domingo, 15 de fevereiro de 2015

Retratos de família

Se mergulharmos no baú das memórias, procurando entre aquelas histórias de família que sempre ouvimos contar, fotografias, cartas esquecidas, objectos pessoais, e outros retalhos de quotidianos passados que lhe componham o desenho, emergem histórias fabulosas com heróis e heroínas ou anti-heróis e anti heroínas  a caminho do esquecimento total.
 
Maude Fealy, USA, (1897-1971), uma das mais belas actrizes do cinema mudo
Vintage Photography
 
O desafio desta oficina é por aí. Vamos ressuscitar aquela bisavó muito louca, que fugiu de casa para seguir o seu sonho, provavelmente personificado por um aventureiro qualquer, desses capazes de tudo; mães-coragem e pais-heróis; o tio que se alistou na Legião Francesa para fugir de uma legião de amantes enfurecidas e de um sem fim de dívidas de jogo. Vamos procurar saber da tia que acabou na miséria com uma fortuna cifrada em papéis de doação de propriedades que não se sabe onde ficam. E da outra que, no desgosto da morte do marido, se sentou numa cadeira, muda, inerte e em lágrimas duramente meses, até os pais aparecerem ameaçando que lhe levavam os filhos pequenos - que cresciam â solta pela casa, entregues a uma velha empregada -, se ela persistisse em ignorar que a vida continuava.
 
 
 
 
 
Pessoas cujo sangue nos corre nas veias, ou gente que fez parte da vida de gente que está na nossa vida. Crescemos a ouvir as suas histórias, muitas vezes por meias palavras. Sem lhes darmos o devido valor, pois  só os anos e as grandes ausências permitem que, nalguns casos, justiça lhes seja feita. Prazerosamente, é bom de ver. Porque contar histórias, nossas ou dos outros, inventadas ou recontadas à nossa maneira de quem conta um conto acrescenta todos os pontos que lhe apetecer, é uma actividade mágica. Uma adição sem contra-indicações. Um voar sem limites. Uma paixão.
 
Como:
Ao longo de quatro aulas semanais, de hora e meia cada, vamos desenterrar lendas, intrigas, pequenas grandes tragédias, glórias, amores escondidos, mortes a destempo, ódios e paixões e saudades cujo prazo de validade já terminou.
Quando:
25 de Fevereiro; 4 de Março; 11 de Março; 18 de Março - com início às 18.30.
Onde:
Livraria Alêtheia, Rua do Século, nº13 - 1200-433 Lisboa (Estacionamento no silo da Calçada do Combro); Telefone (+ 351) 210939748 * Email: aletheia@aletheia.PT
 
Mais informações: Manuela Gonzaga, manuelagonzaga@gmail.com





 





quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Tão macias e delicadas, as mãos dela


O «Efeito Borboleta» suscitou tanto a imaginação dos participantes, que ficará como um marco. O ponto de partida foi um velho álbum de fotografias de casamento, que remontará aos anos 80, pelos detalhes do vestuário e decoração de interiores que emolduram os intervenientes desta narrativa. Ignoramos tudo sobre eles, daí a preservação das suas imagens de que daremos detalhes. Uma preciosidade que, há poucos anos, resgatei do chão, numa esquina do Bairro Alto, a que Alda Rosa faz toda a justiça. Ora leiam esta delícia de história que ela inventou. MG

«Fiquei com esta fotografia da Isabel. Como ela era linda.»

10 de Maio de 2014

Faz hoje trinta e quatro anos que me casei. Procuro na gaveta da velha cómoda as fotografias que a Isabel arrancou do álbum e me entregou, após a nossa separação. Aqui estão elas, já um pouco encardidas pela falta de cuidados que lhes prestei.

Sinto-me tão amargurado nestas águas furtadas da Rua Morais Soares, onde moro há quase seis anos. Um pequeno quarto com uma cama velha, um banco, a cómoda e uma mesa de madeira carunchosa com duas gavetas com os puxadores enferrujados. À frente, a janela de onde se vêem as águas furtadas dos prédios do outro lado da rua. Atrás, uma cozinha minúscula com um fogão que nem sempre uso, porque, por vezes, não tenho dinheiro para comprar a bilha do gás. O frigorífico está quase sempre vazio. Ao lado um pequeno espaço com um alguidar e um chuveiro, onde lavo a loiça e também tomo banho.

Estou nesta situação miserável, desde que fiquei desempregado. Até era um bom pintor da construção civil, mas os copos estragaram-me a vida. Além de destruírem o meu casamento, também me levaram ao despedimento. E, como se isso não bastasse, soube esta semana que tenho um cancro da laringe. O médico disse que era devido ao álcool e ao tabaco. Não sei como vou conseguir sobreviver.

Olho a primeira fotografia e lá estou eu a acender o cigarro. Que raiva, apetece-me rasgá-la. A Isabel detestava que eu fumasse. Estava sempre a dizer que parecia que eu andava a limpar cinzeiros com a minha roupa. E eu zangava-me com ela, gritava e, às vezes, até lhe batia. Mas afinal ela tinha razão. Eu sei que ela me amava. Foi a Isabel que quis casar, não só por estar grávida, mas pelo amor que sentia por mim. A família dela não desejava este casamento, mas ela opôs-se a todos, criando grandes conflitos. Eu, pelo contrário, não me apetecia nada dar aquele passo. Até gostava dela, mas não queria ter filhos, tão novo. E, logo por azar, isso aconteceu. A minha mãe dizia-me que ajudaria a cuidar do bebé, mas, um ano depois, teve um cancro do útero e morreu em seis meses. Teve pouco tempo para estar com o Bruno.

No início, ainda me esforçava para ajudar a Isabel, mas depois fui-me aborrecendo com os pedidos dela, para que parasse de fumar e de beber. O choro do Bruno, durante a noite, deixava-me fora de mim. Entrava em casa pelas dez da noite, comia qualquer coisa, pois já tinha petiscado com os amigos na taberna, e ia deitar-me. Daí a pouco, o garoto desatava numa gritaria e eu ficava furioso. Gritava com ele e com a minha mulher. Os vizinhos, às vezes, chamavam a polícia.

Claro que tudo isto só poderia ter acabado em divórcio. Concordei que a Isabel ficasse a morar na casa que os padrinhos lhe tinham oferecido. Era justo. Assumi a minha responsabilidade na situação. Aluguei uma casa nos Anjos. Era pequena, mas confortável. Sempre que me era permitido, cuidava do Bruno aos fins-de-semana e durante as minhas férias. Depois ele cresceu, e começou a ter problemas de comportamento na escola e a andar com más companhias. Aos 16 anos, já fumava charros e heroína. Eu tentava dar-lhe conselhos, mas ele culpou-me por ser assim, o que me deixou de rastos. Nunca mais voltou à minha casa. A mãe dava-lhe dinheiro para os consumos, porque ele a ameaçava. Sei que está numa comunidade terapêutica há cerca de seis meses, foi a Isabel que me disse ao telefone. Continuámos sempre a falar até há pouco tempo. Mas depois, deixei de atender as chamadas, porque tenho vergonha que ela saiba o estado a que cheguei.

