O belo texto de AR, que foi escrito ao longo destas Elegias do Amor e do Ódio. Um mergulho de alma e coração no coração de uma menina. Comovente e delicioso. MG
![]() |
Menina pisando a linha, pintura de autor do texto |
Quando nos conhecemos, tinhas
trinta e cinco anos. Eras uma mulher bonita, de estatura média, magra, de
cabelos pretos, olhos castanhos e uns lábios finos e bem desenhados. Vestias de forma impecável, embora
com alguma rigidez, sempre de fato, saia e casaco, de tons escuros e blusas ou
camisolas claras. E, quando ias à rua, o cabelo apresentava-se imaculadamente
penteado, sem um único fio desalinhado!
Eras uma mulher austera, rígida,
criando uma distância abissal entre ti e os outros, fossem os outros os vizinhos, ou a própria
família. Não te conheci amigos.
Quando eu era muito pequena, não
sabia onde trabalhavas. Só sabia que saías de casa, logo após o pai,
regressando à hora do almoço. Por vezes, voltavas a sair à tarde. E eu ficava
sozinha. Anos depois, sei que trabalhaste algumas horas com o pai. Eras, ou tornaste-te a pessoa
solitária que recordo, que apreciava vangloriar-se de fazer tudo na perfeição,
mas a quem, dificilmente, alguém via sorrir?! Raramente concordavas com as opiniões
dos outros. E a minha então, não contava de todo. De cada vez que emitia uma
opinião, dizias:
– Vais ter de comer muitas colheres
de sal para pensares como um adulto.
E claro que eu cumpria na perfeição
o conselho, pois, quando estava sozinha, e deixaste-me sozinha desde muito,
muito pequena, uma das minhas ocupações era comer sal às colheres, para me
poder tornar adulta mais depressa!
O pai, sete anos mais velho do que
tu, era um homem alto, de cabelo grisalho, olhos castanho-esverdeados, afável e
sempre disponível para ajudar. No entanto, trabalhava excessivamente, era
empregado de escritório numa grande firma de têxteis, pelo que, saía pelas
8h e só chegava à hora de jantar, que era impreterivelmente às 20h.
Vivíamos numa cave num bairro de
Lisboa. Era uma casa pequena, com pouca luz. O meu quarto e a sala não tinham
janelas. A cozinha era grande, sendo uma das minhas divisões preferidas, quer
pela quantidade de utensílios que eu podia explorar, quer pela janela, que se
tornou na minha porta para o Mundo exterior, quando aprendi a abri-la!
Havia um quintal em que os muros
que o delimitavam continham floreiras, que serviam de esconderijos para os
índios e os cowboys, nas brincadeiras com os meus amigos. E un pátio enorme,
onde corria, andava de bicicleta ou de carrinho de rolamentos. Também fazia
corridas de caricas na berma do passeio, subia e descia candeeiros de
iluminação pública, alheia a qualquer perigo que pudesse correr, tornando-me
destemida.
Mas esta diversão tinha de ser
controlada, pois tinha de terminar antes de regressares a casa. Então, voltava
a entrar pela janela, fechava-a e afivelava a minha máscara de menina bem
comportada! A menina que, numa docilidade aparente, suportava o tempo
infindável que passavas a fazer-me canudos, obrigando-me a ficar sentada num
banco, na cozinha!
Desde muito cedo que me obrigaste a
arrumar o meu quarto, mas o que poderia parecer um castigo, para mim constituiu
uma vitória, pois pude dominar naquele pequenino espaço, onde só cabia a cama,
uma mesa-de-cabeceira e uma estante. Tudo se passava debaixo da cama; era um
óptimo esconderijo para tudo o que era proibido. Os brinquedos estragados, os
bichos de seda, o hamster que esteve lá uma semana, emprestado por uma colega
e, mais tarde, as caixas de ovos que coleccionei e que depois forrei com papel
celofane e colei no tecto do meu quarto, deixando-te furiosa.
Era assim.
Sem comentários:
Enviar um comentário