. O espaço era interrompido, apenas, pelos caminhos de terra batida para se chegar ao lago dos patos, ou mais acima, a um outro lago ainda maior, onde se podia andar de barco a remos. As casas eram confortáveis, espaçosas e os terrenos eram enormes, divididos por muros baixos. Mesmo defronte da casa da minha avó, havia uma quinta enorme, cheia de árvores de fruto, flores, plantas, hortas... E um moinho de vento que fazia sair a água do grande poço para as regas. Nesse tempo, as ruas de Lisboa ainda não eram todas asfaltadas, mas sim calçadas com paralelepípedos de granito. Longe do centro, por exemplo no Lumiar, Lisboa parecia um cidade da província. Um ótimo lugar para a infância.

Diante da casa da minha avó, na rua de Malpique, onde eu ficava durante o dia, passava o homem do “gelado fresquinho” que me fazia correr mal ouvia tocar a sua buzina de fole de borracha. Recordo também o amolador, com a sua gaita-de-beiços, anunciar que afiava facas e tesoiras, e o homem dos barquilhos e das bolachas de baunilha. Na mercearia defronte, havia rebuçados e guloseimas que faziam a alegria da miudagem.

E nós, as crianças, atravessávamos a infância numa animação de tantas brincadeiras. Os quintais enormes das casas, com quintas que rodeavam a “nossa” rua de árvores frondosas, criavam um ambiente de felicidade. A minha avó Maria (paterna) era o meu Anjo da Guarda. Não me dizia que não a nada, e deixava-me brincar à vontade até a minha mãe chegar para me levar para casa. Parecia que o dia terminava mais depressa. Foi desta forma feliz que vivi a minha prolongada infância até os 7 anos, época que jamais vou esquecer.

Não vou dizer que foi por aqui que nasceu o meu desejo por andar de bicicleta. Seria romântico se fosse assim. Não, foi na aldeia onde nasceu a minha mãe, na Beira Alta, onde íamos de férias todos anos, que um primo, mais velho, me ensinou andar de bicicleta. Nunca tive muito equilíbrio, mas andava bem nas descidas... e o facto é que depois destas experiências voltei para a cidade com vontade de ter a minha própria bicicleta. Com os meus pais entenderam que ainda não era altura de a ter, comecei a dar as primeiras pedaladas nas bicicletas dos amigos.

Mais tarde tive então uma só minha, e com ela vivi uma série de acidentes sem gravidade, e alguns bem engraçados, que marcaram a minha infância. Quando tinha seis anos, alto e magrinho, esbarrei de frente com uma "bicicletona" que uma senhora bem encorpada conduzia pelos caminhos que circundavam as quintas do hipódromo, onde hoje fica a Cidade Universitária. Foi um desastre! Caí no chão, cheio das pedrinhas soltas do cascalho, e esfolei um braço junto do cotovelo. Estava eu a falar com a mulher, ainda meio assustado sob o efeito da queda, quando percebi que a roda da frente da minha bicicleta se tinha entortado. Perante o sangue e a pele esfolada entrei em pânico, e fui a correr para casa da minha avó, a quem me queixei do acontecido num discurso revoltado, referindo-me à pobre senhora em tom furioso:
- Olha vó, o que aquela mulher gorda me fez? Aquela baleia que costuma passar aqui à nossa porta?”,
E choramingava. Estava sentado na cozinha, com a minha avó a prestar-me os "primeiros socorros", quando a dita senhora apareceu a pedir desculpas. Eu estava muito nervoso, e dizia:
- Foi essa mesmo! Foi essa baleia gorda que bateu na minha bicicleta nova!

Eu nem queria saber do ferimento que tinha no braço, de onde escorria sangue a valer. Importava-me sim, a bicicleta nova, que tinha pouco mais de uma semana nas minhas mãos. Coisas de criança nervosa, mimada, e de pelo na venta. Enquanto isso, a minha avó pedia desculpas pelo meu descontrole linguístico. Por fim, fui para o hospital, onde acabei por levar uns seis pontos no braço. O que não me fazia esquecer a roda torta da minha bicicleta. Essa recordação nunca terá fim. É eterna. Como eterna é a recordação dos beijos que recebi de minha avó e de minha mãe.

Lisboa, 08.10.2012

créditos da imagem: Pitux, em A bicicleta que ia atrás