Coloco todas as fotografias sobre a mesa. Até o estado delas demonstra o meu desleixo. Tenho de arranjar uma caixa para as colocar. O ideal seria um álbum, mas não tenho dinheiro nem jeito para as ordenar. Fui eu que coloquei as fotos do nosso casamento naquele álbum castanho com cisnes. A Isabel não gostou nada dele, dizia que era piroso e que eu tinha colado tudo de qualquer maneira. Deveria ter sido mais atento aos pormenores. Aqui está o Luís, o meu querido irmão, que veio de França para o casamento. Ele todo sorridente e eu com este ar de indiferença. E o Joãozinho, o meu sobrinho, que me adorava e que dizia, que quando fosse crescido, queria pintar todas as paredes do mundo, como o tio. Espero que tenha concretizado os seus sonhos, e que esteja bem. Há tantos anos que não falamos. Afastei-me de todos.
Fiquei com esta fotografia da Isabel. Como ela era linda. Aqueles cabelos pretos, os olhos castanhos e muito expressivos, o ar sereno. Apesar de cansada pelo mal-estar da gravidez e todos os conflitos familiares que lhe causei, aqui está ela sorridente, a brindar comigo a um futuro que ela desejava feliz. E eu estraguei tudo. Como me arrependo do que fiz. Não a vejo há tanto tempo, como estará? Que saudades.

Esta é uma foto na escadaria da Igreja de Santo António, onde nos casámos. Estão aqui pessoas que já não reconheço. Mais a tia Judite, que criou a Isabel desde os dois anos, após a morte dos pais dela num acidente de mota. Foi a sua madrinha de casamento. Era uma senhora elegante e respeitável. Não gostava de mim, porque a enfrentei e roubei a sua menina. Se tivesse sido mais cuidadoso, talvez tivesse conseguido o seu apreço. E o tio Adelino, que foi o padrinho e veio de Alcácer do Sal para apadrinhar a sobrinha. Um homem trabalhador, dedicado à agricultura. As mãos dele, tisnadas pelo sol, ilustravam o seu trabalho árduo no campo. Avisou-me para não dar mais desgostos à família. Mas eu estava ali, quase por obrigação.

Já não me lembrava na minha figura, sentado nas ameias do Castelo de São Jorge. Enquanto a Isabel olhava para mim com um ar embevecido, eu já pensava nas noitadas com os meus amigos dos copos. Sou um inútil. Nem sequer consigo matar-me, tenho medo de falhar. O que vou fazer deste pouco tempo que me resta?

Vou escrever à Isabel. Quero pedir-lhe desculpa por lhe ter destruído parte da sua vida. Sei que sempre lutou, que é uma óptima enfermeira, mas só lhe provoquei preocupações e medos e nem a ajudei a cuidar do nosso filho como um verdadeiro pai deve fazer. Agora é tarde.

Sinto-me como um tornado que devastou tudo à sua volta.

§

 13 de Maio de 2014

Estou a chegar a casa, depois de uma noite extenuante no hospital. Cada vez tenho mais trabalho. O serviço está muito pesado, cheio de idosos, muito doentes e solitários, alguns abandonados pelas famílias. É o resultado desta crise em que o país se encontra. O que vale, é que de São José à Mouraria é um pulo. Só penso em chegar a casa para tomar um banho relaxante e deitar-me um pouco.

Entro no prédio onde moro desde o casamento. Foi o tio Joaquim e a tia Judite que me ofereceram o apartamento. Sempre gostei muito deste local. É um bairro simpático, onde todos nos conhecemos e falamos. Nem parece que vivo numa grande cidade. Após o divórcio decidi fazer algumas remodelações na casa. Pintei-a com cores alegres, comprei mobiliário moderno e enchi as paredes com serigrafias dos pintores que mais aprecio. Dei uma nova alma ao espaço.

Tenho uma carta na caixa do correio. Não acredito! O Vítor escreveu-me. Tão estranho, ele que não tem respondido às minhas chamadas, o que me deixa furiosa. Aquele cretino, a quem sempre tentei proteger, lutando contra toda a minha família! Só nos separámos quando cheguei ao limite. Não conseguia suportar o seu feitio, o seu hálito constante a álcool e a tabaco e as suas agressões, que, a certa altura, passaram a ser diárias. Felizmente, que ele não levantou problemas com o divórcio e até colaborou na educação do Bruno.

O meu filho, outra preocupação. Desde o início da adolescência que se tornou agressivo. Depois começaram os consumos de drogas, com comportamentos delinquentes e nunca aceitando qualquer ajuda para se tratar, atribuindo ao pai a culpa de ser assim. Felizmente que há seis meses procurou uma comunidade terapêutica (depois das infinitas por onde passou ao longo dos anos), onde se mantém e com projectos de futuro. Penso que os trinta e três anos e a mais recente namorada, a Joana, terão constituído a principal motivação para procurar tratamento.

Entro em casa. Pouso a mala e vou até à sala. Abro a janela e sento-me na varanda. Está um lindo dia de Primavera. Um tempo igual ao do dia do nosso casamento. Abro a carta do Vítor e começo a lê-la.

Querida Isabel:
Desculpa estar a escrever-te, mas hoje sinto-me muito amargurado. Faz hoje 34 anos que nos casámos. Deves achar estranho eu recordar esta data, mas apesar de tudo o que te fiz continuo a gostar de ti. Fui à procura das fotografias que me entregaste quando nos separámos. Senti-me quase um criminoso ao revê-las. Aquele que devia ter sido um dia tão bonito para nós, foi o princípio do nosso inferno. Percebi que mereço o castigo que tenho. Provavelmente, estarás zangada comigo por não atender os teus telefonemas há algum tempo. Mas não queria que te apercebesses da situação miserável em que me encontro: desempregado, a viver numas águas furtadas e desde há uma semana com mais uma chatice: andava rouco há uns meses, fui ao médico, fiz uns exames e ele disse que tenho um cancro na laringe. Talvez seja operado e não sei se terei de fazer mais tratamentos. Não queria estar a incomodar-te com os meus problemas, mas não aguentei e decidi escrever-te.

Peço-te desculpa mais uma vez por todo o mal que sempre te fiz. Se quiseres rasga esta carta. Mas aceita um beijo deste homem arrependido.
Vítor Santos
Lisboa, 10 de Maio de 2014

Como é possível o Vítor estar assim e não me ter procurado anteriormente? Não consigo parar de chorar. Ele deve estar um farrapo. Sozinho, sem família, sem amigos. Reconheço que não foi o melhor marido, nem o pai ideal, mas não merecia estar nesta situação. O que poderei fazer para ajudá-lo? Tenho de encontrar alguma solução. Se estou sempre pronta para minimizar o sofrimento dos doentes que cuido, é da minha responsabilidade ajudar o pai do meu filho. Entro na sala, dirijo-me à estante e pego no álbum de fotografias do nosso casamento. Volto à varanda, sento-me e começo a folheá-lo.

Tantas folhas vazias. Delas saíram as fotografias que entreguei ao Vítor, na altura da separação. Aqui está a primeira fotografia: como me recordo da minha alegria a cortar o bolo. Mas, na altura de servir o champanhe, senti uma pequena contracção, que me deixou preocupada. Era o Bruno a querer participar na celebração.

