De Ana Mateus Marques, um poderoso e pungente registo ficcional. Um prisioneiro contempla a sua imagem pela última vez. A morte aguarda-o... ou não? MG
Sou um condenado à morte. Vejo-me
ao espelho pela última vez na vida. Tenho uma expressão cansada, olheiras
profundas e um rosto amargurado. O pequeno espelho prateado que seguro nas mãos
foi a minha única companhia durante estes três penosos anos de cárcere.
A solidão fazia com que conversasse com ele, como se esperasse dali respostas às minhas múltiplas emoções à solta. Perdi o contacto com o mundo. Fiquei com a vida suspensa. À espera de uma sentença que me absolvesse ou condenasse para sempre.
Quem sou eu? Já não sei.
A imagem que vejo no espelho não se parece comigo. É um reflexo sombrio do meu EU. Reflecte o vazio em que vivo. Não tenho nada. Nem família nem bens, nem dignidade. Um escravo, torturado e condenado por ideais. Agora sou apenas um número 4-66.
Neste dia fatídico, não quero pensar na morte mas na intensidade da vida e na paixão com que lutei pelas minhas ideias. Para me preparar, agarro com força e contra o peito, na única coisa que possuo. O espelho. Dou um grito lancinante de dor e de revolta.
Ana Mateus Marques, Lisboa, Janeiro de 2014
Créditos: o link da legenda remete para a página de onde a imagem foi retirada.
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Prisão ilícita |
A solidão fazia com que conversasse com ele, como se esperasse dali respostas às minhas múltiplas emoções à solta. Perdi o contacto com o mundo. Fiquei com a vida suspensa. À espera de uma sentença que me absolvesse ou condenasse para sempre.
Quem sou eu? Já não sei.
A imagem que vejo no espelho não se parece comigo. É um reflexo sombrio do meu EU. Reflecte o vazio em que vivo. Não tenho nada. Nem família nem bens, nem dignidade. Um escravo, torturado e condenado por ideais. Agora sou apenas um número 4-66.
Neste dia fatídico, não quero pensar na morte mas na intensidade da vida e na paixão com que lutei pelas minhas ideias. Para me preparar, agarro com força e contra o peito, na única coisa que possuo. O espelho. Dou um grito lancinante de dor e de revolta.
O espelho parte-se em pedaços
muito pequeninos nas minhas mãos, ferindo-me nos dedos, no peito e no rosto.
Fico com pequenos fragmentos em mim. Sinto uma sensação estranha, como se o espelho
tivesse entrado em mim e agora fossemos um só, em osmose.
Uma sensação de êxtase, de paz e
de luta invade-me. Já não estou na cela. Estou livre, LIVRE, num espaço físico
e num tempo diferentes, desconhecidos, completamente novos.
Não sei onde estou. A cela fria,
húmida e cinzenta parece muito longínqua. Começo a correr em direção aos
sons que não consigo
identificar. No ar, sinto o odor cálido da fruta fresca: morangos e pêssegos.Ana Mateus Marques, Lisboa, Janeiro de 2014
Créditos: o link da legenda remete para a página de onde a imagem foi retirada.
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