Publico hoje o primeiro conto saído das últimas Oficinas de Escrita - Blind Date ou Encontros Imediatos de 2º Grau. O desafio foi muitíssimo estimulante, e o belíssimo texto de Alda Rosa testemunha-o. Pela minha parte, dou-lhe todas as estrelas das tabelas que as implicam. Manuela Gonzaga.
Tento recordar-me dos momentos que antecederam este vazio. Éramos um grupo de activistas pelos direitos humanos e fomos detidos pela polícia. Colocaram-nos numa cela escura. Ficámos ali, apertados uns contra os outros, a sentir a respiração angustiante de todos nós. Pouco depois, começou o interrogatório e vieram as ameaças. Alguns choraram. Uma mulher desmaiou. Talvez não se tenha magoado, pois não havia espaço para cair desamparada no chão. Não tínhamos onde urinar ou defecar, o que deixou o cubículo imundo e quase irrespirável. Após longas horas de encarceramento, algemaram-nos, vendaram os nossos olhos e colocaram-nos num carro. Percorremos uma longa distância. Provavelmente era noite. Sentíamos um frio gélido a atravessar os nossos corpos. Quando parámos, retiraram-nos as algemas e fomos levados para um espaço. Ouvimos algo a fechar-se. Imaginei que fosse uma porta. Inicialmente o silêncio mas, pouco depois gritos, choro, pedidos de ajuda. Estávamos mais uma vez aprisionados. De repente, deixámos de ouvir qualquer ruído. Já não falávamos. Estaríamos a ficar surdos? Ou mudos? Um silêncio sepulcral. Até começar a tal música indelével, estranha, que parecia trespassar o vazio dos nossos corpos.
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Deserto, Arches National Park, Utah. [cortesia Kool Cats Photography] |
Agora estamos a ficar surdos. Em breve tornar-nos-emos
mudos. E em seguida silêncio. Que angustioso silêncio isso causa! Mas será som.
Até mesmo o silêncio ficará cheio de som. Será uma espécie de música
interespacial para encher o vazio das nossas almas insensíveis.
Que estranheza: silêncio, som, silêncio, angústia. Onde
estaremos? Nesta escuridão não conseguimos ver-nos uns aos outros. Também
estaremos a ficar cegos? Que espaço será este? Há uma música indelével no ar.
Será a nossa respiração? Parece mais um gemido.
Sinto-me assustado. Cego, mudo, vazio, com uma surdez
parcial, pois oiço a tal música estranha, que não consigo percepcionar. Fico
arrepiado ao ouvi-la. Eu disse que me sinto arrepiado? Pelo menos ainda tenho
alguma sensação neste abominável vazio.
Tento andar, mas receio pisar algum dos meus companheiros.
Estendo os braços e os meus dedos tocam numa superfície rochosa. Estaremos numa
gruta? Coloco um pé diante do outro, com muito cuidado. Não se ouve nada, para
além daquela música intrigante. Avanço lentamente e nada. Estarei mesmo
acompanhado? Ou ter-me-ão lançado para este espaço desconhecido e vazio sem os
meus companheiros?
Tento recordar-me dos momentos que antecederam este vazio. Éramos um grupo de activistas pelos direitos humanos e fomos detidos pela polícia. Colocaram-nos numa cela escura. Ficámos ali, apertados uns contra os outros, a sentir a respiração angustiante de todos nós. Pouco depois, começou o interrogatório e vieram as ameaças. Alguns choraram. Uma mulher desmaiou. Talvez não se tenha magoado, pois não havia espaço para cair desamparada no chão. Não tínhamos onde urinar ou defecar, o que deixou o cubículo imundo e quase irrespirável. Após longas horas de encarceramento, algemaram-nos, vendaram os nossos olhos e colocaram-nos num carro. Percorremos uma longa distância. Provavelmente era noite. Sentíamos um frio gélido a atravessar os nossos corpos. Quando parámos, retiraram-nos as algemas e fomos levados para um espaço. Ouvimos algo a fechar-se. Imaginei que fosse uma porta. Inicialmente o silêncio mas, pouco depois gritos, choro, pedidos de ajuda. Estávamos mais uma vez aprisionados. De repente, deixámos de ouvir qualquer ruído. Já não falávamos. Estaríamos a ficar surdos? Ou mudos? Um silêncio sepulcral. Até começar a tal música indelével, estranha, que parecia trespassar o vazio dos nossos corpos.
Continuo a andar lentamente, mas o medo de pisar algum dos
companheiros atormenta-me. Tento gatinhar. Talvez seja mais fácil percepcionar
o que me rodeia. Acho que estou numa gruta. As paredes rochosas e o chão
térreo. Pelo menos sinto um pó por entre os dedos. E nem sinais de vida. O que
terá acontecido aos meus camaradas? E mais uma vez esta música cortante. De
onde virá?
Prossigo o caminho. De repente paro. Sinto um vento a passar
pela minha face. Estarei perto de uma saída? Continuo, palpando à volta, mas só
encontrando rocha. Talvez o ar venha de alguma fresta muito acima do local onde
me encontro. Aqui, a música parece ecoar pelas paredes. É um som assustador.
Um pouco mais à frente, a minha cabeça toca numa superfície
dura. Levanto a mão e tacteio toda uma zona rochosa. Deito-me e rastejo. Devo
estar num local estreito. A música parece menos perceptível. Prossigo e
parece-me ver claridade mais adiante. Que alívio, afinal não estou cego. Olho
em redor e apercebo-me que estou numa gruta, rastejando num espaço onde só cabe
o meu corpo deitado. Avanço até à saída. Finalmente a luz. Levanto-me e olho o
meu corpo sujo e emagrecido. À minha volta uma zona árida, sem árvores,
pedregosa, pobre em
vegetação. Tenho de procurar os meus companheiros ou alguém
que me ajude. Percorro o caminho, sem destino. O sol escalda. Lembro-me que
estamos no Verão. A fome e a sede provocam-me uma inquietação, quase um estado
alucinatório. Caminho cada vez com maior dificuldade. Sinto o corpo a pesar, as
forças cada vez mais reduzidas. Nenhum ruído em redor. Ainda
estaremos mudos? Abro a boca e grito: Estão a ouvir-me? Pelo menos não estou
mudo. Não obtenho qualquer resposta.
Continuo este caminho errante. De repente sinto um odor no
ar que me provoca uma náusea intensa. De onde virá? Olho à volta. Não acredito.
Uns metros adiante, um amontoado de corpos. Arrasto-me até lá. São os meus
camaradas. Foram assassinados e lançados aqui. Como foi possível esta chacina?
E como é que sobrevivi? Este cenário é insuportável. Sinto uma dor lancinante
no meu peito. Segue-se um vómito imenso. Parece que o meu corpo se está a
desfazer. Não aguento mais. A dor cada vez mais intensa. Vou morrer. Estou a
ouvir um som, uma música cada vez mais próxima. É um requiem. A dor atroz. Os
vómitos incoercíveis. Caio em cima dos corpos. Estão frios. O cheiro é
nauseabundo. O meu corpo também está a ficar frio. Quanto tempo terá passado?
Como terei conseguido salvar-me? Mas a dor esmaga-me o peito. Estou a morrer.
Só resta o requiem, que aos poucos se vai tornando menos perceptível.
Alda Rosa
Lisboa, 20 de Outubro de 2014