Sempre detestei esta vieira partida com a nossa imagem. Parecia que aquele pedaço a menos predizia algo que faltava entre os dois. E nesta fotografia, a tia Judite a olhar para nós, observando-nos a comer o bolo. Havia um ténue sorriso nos seus lábios, mas o seu semblante era de preocupação, pois o Vítor não lhe inspirava confiança. Como nos conhecíamos bem. Foi ela que cuidou de mim desde os dois anos, quando os meus pais morreram de acidente. Como os meus tios não podiam ter filhos, acolheram-me como a sua menina. E depois ficaram tão desiludidos com a minha decisão.

Mais uma vez a tia Judite, sentada ao meu lado, no carro, a olhar para fora e, ao ver o ar de indiferença do Vítor, ficou com este semblante, mistura de zanga e de preocupação.

Aqui estou com os meus padrinhos: a tia Judite e o tio Adelino. O que será feito dele? Nunca mais voltei a Alcácer do Sal. E esta fotografia demonstra fielmente o meu estado de espírito naquele dia. Por um lado o sorriso, significando a convicção do acto que estava a realizar e, por outro, aquele ar sério, pensativo, como que receosa do futuro que se avizinhava.

Nesta foto, o tio Joaquim que me levou ao altar. Era um homem afectuoso e foi o único que acreditou em mim, que aceitou a minha decisão e me transmitiu confiança. Morreu há dez anos, após um AVC. Nos últimos meses de vida, ajudei a cuidar dele. Ia lá a casa diariamente, antes ou após o trabalho. A tia Judite reconciliou-se comigo e até à sua morte há um ano, por insuficiência cardíaca, fomos novamente como uma mãe e uma filha. Que saudades tenho deles.

Não olhava para este álbum desde o divórcio. Inicialmente apeteceu-me deitá-lo para o lixo, mas alguém podia encontrá-lo e reconhecer-nos. Assim, decidi colocá-lo na estante, num local onde não me incomodasse. No entanto, agora sinto um calafrio ao recordar o Vítor e o nosso casamento. Tenho de fazer alguma coisa. Tenho de telefonar-lhe. O sono já desapareceu. Vou tomar um duche rápido e, de seguida, ligar ao Vítor.

O telefone está a tocar. Olho para o écran. Não acredito, é a Isabel. Fico com as pernas a tremer. Sento-me na cama. Tenho mesmo de atender.

― Isabel, perdoa-me.

As palavras saltaram-me da boca. Nem precisei de pensar no que haveria de dizer.

― Vítor, porque não respondeste às minhas chamadas? Fiquei tão preocupada com a tua carta. O que se passa?

Esta é a Isabel com a sua voz firme, mas também carinhosa, a mostrar a sua preocupação comigo.

― Desculpa, mas sentia tanta vergonha que me visses no estado a que cheguei. Estou um farrapo. Doente, sem amigos, sem dinheiro. Sem qualquer solução. Não quero preocupar-te. Só quero que me perdoes por todo o mal que te fiz.

Será que a Isabel vai acreditar em mim? Ou vai achar que é mais uma das minhas manipulações, uma nova tentativa de reconciliação? Nem tenho tempo de pensar, a voz dela corta-me o raciocínio.

― Posso ir a tua casa? Trabalhei de noite no Hospital e vou estar de folga até amanhã à tarde.

Sinto o corpo todo a tremer. Ouvir esta voz firme e doce, provoca-me medo, mas também uma enorme alegria. Há tanto tempo que não me sentia assim.

― Então Vítor, porque não me respondes? Precisamos de conversar. Vou preparar o nosso almoço.

― Desculpa Isabel, nem sei como agradecer-te. Sinto-me tão nervoso, mas vou arranjar força. Então, até já. Um beijo.

― Beijinhos, até já. Chego por volta da uma hora.

E agora? Tenho de me preparar o melhor possível para receber a Isabel. O que é que ela vai achar de mim? Abro a janela. Está um lindo dia. Faço a cama, arrumo o quarto, limpo o fogão e lavo a loiça do jantar de ontem: o tacho onde aqueci o feijão-frade, os talheres e o prato onde comi a lata de atum com feijão. Não coloquei azeite, porque não tenho. Mas deixou-me o estômago reconfortado. Tenho de ir fazer a barba. A lâmina está gasta, preciso de ter cuidado. Depois do banho de água fria vou vestir as calças e a camisola que o meu senhorio me deu há duas semanas. Ainda só usei esta roupa para ir ao médico. E ela como estará? Lembro-me daqueles olhos castanhos muito expressivos e dos cabelos pretos sempre cuidados. Sinto tanta vergonha que me veja assim. Mas tenho de aceitar a ajuda que ela me quiser dar.

Desligo o telefone. A voz do Vítor é a de alguém que está a sofrer muito e a sentir-se perdido. Não me esqueço da vida infernal que ele me deu, mas fiquei com um aperto no peito ao ouvi-lo. Foi meu marido. É o pai do Bruno.

Abro a porta do congelador. Aqui estão duas postas de bacalhau. O Vítor gostava muito de bacalhau cozido com uma batata e grão. Provavelmente já não come isto há algum tempo. Deve estar a passar grandes dificuldades. Vou preparar almoço para dois. Ponho o bacalhau a cozer lentamente, noutro tacho cozo duas batatas. Quando subir a Avenida Almirante Reis, passo no supermercado e compro grão, azeite, vinagre e alguma fruta. Oxalá que o Vítor não se envergonhe com a minha ajuda.

Ainda é cedo. Vou à varanda e sento-me novamente no sofá de verga. Que dia tão bonito. Oiço o chilrear dos pássaros nas árvores. Penso na minha vida. Escolhi enfermagem, talvez com o desejo de cuidar do sofrimento dos outros. E aqui estou eu, mais uma vez, de braços abertos para ajudar o Vítor. Apesar de ter sido alguém que me fez tanto mal. Nunca imaginei, que algum dia, esta situação pudesse acontecer.

Está na hora de sair. Coloco o bacalhau e as batatas numa caixa térmica, pego na minha mala e fecho a porta. Daqui até à Rua Morais Soares ainda vou demorar um pouco. Aproveito para ver umas montras. Estou a entrar na Almirante Reis. Nunca percebi muito bem porque é que na mesma rua existem dois nomes: Rua da Palma e Avenida Almirante Reis. Passo pelos Anjos e ali está a loja de electrodomésticos onde habitualmente compro os electrodomésticos para casa. Espero que não estejam muitas pessoas no supermercado. Estou desejosa de ver o Vítor. Tenho sorte, as caixas registadoras encontram-se praticamente vazias. Pego na lata de grão, num saco de maçãs, noutro de peras, uns sumos, uma sopa Primavera, uma garrafa de azeite, outra de vinagre e um pacote de chá de camomila. Pago e saio.

Estou em frente ao prédio onde o Vítor mora. É um edifício degradado. Toco para o 6º andar. Entro. O elevador está avariado. Subo as escadas de madeira com os sacos na mão. Sinto-me cansada. E então, a porta abre-se e aqui está o Vítor. Tão magro, tão envelhecido. Largo os sacos e abraçamo-nos. As lágrimas saltam-me dos olhos. Entramos em casa. Olho à volta e sinto um arrepio. Como é possível viver nestas condições? Um espaço pequeno, escuro, a cheirar a humidade, sem conforto.

― Vítor, há quanto tempo? Porque não falaste comigo antes? Certamente que estás a passar muito mal.

Sentando-se na cama a soluçar, ele indicou-me a cadeira à sua frente. Não conseguia dizer nada. Parecia que as palavras se tinham sumido. No seu olhar leio um sentimento de gratidão e amor.

― Vamos ter muito tempo para falar. Agora, toca a aquecer o grão. Tu, põe a mesa. Ainda te lembras?

Também me apetece chorar. Mas não posso. Olho para a mesa e lembro-me da toalha às flores que já não uso e de uma fruteira de metal. Da próxima vez que cá vier trago-as. Sempre tornarão o espaço um pouco mais acolhedor. Depois almoçamos quase em silêncio. Ambos temos a voz embargada. O almoço está saboroso. Quando terminamos, levantamo-nos e vou lavar a oiça. O Vítor ajuda-me. Como ele envelheceu. Deve estar mesmo muito doente.

― Trouxe chá de camomila. Aquece a água. Vamos conversar.

Saboreamos o chá delicioso e, calmamente, eu inicio a conversa:

― Vítor, quero saber tudo. Onde estás a ser acompanhado? Mostra-me os exames.

Uma leitura rápida permite-me perceber de imediato que as análises ao sangue e à urina não têm alterações. Na radiografia do tórax só existe uma dilatação do coração, obviamente relacionada com a hipertensão arterial e o alcoolismo do Vítor. O TAC torácico e abdominal não apresenta metástases. Aqui está o resultado da biopsia: um carcinoma pavimento-celular, estádio I, glótico. Que alívio! Não é dos mais graves. O Vítor olha-me atentamente, com um ar assustado. Tem um tremor quase imperceptível. Levanto-me e agarro nas suas mãos geladas.

― Este tumor não é tão mau como parece. Tens de ser operado e depois fazer uns tratamentos. Não tenhas medo, não é grave. E como os exames estão bem, podes voltar a fazer uma vida normal. E agora, estarei ao teu lado, para te poder ajudar.

Sinto as mãos do Vítor mais quentes, mas a tremer. Os seus olhos estão rasos de lágrimas. Abraço-o. Também estou comovida.

― O que tu queres é mimo! Vamos tratar de ti. Vamos preparar as coisas para levares para o hospital. Não te preocupes. Quando fores internado, estarei contigo, mesmo que precise de fazer uma troca no serviço.

O dia passou a correr. A casa já não parece a mesma, limpíssima, arrumada, um ar mais agradável.

Curioso! Já estamos com fome novamente. Convido o Vítor para jantarmos num pequeno restaurante de comida tradicional portuguesa, na Avenida Almirante Reis. Interrompemos diversas vezes a refeição. Olhamos um para o outro e sorrimos. Parecemos um casal de namorados. No fim despedimo-nos com um abraço comovente.

§

 3 de Junho de 2014

É meio-dia. Como o tempo voou. Já tenho a mala feita. A operação é já amanhã. Não posso ter medo. Acho que não me esqueci de nada. Vai tudo correr bem. E eu, que há menos de um mês queria desistir da vida. Tocam à porta. É a Isabel que me vem buscar, tal como combinámos. Desço a escada, sentindo a mesma alegria e o tremor do dia em que nos reencontrámos.

Que surpresa! A acompanhar a Isabel está o meu sobrinho João. Não sabia dele há tantos anos. Está um homem. Deve ter perto de quarenta anos. Damos um grande e emotivo abraço.

§
Oiço uma voz enérgica e alegre a dizer “portou-se muito bem”. Está distante, mas vou ouvindo as várias pessoas de forma cada vez mais próxima. Que alívio. Apesar de algumas dores, estou vivo. Sinto um perfume no ar. Só pode ser a Isabel. Abro os olhos e vejo o seu rosto inicialmente desfocado, mas que se vai tornando mais nítido. Ela acaricia-me a face. Diz que correu tudo bem e que só terei de fazer umas sessões de radioterapia. Pego nas mãos dela. Afago-as. Como são macias e delicadas.

sábado, 31 de janeiro de 2015

Dentro da sua solidão

Para Sara Pires, o encontro, completamente inesperado, aconteceu numa esplanada. Encontro literário, já se vê, que emergiu num fio de palavras desatadas pela imaginação poética e plena de sensibilidade que se adivinha neste belo conto. O primeiro de muitos, esperamos nós. MG
 
 
Dentro da sua solidão

E ali estava ele na esplanada, apreciando e olhando. Só a sua presença arrancava suspiros a qualquer mulher. Bem vestido, cabelo grisalho, encaracolado, penteado para trás, fato azul-escuro e camisa branca sem um vinco que fosse, a sua figura imponente, 1,80m, não passava despercebida.

Gostava de ficar tardes e tardes apreciando tudo e todas. Demorava-se nos pormenores de cada uma, olhava-as fixamente, e não tentava disfarçar. Sabia que o seu olhar provocava sorrisos e rubores. Eram estas sensações que o nutriam, espicaçavam e mantinham vivo. Após o “abandono” da sua mulher prometera a si mesmo que nunca mais iria ter vergonha de olhar, provocar e ceder às emoções. Sabia que já não tinha idade para estes jogos, mas era tão divertido! E aqui entre nós: será que há idade específica para estes jogos?

Com a ex-mulher nunca tomara as rédeas da relação. Pior ainda, abdicara dos sonhos e dos desejos. E agora, ali estava ele em mais um final de tarde, quando todas, apressadamente, regressavam a casa. Mas em frente daquela esplanada, o passo não era assim tão apressado. Aqui, o olhar maroto, provocador deixava-as desprevenidas e ele alimentava-lhes o ego que tão bem lhes fazia à alma.

Mas havia uma que, dentro da sua solidão, o nutria especialmente. Uma a quem todas as tardes servia o mesmo chá, à mesma hora e na mesma mesa. Esta, provocava-lhe os mesmos sentimentos que ele arrancava às mulheres que passavam pela esplanada. Dela apenas conhecia o cheiro a jasmim, os longos dedos, o cabelo ruivo apanhado de forma austera, o olhar de soslaio com que ela o vislumbrava na sua farda impecavelmente passada a ferro. E o seus passos silenciosos. Ele sabia, ou melhor, sentia, que ela que não tinha a pretensão de interromper o seu ritual de final da tarde.

Ela ainda não esquecera os maus tratos sofridos durante anos e anos às mãos do ex-marido, e não queria repetir os mesmos erros. O melhor era manter-se afastada... O seu ex-marido também era assim, bem-parecido e encantador. Não lhe batia, mas os maus tratos psicológicos podem causar danos mais profundos do que os físicos. Obcecava-o a ideia de que todos os homens olhavam para ela, e ela tivera de aprender a deslocar-se silenciosamente, como um fantasma, até ao dia em que fugiu, pondo fim aquela angústia. Mudou de cidade e conseguiu erguer-se, mas a confiança, essa nunca mais a recuperou.

Agora, tinham-se passado duas semanas que ele não aparecia na esplanada. Todos os finais de tarde as mulheres que passavam por ali abrandavam o passo e miravam as mesas, como que procurando alguém. Mas ela sabia onde ele vivia, e um dia, quase ao anoitecer, bateu-lhe à porta, uma, duas vezes. À terceira ouviu um gemido, as trancas rangeram e a porta abriu-se. O imponente 1,80m apareceu prostrado e impecavelmente desgrenhado. Sem trocarem uma palavra, ela amparou-o, aconchegou-o na cama e chamou um médico que lhe diagnosticou uma pneumonia. Teria de repousar e alimentar-se bem. Ela recebeu a receita foi aviá-la à farmácia, no regresso passou por casa fez uma canja, colocou-a num tupperware que embrulhou num jornal para manter o caldo bem quente.

Pela primeira vez ele conseguiu ver os seus olhos castanhos mel. Sempre sem falar, ela pôs a mesa, serviu-lhe a canja, olhou-o fixamente, deu-lhe o medicamento e saiu porta fora. Durante semanas, o ritual manteve-se: à hora das refeições ela chegava, servia-o, olhavam-se e, por fim, saía. Não eram necessárias palavras, o olhar dizia tudo. Ele sabia que tinha de respeitar aquele silêncio e ela não queria estabelecer qualquer outro contacto mais profunda. Era ainda muito cedo. Aquele ritual que ela cumpria diariamente desde que o encontrara doente, dizia ela a si própria, tê-lo-ia feito por qualquer outra pessoa. Na verdade, a presença constante daquele homem na sua esplanada fazia-lhe falta.

Ao fim de um mês ele recuperou completamente, olhou-a e pela primeira vez quebrou o silêncio:

– Obrigada! – disse.

Ela assentiu com a cabeça e saiu.

E tudo voltou ao que era dantes. O serviço de chá na esplanada, a romaria de final da tarde, as mulheres abrandando o passo e ele sorrindo-lhes. Mas a ela, ele respeitava-a como nunca respeitara outra mulher, e o seu silêncio era a sua bênção.

Para ela, ainda era muito cedo. A ele só lhe restava esperar.

O tempo, que tudo cura não se esquece, mas permite seguir em frente.

 

Sara Pires
Lisboa, 6 de Janeiro de 2015

 

 

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Encontros Inesperados


E quando um desconhecido ou uma desconhecida...
Oficina de escrita que pretende despertar a narrativa torrencial por resposta a um desafio inesperado, cujo teor não revelaremos para manter intacta a energia da surpresa e a magia do encontro.
A mente é inútil, quando a mente é cega
[cortesia de Favim]


O titulo desta proposta literária partiu de um pressuposto «Blind Date» ou, em tradução muito livre «Encontros Inesperados». Em síntese, a expressão «Fiquei sem palavras» - é provavelmente o que vai acontecer aos participantes desta oficina  nos primeiros momentos em que encontrarem o desafio apresentado.

Uma reação seguida de entusiasmo e escrita compulsiva, a avaliar pelo que tem acontecido nas outras oficinas do mesmo teor, cujos contos, magníficos, têm vindo a ser publicados neste blogue.
Como? Ao longo de três aulas propomos a construção de narrativas com base no convite ou na proposta que cada um escolher. Literalmente às cegas.

Quando? As oficinas decorrem às terças-feiras, com início pelas 18.30, nos dias 3, 10 e 24 de Fevereiro. 

Na primeira sessão será equacionada a construção da narrativa (3 de Fevereiro);
Na segunda o seu aperfeiçoamento (dia 10 de Fevereiro);
Na terceira a sua conclusão (dia 24 de Fevereiro).

Cada aula tem a duração de uma hora presencial, com uma tolerância adicional de meia hora, entre o começo e o fim, para quem quiser esclarecimentos mais personalizados.

Onde é? no lindíssimo espaço da Livraria Alêtheia, à rua do Século, nº 13 (metro Chiado).
Os contos serão, posteriormente, inseridos neste blogue e na nossa página das Oficinas de Escrita, no facebook. Como tem vindo a acontecer com todos os outros.

Contactos:
manuelagonzaga@gmail.com
Telefone (+ 351) 210939748 * Email: aletheia@aletheia.pt
Preço total da oficina: 60 euros.

Adicional: Ao longo do tempo em que durar a Oficina, os participantes podem colocar questões à orientadora, por email, ou pessoalmente. As anotações sobre a escrita serão  sempre conduzidas no sentido de orientar a eficácia do discurso. Tanto quanto possível, essas considerações serão pessoais – de orientadora a orientando/a.

 

domingo, 25 de janeiro de 2015

O Armário de Priscos

O João Miguel Teodoro é um quase residente das oficinas - mas de todas as vezes, o mínimo que e pode dizer dos seus textos é que nos surpreendem sempre ao máximo. Como este seu conto, surreal e labiríntico, no seu jogo de palavras, ideias e sonoridades de muito poderoso e sedutor apelo.  MG


 
Quando andava louca, numa caminhada pelos arcebispos em busca de uns pontos cardeais que me levassem ao Abade de Priscos, já tinha deixado o Viana para trás e puxava pelo Timóteo, que, com sofreguidão, acompanhava o meu ritmo atrás do atraso.
O Carlos no seu nulo ser, mas na sua notável instrução, deveria estar à minha espera como sempre, sem saber muito bem se estava atrasado ou adiantado. Eu, com menos instrução, sabia que estava. Seguramente pontual é que não estava.
Este seu jeito deu-me inúmeras oportunidades para treinar uns Timoteos. Continuo a treinar. Espero é que quando o Timóteo se sincronizar com o meu caminhar consiga chegar perto do Carlos e da fome que eu já pressentia nos seus arrufos. Como ainda estavamos apressados para o almoço, pensava que o Carlos no seu rosto já não tivesse restos do creme de desfazer barba, feita de manhã, e que a assimetria facial não fosse, mais uma vez, uma qualidade escondida no seu despiste. É tão despistado que muitas vezes se esquecia de mim...e que jeito tal me deu nos treinos.
Já não via o Pedro há imenso tempo. Nem mesmo quando estava combinado um encontro com o Timóteo, e a Maria era tramada.
Ah! Lá estava o Carlos previsível como apelido. Calmo, a julgar que estava adiantado e com a imagem que eu imaginava. Fiz de conta que estava com a pontualidade no auge e com o estômago a dar horas, em sintonia com o choro do Timóteo. O silêncio foi servido durante o almoço. Definitivamente, tinha dois estranhos comigo. Tudo terminou com o doce que deu nome à casa onde o nosso repasto, atrasado, não se prolongou por muito tempo. Já não me lembro muito bem, mas nas despedidas do Carlos, o meu olhar puxado pelo Timóteo, identificou a Maria. Despachei o Carlos com uma pressa cobarde. Uma saudade da Maria invadiu todo o meu corpo.
Fiquei cheia de dúvidas e o filme da vida terminou com o primeiro choro do Timóteo. Talvez fosse a minha forma de repelir o que tinha feito à minha amiga, mas estar com o Pedro foi tão bom. Ela encarou o nascimento do Timóteo como uma experiência, leia-se lição para vidas futuras. Do meu sofrimento à experiência adquirida da Maria, foi crescendo uma linda retrospectiva de uma vida a quatro e que subitamente terminou com o Timoteo a sair do meu ventre. Afinal, a cinco a história não tinha piada.
De facto não tinham passado muitos anos desde o nosso afastamento, mas aquela visita da Maria às festas da senhora da Agonia foi uma lufada de ar fresco e terminou com a minha agonia. Já me tinha esquecido do Carlos, do Pedro e até do pequeno Timóteo.
Naquele tempo a velhice podia ser “maravilhada”, mas não corrigida. Agora, de mão dada com a Maria, o Timóteo de visita à nossa casa, vai-me dizendo que sim. Dando o desconto que os filhos acham sempre as mães os seres mais lindos do mundo, agora tinha duas, esforço a dobrar. O Timóteo, que nunca teve um armário, demorou algum tempo a entender o armário destas mães: uma delas pediu emprestada o marido da outra para o ter.
A minha vida em Braga depois daquele almoço no Abade de Priscos ficou sem orientação, por uns tempos. Parece que fiquei com a minha história interrompida. Sentimentos que eu achava menores, invadiram o meu coração e quando o coração é invadido por sentimentos até respirar custa. Nada parece funcionar.
 
João Miguel Teodoro
Lisboa, 28 de Outubro 2014
 
 
 
 

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

QUE HORAS SERÃO, QUE DIA?

Publico com o maior prazer mais um conto saído das nossas últimas oficinas, assinado por Elizabeth Carreira. É uma narrativa pungente, apocalíptica, muito bela. Acima de tudo, é um conto credível que se materializou esplendorosamente. Blind Date foi realmente uma belíssima surpresa para todos nós, participantes e orientadora. MG

Singapore Ruins, by JonasDeRo


Lembro-me de ti, Luísa. Lembro-me sempre de ti. Tudo me traz recordações de ti, de nós, porque tu eras parte de mim e eu sem dar conta, tantas vezes. Minha mulher militante de todas as causas. Leio, escrito por ti à pressa, em letra descuidada, no bloco que deixaste aberto sobre a secretária:

Sou partidário.
Eu odeio quem não participa,
Eu odeio os indiferentes.
António Gramsci, Scritti giovanili.

Usaste-a na última intervenção, como sempre acalorada, no congresso da organização verde de que eras dirigente? Esse congresso que te levou ao norte do país, justamente quando a guerra, ou lá o que é isto, rebentou. Ainda falámos ao telemóvel, mensagens breves, tranquilizadoras... enquanto houve energia. «Estás bem?»

-- Sim. Falei com o Pedro, estão todos bem, mas confirmou que em Londres estão como nós. Temos de ter paciência, isto vai ser resolvido, mais dia, menos dia a situação vai resolver-se. Tem cuidado, não saias. Assim que puder vou para casa, hei-de arranjar maneira.

-- Não vais cruzar os braços, bem sei. Eu espero-te, não saio daqui.

Queria dizer “meu amor” mas a chamada caiu. E agora, pressinto-te em todos os ruídos e em todas as sombras e assim meço a verdade do meu amor por ti. Tento andar aprumado e manter a casa digna para quando chegares, apesar da falta de água e de luz. Aparo a barba e o cabelo com uma tesoura. Levo horas nisso. Arejo a roupa na varanda, à socapa, não vá alguém ver-me, e penduro-a em cabides.

Estou só, numa casa cheia de objetos que foram essenciais até que se tornaram inúteis. Frigorífico, televisão, computador. Fogão elétrico. Micro-ondas! Lavatórios, torneiras, banheiras... Ah, e o carro na garagem! Ao princípio, estava certo que era uma questão de um, dois dias. Uma semana... depois outra... quantas se passaram já? Perdi-lhes a conta.

Ocorreu-me isto da escrita, como um escape. Felizmente coleccionei lápis atrás de lápis ao longo da vida, quando já nem escrevíamos à mão, tudo no computador. E papel não falta. Nem tempo. Preencho os dias e esta ausência de comunicação que me enlouquece. Agora, lembro-me de Anne Frank e do seu diário. Visitei em jovem a sua casa-museu, em Amsterdão, longe de imaginar que décadas depois iria enfim compreender tudo por que passou, ela e muitos outros.

Tomo pois consciência de que corro o risco de me transformar na Anne Frank do século XXI. Tinha a sua graça. O testemunho de um homem, entre milhares, que digo eu?, milhões, dezenas, centenas de milhões, pateticamente condenados a morrer de fome, sede e solidão após uma vida de abundância, festança e consumo desenfreado. É uma grande anedota. De morrer a rir... Quantos não terão morrido já? Abro a janela e fecho-a de seguida, tão pestilento está o ar. Graças ao teu cuidado, tínhamos a despensa bem recheada, e tantos tantos garrafões de água na garagem... para uma eventualidade, uma mania tua que eu ridicularizava! Dizias que tinhas estado duas semanas sem água canalizada quando tinhas vivido em África e assim tinhas aprendido o valor do bem mais precioso do que tudo o que possamos guardar! E eu a reclamar que aquilo era uma inutilidade e ocupava muito espaço... Consumo pouco, o menos possível. Olho para os garrafões e sei exatamente o tempo que a água vai durar. O meu tempo de vida? Ao princípio ainda usava alguma para me lavar. Agora nem pensar, que morra sujo mas o mais tarde possível!


O que eu dava para poder ouvir música! Reorganizei os nossos muitos CDs. Luísa, Luísa, não tens o instinto da organização, por isso passas a vida à procura das tuas coisas. Estava tudo misturado, alguns fora da caixa, outros em caixas erradas... Se estivesses cá ouvias das boas. Quem dera, quem dera que um dia voltes a remexer tudo, a tirar tudo do lugar!

 

Tenho essa esperança, uma quase certeza de que tudo volte ao lugar. “A esperança é a última a morrer!” “Enquanto há vida há esperança!” Expressões populares que até incomodava ouvir, de tão ditas e reditas, a maior parte das vezes sem quererem dizer nada. Frases de circunstância, ocas, quase sempre hipócritas, ditas da boca para fora. Ah, mas tão verdadeiras na condição em que me encontro! Mais do que a falta de água e de luz, a tua ausência diminui-me. Resisto porque sei que virás, movida pela tua implacável determinação. A qualquer momento ouvirei o som da tua voz e ela soará imperturbável:
 
Olá, António.


Hoje, abri a penúltima lata de atum. Vai dar para três, quatro dias. Mastigo cada pedacinho. Mastigo e remastigo. O pior é que me faz sede. Olha, Luísa, afinal não precisei de ir ao ginásio, perdi a barriga por completo! As calças é que me caem, preciso de calças novas, vou fazendo furos no cinto, mas já não dá para fazer mais.

Já que isto pode ser um testemunho à la Anne Frank, devo contar como tudo aconteceu. De um dia para outro, sem qualquer previsão ou declaração de guerra -- ainda estou para saber como tudo isto escapou aos serviços secretos de todo o mundo ocidental -- operações de sabotagem concertadas deixaram todo o ocidente a morrer à míngua, sem água, comunicações, combustíveis... de que vale um exército sem pão nem comunicações? Carros, barcos, aviões sem combustível, bancos “sem sistema”- e de que nos serviria o dinheiro nestas circunstâncias?, a insegurança gerada pela fome, tudo a agravar-se dia a dia, até nos trancarmos em casa, tentando passar por invisíveis com medo de assaltos aos escassos bens que nos vão possibilitando a existência... Foram usadas bombas, armas químicas, violência? Invadiram o nosso território? Não, nada disso. Pelo menos por enquanto, que eu saiba. Devem estar à espera que, pura e simplesmente, morramos todos. É a mais sofisticada, a mais clean das guerras, esta. Toda despoletada através dos sistemas informáticos. Passámos a depender deles, facilitaram-nos a vida, entregámos-lhes as nossas vidas.

Literalmente.

O pior de tudo é ignorarmos o que realmente se passa. Limitamo-nos a esperar. E um dia destes já não queremos saber porque, estando ainda vivos, já deixámos de viver. Escurece, já não vejo o que escrevo. Que horas serão, que dia? Horas de molhar os lábios - delícia suprema dos meus dias - e de me enfiar na cama. Adormecer a reviver momentos bons da nossa vida, Luísa. A reviver as nossas noites de amor. As nossas viagens. A infância do nosso filho.Também pensas nisso? Era boa a nossa vida. Era vida.

Não foi amor à primeira vista, o nosso. Vivíamos em mundos diferentes, apesar de frequentarmos o mesmo café. Ah, a importância dos cafés na vida social dos anos 60, 70! Eram a nossa sala de visitas comum, o nosso facebook, o nosso telemóvel. Quem me queria encontrar, era passar na Roma depois de jantar. Podia dizer-se “Diz-me a que café vais, dir-te-ei quem és”. Na Roma, porém, havia grupos distintos. Em zonas distintas. À entrada, os “betinhos” da avenida de Roma, era assim que nos catalogavam, grupo a que claramente pertencia. Classe média confortável, gente conservadora,  seguindo os ditames da moda. Lá para trás ficavam os outros, muitos deles estudantes do Técnico, cabeludos, barbudos, ar contestatário de maio de 68. Não deixavam de ser burgueses, por mais que lhes custasse admitir isso, já que naquele tempo as classes trabalhadoras não estudavam na universidade. Só que não eram dali, como nós, e não viviam em casa dos pais. Vinham muitas vezes “da província” ou dos “territórios ultramarinos”. Viviam em quartos alugados ou em residências.

As miúdas, como dizíamos, também se dividiam pelos dois grupos, as mais ou menos hippies, cabelos longos, roupa étnica ou casual,  e as embonecadas, que não saíam de casa sem se mirarem dezenas de vezes ao espelho. Como a minha namorada. Melhor dizendo, quase-noiva. Não se pode negar que fosse bonita. Eu sentia algum orgulho quando ela entrava no café, fresca e elegante. Estava empenhado naquela relação, que me parecia absolutamente certa.

Um dia senti uns olhos trocistas fixados em mim. Os teus. Nunca te tinha visto, pertencias claramente ao grupo lá de trás, longos cabelos desalinhados, saia comprida colorida, camisa amarrotada. Olhos muito pintados. Davas nas vistas, mas não me passaria pela cabeça meter conversa contigo. Ao fim de poucos meses deixaste de aparecer, terás mudado de café. Curiosamente, dei por isso. E foi com um sobressalto que deparei contigo, cerca de um ano depois, na biblioteca da Gulbenkian. «Olá, António!» disseste tu naquele tom de voz que usamos nas bibliotecas. Aquele sorriso trocista enervante. Que passei a amar perdidamente. Mas isso foi mais tarde.
 

É bom ter tantas memórias para ocupar o meu tempo, devia ter começado a escrever há mais tempo, quando tinha mais energia. Agora canso-me depressa. Seria mais fácil se tivesse café. Tenho cápsulas, tenho máquina, mas falta tudo o resto. Às vezes corto uma cápsula para cheirar e lamber o café. E não é que me revigora?
 
Elisabeth Carreira, Lisboa, 28-10-2014
 
 
 
 
 

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O Homem sem nome e a Mulher sem rosto.

Sem desprimor para todos os excelentes trabalhos que têm saído das nossas oficinas de escrita,  onde se trabalha no duro!!, este conto do Ricardo Estevens está muitos furos acima da escala. Representa várias coisas notáveis, a primeira das quais o inegável talento do seu autor. Outra, a tenacidade com que Ricardo se entregou a um trabalho que lhe correu mal, e ainda bem, já que, depois de um aparentemente desmotivante resultado inicial, ele pode chegar a este resultado soberbo. Não foi à primeira. Nem à segunda. Mas foi e por mérito próprio e muito trabalho. Generosamente, ele reconhece que em dois ou três meses (duas oficinas, pelo menos)  evoluiu «alguns anos». É o poder do ofício quando a exigência é a da mestria. MG
 
Bernardo Pacheco (ilustração)

O Homem sem nome e a Mulher sem rosto.
 
Sobram poucos metros entre aquele sobreiro e uma pequena depressão na terra enxuta. O tique e o taque marcam para lá das vinte e três nas areias Cronos e a Lua já deambula no septuagésimo nono soluço de altitude quando, descuidada, uma lágrima desliza na bochecha de uma nuvem cinza, quase negra de quase luto, e com a pontaria do acaso cai na consequência de uma cova situada a milhares de decímetros daquele sobreiro a tudo alheio. De depressão a cova passa a lago e faz da lágrima, filha do pranto, fonte mãe da vida.

É aqui, sob as coordenadas geográficas de um Alentejo, onde há numa planície quase deserta uma única árvore a florescer de vida. Completamente isolada é ela o foco de tudo. Este quadro é pintado com as mesmas cores da paleta de tantos outros diferindo apenas e somente no traço que o pintor e o destino lhe deram.

Podia ter acontecido a qualquer ser em qualquer altura sem razão alguma, ou a ser algum e em nenhuma altura. Mas foi àquele corvo de poleiro naquele sobreiro que aconteceu. Aquando de se banhar e matar a sede na água fonte da vida que a sua não cessou mas perto, salva só pela lei de Lavoisier, isto é certo. Cai a pena das asas de voar, as articulações começam a partir e a formar ângulos opostos aos de antes, mais ossos nas “antes-asas”, agora ligamentos, músculos e por cima nova carne em retalhos: mãos. Lentamente o bico entra em decomposição até ficarem só dois pedaços de carne: lábios. A boca prenha de dentes enche-se com a língua inchada e em sangue de trincada. Os ossos começam a pesar. Vê com os novos olhos o velho chão distanciar-se, estranhamente agora que não voa. O negro das patas clareia até ser o moreno das pernas, excepto na esquerda onde, como se fosse tinta, o escarlate escorre na mesma direcção e forma um grosso aro abraçando o gémeo e a canela. O seu reflexo no lago é estranho, não se reconhece. É um estranho e à sua agora estranha mente, é branco. Branco de quem nasce novamente e deixa de lhe ser estranho porque se tudo é novo é de esperar que também seja nova a mente. O branco imaculado começa então a ganhar outras cores que o preenchem. Cor-de-conhecimento e tons de razão garridos. Começa a absorver as cores em seu redor e pinta numa tela igual à tela que deveria ser a de Adão antes da Eva, antes até do Criador; À de um recém-nascido antes de cometer o crime de perder a inocência; â de um Homem. Depois das cores, palavras. De alguma forma o seu pensamento é encriptado agora com símbolos que reconhece como se tivessem sido seus desde sempre. A palavra ler; escrever; palavra; raciocínio.

E se bem que tudo tem uma explicação, esta eu não a sei. Sei porém que agora o corvo é homem, e agora o homem já não é um corvo. O pobre animal, menos selvagem, mais consciente; menos asas, mais braços; nas penas menos no pêlo mais; 

Passados algum tempo numa auto-avaliação exaustiva junto ao espelho-lago sente os primeiros impulsos naturais, os mais selvagens que temos como os têm outros animais. A sede, matou-a de vez com aquela água ainda com alguma dificuldade em beber sem afundar nela também o nariz, e os olhos e a cara toda. Mas a fome ficou. Não uma fome de matéria, mas de mais “cores”, mais conhecimento, mais.

Procura saciar os porquês; quem; onde; como; enquanto isto, vislumbra o sobreiro e ao largo uma estrada de terra batida – pó. Ainda atabalhoado é por aí que se arrisca. No sentido contrário ao certo, seja ele qual for.

As altas temperaturas brincam com a sanidade deste Homem-menino perdido no caminho da casa que não sabe se tem. Neste momento as únicas certezas são: o horizonte para onde vai, e está o fim da estrada que quanto mais percorre mais chega só ao “meio”; e que o meio onde esteve lá atrás era só metade do meio onde está; de onde veio, aquele lago junto àquele sobreiro; e a própria dúvida que o atormenta e toma de assalto naquela caminhada com todas as interrogações sem respostas aparentes. Mas segue, talvez elas estejam já ali, naquele horizonte a par da estrela da manhã e da moça, que pisa de chinela e levanta o pó ao som que faz quando baila.

– Hmm? Está ali alguém? – urge em sí o impulso de lhe falar, de a conhecer, de saber se a conhece. Quer gritar, mas a voz amarrada pela sede não permite. Põe tudo o que tem, tudo o que lhe resta em força e arrasta-se numa última corrida, a mais exasperante e demorada de sempre, para ele a mais exasperante e vertiginosa, mais do que em qualquer voo. E voa até ela, estica o braço, ao toque dos seus dedos no ombro despido de Tágide desfaz-se no ar. Vê-se em Outubro no dia quinto. Da inquieta e inquietante só o pó das chinelas. Ao seu redor uma cidade inteira soerguida na direcção dos céus, em rectângulos trazidos para a terceira dimensão pela sua profundidade e num deles, separado apenas pelo frenesim do tráfego na Avenida rasgada em parelha à da República mais precisamente no nº186 sétimo piso, lá estava aquela figura feminina. No meio de tudo o que era tão novo e tão definido: os carros, as pessoas a caminho do trabalho em passo acelerado, o rugir da manhã de Lisboa. Foi ela que lhe furtou a atenção, envolta na dança da nuvem de fumo evocada a cada bafo no cigarro suspenso entre um dedo, a sensualidade e o outro. Finalmente, no tempo de um piscar de olhos, da queda de uma beata caramelo-baton lá de cima a cá abaixo a fumadora foi para dentro e do fumo tratou o vento.

– É isto! Não sei o quê senão que é ela – com esta certeza veio outra, desperta a recordação adormecida do desamor a cigarradas. A Cinco de Outubro continuou e de inerte só aquele tipo ali especado. Mas inerte só por fora, que por dentro acontecia num ritmo prestíssimo um jogo de perguntas e respostas que mais parecia de perguntas e perguntas.

– É-me familiar, a mim que não gosto de fumadoras. Não lhe sei o rosto, não o consegui perceber no meio daquela maldita nuvem de fumaça, todo o resto eu sei, mas o rosto não.

Aaarg! Aquela ali a quem não sei a cara seduziu-me com um “cigarrinho matinal”. A mim, que desprezo de fumadoras. Uma hora após a outra, enredado na memória dela, mira o 7º do nº186 e pensa na traição. A cada minuto sem a ver se junta um minuto da traição à curiosidade deste homem e ao vício de fumar daquela mulher. Provavelmente agora o viciado em fumo é ele, que não fuma. Ele que odeia fumadoras, que pensa mais nisso do que ela.

– Como é que me pôde acontecer isto? Amo-a sem sequer lhe saber a face, amo a maneira como fuma um cigarro, amo-a naquele andar naquela manhã a olhar por aquela janela sem me ver a ama-la cá em baixo.

– LOGO EU, que ABOMINO fumadoras!

Com a estrela da tarde chegou o fim do dia e já não é cinco de outubro data, é estrada de novo, e de novo incerteza. Assim como veio tudo foi, neste homem-trapo tudo míngua e crescente só o desgosto. Na velha estrada cruza com um velho escanifrado também ele errante. De barbas cor de cinza mal aparadas e cabelos recolhidos numa espécie de turbante mal-arranjado feito com as farripas de uma camisa negra. A sua pele é escura e rugosa, galvanizada pelo sol e pela poeira. Carrega às costas expostas um alforge com coisa pouca, nos pés sandálias a deixar sobrar mais pé que sola, e das canelas para cima só umas calças de um vermelho desbotado a esconder pouco mais que as vergonhas e uma marca que traz na perna esquerda.

– Quem vem lá? Sabes onde estamos? Para onde vais? Talvez te possas juntar a mim que caminho sozinho, ou deixar-me acompanhar-te se preferires –  pergunta o jovem sem obter mais do que um angustiante silêncio nos longos espaços entre as estas questões. Sem dizer o que quer que seja o velho busca o alforge de onde tira um pedaço de carne curada e um púcaro, para servir uns goles de vinho tinto ao homem sem nome. Dada a esmola, o velho numa voz rouca que segreda do fundo de um poço diz:

– Além –  apontando com o olhar para um vulto distante, deformado pelas ondas de calor que exala da terra cozida.

– Não sei que procuras, assim como vejo que não sabes tu, mas é naquela direcção que sopram os ventos. Se te tiraram algo é para lá que levam, e até que os ventos tornem a mudar de lá não volta.

Com isto o velho vidrou uma última vez os olhos no Homem Sem Nome e fez-se ao trilho oposto. Seguido de um assentir confiante o jovem parte na direcção aconselhada. Quanto mais se aproxima mais distinta se torna a figura do seu destino. Um sobreiro. Já exausto, alcança finalmente a sua sombra e ali passa o resto do dia e a noite.

Finalmente chega ao destino indicado pelo caminhante desconhecido e no entanto não há mais nada. Nem uma pista da mulher sem rosto ou do que seja. No dia que seguinte, sem força para muito, tenta subir à árvore e averiguar o espaço.  É quando um pé em falso num galho frágil, e uma fuga alvoraçada de um corvo abrigado na copa, lhe dão a deixa para amenizar a fadiga, para desistir desta busca que parece incessante por alguém vago. Tão vago como a memória do homem de perna traçada. E deixando caír o seu corpo num relaxamento completo, deixa caír também a esperança e a vontade. O chão estremece tal como estremeceu o chão onde estavam as raízes do pé de feijão de onde caiu também alguém da outra história. É então que volta à cena a lei de que já falei, regente da morte e da vida. Aquela carcaça ali jazida não é mais do que isso e serve uma ave vestida com as cores da morte. O pássaro, sedento e voraz ataca com a tenacidade e o ímpeto de encher o vazio deixado pelas presas que não conseguiu só ele sabe há quanto tempo. Depois de saciado e amansado o estômago o corvo resguarda-se novamente no sobreiro de onde surgiu, aquele que floresce de vida num sítio onde tudo é pó e tudo é só terra e eco até que alguma nuvem soprada de outras paragens torne a chorar um luto qualquer e dê de beber a um qualquer.

 

Ricardo Estevens
Lisboa 20/03/2014